Daí a oito dias teve ele a ventura inefável de ouvir da própria boca de Flávio que queria seguir a carreira sacerdotal. O rapaz dizia aquilo com tristeza, mas resoluto. Vilela recebeu a notícia como eu tive já ocasião e dizer aos leitores, e tudo se preparou para que o neófito fizesse as primeiras provas.
Flávio resolvera adotar a vida eclesiástica depois que da própria Laura teve o desengano. Repare a leitora que eu não digo ouviu, mas teve. Flávio não ouviu nada. Laura não lhe falou quando ele timidamente confessou que a adorava. Seria uma concessão. Laura não fazia concessões. Olhou para ele, ergueu a ponta do lábio e começou a contar as varetas do leque. Flávio insistiu; ela retirou-se com um ar tão frio e desdenhoso, mas sem um gesto, sem nada mais que indicasse a menor impressão, ainda que fora de ofensa. Era mais que despedi-lo, era esmagá-lo. Flávio curvou a cabeça e saiu.
Agora saltemos a pés juntos alguns pares de anos e vamos encontrar o Padre Flávio no princípio da sua carreira, tendo justamente pregado o seu primeiro sermão. Vilela não cabia em si de contente; os cumprimentos que Flávio recebia era como se ele os recebesse; revia-se na sua obra; aplaudia-se no talento do rapaz.
— Minha opinião, reverendo — dizia-lhe ele um dia ao almoço, — é que irás longe...
— À China? perguntou sorrindo o outro.
— Longe é para cima; replicou Vilela; quero dizer que hás de subir, e que ainda terei o gosto de te ver bispo. Não tens ambições?
— Uma.
— Qual?
— A de viver sossegado.
Esta disposição não agradava muito ao reverendo padre Vilela, que, sendo pessoalmente despido de ambições, desejava para o seu filho espiritual um elevado lugar na hierarquia da Igreja. Não quis porém combater o desprendimento do rapaz e limitou-se a dizer que não conhecia ninguém mais apto para ocupar uma sede episcopal.
No meio dos seus encômios foi interrompido por uma visita; era um rapaz quase da mesma idade do Padre Flávio e seu antigo companheiro de estudos. Atualmente tinha um emprego público, era alferes porta-bandeira de um batalhão da Guarda Nacional. A estas duas qualidades juntava a de ser filho de um negociante de grosso trato, o Sr. João Ayres de Lima, de cujos sentimentos políticos dissentia radicalmente, visto que estivera no ano anterior com os revolucionários de 7 de abril, enquanto que o pai era muito inclinado aos restauradores.
Henrique Ayres não fizera grande figura nos estudos; não fez sequer figura medíocre. Era doutor apenas, mas bom coração e rapaz de bons costumes. O pai quisera casá-lo com a filha de um negociante seu amigo; mas Henrique tendo dado imprudentemente o coração à filha de um escrivão de agravos, opôs-se com todas as forças ao casamento. O pai, que era bom homem, não quis obrigar o coração do rapaz, e desistiu da empresa. Aconteceu então que a filha do negociante casou com outro e a filha do escrivão começou a dar corda a um segundo pretendente com quem veio a casar pouco tempo depois.
Estas particularidades são necessárias para explicar o grau de intimidade entre Henrique e Flávio. Foram eles naturalmente confidentes um do outro, e falaram (outrora) muito e muito dos seus amores e esperanças com a circunstância usual entre namorados que cada um deles era o ouvinte de si mesmo.
Os amores foram-se; a intimidade ficou. Apesar dela, desde que Flávio tomara ordens, e já antes nunca mais Henrique lhe falara de Laura, conquanto suspeitasse que a lembrança da moça não se lhe apagara no coração. Adivinhara até que a repulsa da moça o atirara ao sacerdócio.
Henrique Ayres foi recebido como um íntimo da casa. O Padre Vilela gostava dele, principalmente porque era amigo de Flávio. Além disso, Henrique Ayres era um rapaz alegre, e o Padre Vilela gostava de rir.
Desta vez, entretanto, não vinha alegre o alferes. Trazia os olhos desvairados e a cara sombria. Era um rapaz bonito, elegantemente vestido à maneira do tempo. Contava um ano menos que o Padre Flávio. Tinha o corpo muito direito, em parte porque a natureza o fizera assim, em parte porque andava, ainda à paisana, como se levasse a bandeira na mão.
Vilela e Flávio perceberam logo que o recém-chegado tinha alguma coisa que o preocupava; nenhum deles, entretanto, o interrogou. Trocaram-se algumas palavras friamente, até que Vilela, percebendo que Henrique Ayres desejaria conversar com o amigo, deixou a mesa e saiu.