II


DA MAÇARÓCA


Depois de conclusa a partida de xadrez, que perdi (meio commodo de predispôr Mr. Slang a prolongadas dissertações), retomei o fio do nosso thema.

— Acha, então, Mr. Slang, que a nossa imprensa desenrolou a linha do carretel e deixou o caso da estabilidade reduzido a maçaróca?

— E das inextricaveis. Vejo tantas laçadas e nós cégos que não sei como vae este pobre povo comprehender qualquer coisa. O mesmo que se deu com a vaccina obrigatoria, no governo Rodrigues Alves. Desenrolaram-se os carreteis e o povo, enleado na maçaróca, pensou até em levante. Em levante, contra o remedio preventivo da horrorosa doença que o dizimava e deformava... Hoje começam a fazer o mesmo. Já inventaram uma engenhosa formula, bôa para irritar o pobre burro de carga.

— Qual é?

— "Estabilização da carestia".

— E não acha, Mr. Slang, que é isso mesmo?

O inglez olhou-me com certa piedade ironica. Depois disse:

— Carestia é symptoma de deficiencia na producção. Sempre que ha batatas de sobra no consumo normal das batatas, o preço das batatas cáe; mas sobrevirá a carestia sempre que a colheita produzir menos batatas que o necessario ao consumo. O projecto da estabilização da moeda visa apenas tornar rigido e, portanto, invariavel o litro com que o vendeiro mede essas batatas. Nada tem que ver com a producção, quantidade ou preço dellas.

— Não comprehendo.

— E' que não me expliquei convenientemente.

— Explicou-se muito bem, Mr. Slang; o problema é que é complicadissimo.

— Complicado só me parece o que não entendemos. O brasileiro anda afastado do regimen de pensar por si, de meditar sobre uma idéa até que a tenha madura no cerebro e articulada com todas as mais idéas que o povoam. Seria impossivel um Newton por aqui, o homem que descobriu uma grande lei á força de reflectir sobre a mechanica dos astros. Ao envés de pensar, vocês lêem — lêem coisas que, por mal pensadas, vão contribuir para a formação da maçaróca.

— Mas acha, então Mr. Slang, que seja finança uma coisa clara? Eu de mim confesso que quanto mais leio a respeito, menos pesco.

— E' que lê e estuda nos jornaes — na linha desenrolada. Experimente pensar a respeito. Enrole a linha e verá que nada existe mais simples.

— Ajude-me, então, Mr. Slang. Dê-me a ponta do fio.

O inglez accendeu o cachimbo fleugmaticamente e disse:

— Temos aqui sobre a mesa a maçaróca. Que nota nella á primeira vista?

Representei-me "in mente" a maçaróca, que Mr. Slang dizia estar sobre a mesa e não notei coisa nenhuma. Que será possivel notar numa imaginaria maçaróca de linha? Vendo o meu embaraço, o inglez continuou:

— Nota que não é constituida de linha de uma só côr. Temos linha amarella, vermelha e azul. Logo, ha aqui tres carreteis desenrolados.

— ?

— Sim. O carretel economico, o financeiro e o monetario. São tres problemas diversos que o "amor ao embrulho" dos nossos entendidos embaralha. Embora na vida dos negocios suas questões se entrelacem, economia, finança e moeda são coisas distinctas. Cada qual com o seu campo, cada qual com a sua funcção, cada qual sujeita ás suas leis. Mistural-as é criar o cahos. Mas desde o momento em que separemos da maçaróca as tres linhas de cores diversas, já o problema em causa se simplifica enormemente. Tão enormemente que qualquer caixeiro de venda supportará com galhardia um exame. Si eu fosse presidente da Republica resolveria a eterna balburdia financeira, economica e monetaria do paiz mettendo no Ministerio da Fazenda, ao envés de "technical experts", isto é, malabaristas da terminologia e paes da maçaróca, um simples caixeiro de venda.

— Lá vem Mr. Slang com os seus paradoxos! Leu Bernard Shaw, esta noite, com certeza...

— Li varios artigos de famosos exministros da Fazenda, e dahi me veio a idéa de metter no “controle" um caixeirinho — aquelle, por exemplo, que ali vem, concluiu, apontando com o cachimbo para um moço em mangas de camisa, que entrava a sobraçar um pacóte. Era o caixeiro do armazem proximo que vinha trazer uns biscoutos pedidos pelo telephone.

— Manoel, venha cá! exclamou o inglez. Venha dar umas lições a este amigo atrapalhado.

Approximou-se o Manoel, tatalando os seus tamancos.

— A's ordens de vossa senhoria.

— Diga-me cá, Manoel, começou o inglez, entende você alguma coisa de finanças?

O rapaz olhou-nos desconfiado.

— Finanças? Homem, a falar verdade, nunca ouvi siquer tal palavra.

Mr. Slang olhou-me e disse em inglez rosnado:

— Vou fazer-lhe umas perguntas e você verá que o simples bom senso deste homem vae dar todas as soluções que os nossos grandes financistas não encontram.

E, voltando-se para o Manoel:

— Diga-me cá: si o seu armazem gastar dez contos por anno e ganhar oito, que é que acontece ?

— Vossa senhoria está a brincar ! Pois claro que quebra ! Poço de onde sae mais agua do que entra, secca.

Mr. Slang sorriu-se e soltou uma gostosa cachimbada para o ar.

— Manoel, acabas de dizer uma verdade eterna, das que os homens da Academia chamam inconcussas. Verdade, no entanto, que jámais entrou na cabeça dos nossos governos. Querem elles arrecadar 100 e gastar 150. Admittem que é possivel encher-se um poço onde entra menos agua do que sae. O teu solido bom senso acaba de ensinar a este meu amigo que o problema financeiro das donas de casa ou dos grandes imperios se resume em ter fé céga nas verdades que o Trajano ensina na sua arithmetica elementar. Não ha propriamente problema financeiro; ha a conta de entrar mais do que sair, ou, pelo menos, entrar tanto quanto sair . Começa a haver problemas si esta regra é inobservada — problemas metaphysicos e ultra-arithmeticos, de multiplicar a agua do poço por meio de chimicas e passes de magica, ao envés do natural e simplicissimo equilibrio das torneiras.

— De modo que o problema financeiro, na sua opinião, se resume nisso!... conclui, um tanto desapontado.

— Está claro! E só fugirei deste modo de ver si alguem me apresentar um facto — um só que seja — de poço que se não esvasie quando sae mais agua do que entra. Enrole a linha vermelha da maçaróca e ponha ahi no canto da mesa o carretel financeiro. Vamos ver agora o problema economico. Inda é o Manoel quem vae esclarecer-nos .

Ri-me e duvidei:

— Esse quero ver. E' crespo e o pobre Manoel vae espetar-se.

— Engano. O Manoel vae deslindal-o tão luminosamnte que você se assombrará da iniquidade de andar como caixeiro de venda um córte de ministro da Fazenda como o Brasil ainda não possuiu nenhum.

— Nem Murtinho?

— Nem Murtinho.

E Mr. Slang chupou uma cachimbada gostosa antes de interpellar novamente o Manoel.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.