CAPITULO X

O dever de ser bonita

 

 

Dizia uma das mais espirituosas escriptoras da França, aquella para quem Theophile Gauthier inventou o gracioso epitheto de bas lilas, livrando-a d’este modo da terrivel, grotesca e immerecida alcunha de bas bleu, que o primeiro e mais sagrado dever da mulher é ser bonita.

Abaixo o paradoxo! bradou logo em torno a turba-multa das feias, furiosas contra a sentença que as punha por assim dizer fóra da lei.

Foi necessario entrar em explicações, e todas nós vemos então a comprehender o que Madame de Girardin entendia pela belleza feminina.

Ser bonita no fim de contas não é ter fórmas esculpturaes — isso já passou de moda, não é ter feições perfeitas — não ha nada mais profundamente monotono e massador; não é ter collo de alabastro, cabellos de ebano, labios de rubis, dentes de perolas, olhos de diamante preto, testa de marfim, etc., etc., etc.

— Deixemos isso aos artifices mais ou menos engenhosos, que trabalham com as sobreditas materias, e aos trovadores mais ou menos choramigas, que manejam as sobreditas rimas; não é saber olhar com expressão ardente ou languida consoante o genero da phisionomia; saber sorrir com malicia ou com ternura, saber inclinar-se meiga e scismadora ao influxo do um sentimento occulto, ou erguer a cabeça altiva e triumphante com a plena consciencia da propria formosura!

Ser bonita, ser bella, na accepção elevada e completa d’esta palavra, é possuir a graça mysteriosa que prende os que param junto de nós, que attrahe os que vão passando ao nosso lado.

Resta agora analysar os fios tenuissimos de que se tece este divino encanto da mulher!

A graça de que eu fallo é feita principalmente de intelligencia e de bondade.

O primeiro dom concede-o Deus, e aperfeiçoa-o e depura-o a vontade humana; o segundo adquire-se á custa de sacrificios cccultos, de abnegações intimas, de aspirações continuas e incessantes para a suprema perfeição!

Todos podem ser bons! É preciso que os espiritos se compenetrem profundamente d’esta verdade, que é o primeiro passo para a conquista do bem, que todos ambicionam e que tantos julgam vedado.

Não ha terreno, por mais duro, inhospito e ingrato, a que um cultivo cuidadoso e vigilante não possa arrancar flôres.

No homem — e quando digo homem, refiro-me geralmente á humanidade — , no homem ha preso, algemado, vencido, um robusto animal de tendencias bravias, que lucta continuamente para reconquistar a perdida liberdade.

Foi a acção civilisadora de seculos sem conta que domou essa féra de funestos instinctos; é a pressão continuada e constante de uma vontade energica, de uma razão esclarecida, de uma percepção profunda de todos os deveres, que conserva e sustem intimidado e submisso o terrivel selvagem.

Uns precisam de desenvolver n’esta porfia assidua, mais tenacidade e mais força, outros de indole nativamente branda e pacifica, podem deixar adormecer de vez em quando a accesa vigilancia.

São no fim de contas os primeiros que teem maior merecimento.

Ser bom é quasi sempre um esforço, mas para ser meritorio cumpre que este esforço seja tão invisivel para todos os olhos, que a analyse ainda a mais perspicaz não chegue a dar por elle. A bondade é o supremo attractivo da mulher, aquelle que mais acção exerce em torno de si.

A bondade é pois a verdadeira belleza feminina.

Imaginae que a ella se reune a intelligencia, e tendes o ideal da perfeita formosura, da unica que só se apaga e extingue com a vida, da que excita os grandes, os eternos, os sãos e robustos amores.

O culto pagão da belleza plastica é um dos erros que mais ha de custar a destruir, e que no entanto se acha tão deslocado no ideal moderno, como se achava no seu verdadeiro lugar, no velho mundo que a revolução deitou por terra alluido e decomposto!

A mulher transviada por esta falsa comprehensão do seu destino, só aspira a ser bonita no sentido futil e exterior da palavra, só inveja as que possuem os ephemeros encantos de que foi desherdada, e não percebe que a belleza interior é aquella cuja gloriosa conquista, accessivel para todos, lhe podia dar a realeza e o predominio.

A quantas meninas sentimentaes de olheiras roxas e phrases sonoras não temos nós ouvido lamentar a pouca duração dos affectos terrestres, a inconstancia do homem, a ingratidão cruel que faz definhar as suas victimas em desolador abandono! Apesar do aspecto ridiculo de que estas romanticas e elegiacas creaturas se revestem, que ninguem se ria d’elles!

Victimas se chamam, e victimas são de certo, mas não de imaginarias perfidias ou de tragicas aventuras.

São victimas da sua educação falsa, da sua sentimentalidade piégas, da idéa inteiramente errada que formam da vida pratica.

Imaginaram que haviam de ser eternamente amadas, amadas com extasis poeticos, com grandes discursos inflammados, com acompanhamento de viola franceza e de epistolas em verso, que tivessem de mais em amor, o que tivessem de menos em grammatica; sonharam ser as pallidas Julietas apaixonadas, recebendo á luz branca da lua, as confidencias convulsas dos seus Romeos de obra grossa; e para attingirem este ideal dos seus desejos suppozeram que lhes bastavam a alvura da tez, o brilho do olhar, a frescura dos labios, a abundancia dos cabellos, e por cima de tudo isto a garridice, a pretensão, a ignorancia e a toilette!

Em muito menos tempo do que é preciso para murchar uma rosa, os proprios homens se enfastiaram.

E eil-as inconsolaveis e inconsoladas, maldizendo a traição masculina, que lhes não deu mais que o castigo merecido! Houve tempo em que a mulher feia tinha como unico refugio o convento.

Felizmente, porém, esse tempo vae longe.

O homem já não exige da companheira do seu destino, como condição unica de felicidade, encantos que murcham com os annos.

Assenta em mais solidas bases a ventura conjugal.

Mulheres, sêde boas, cultivae o espirito, e allumiae a consciencia; na vida do homem ha horas escuras; que a luz que sabeis diffundir as illumine.

A sociedade tem desfiladeiros sombrios, tem selvas ignotas, como o inferno do Florentino, aprendei a guiar com a vossa pequena mão branca e macia os robustos luctadores, que ás vezes param no limiar d’esses caminhos, com a vista incerta e o passo hesitante.

E isso que hoje se exige de vós.

Eu vou mais longe que madame de Girardin, na sua arrojada proposição que tão poucos comprehenderam.

Quando vejo um homem sou capaz de adivinhar a que genero pertence a mulher que elle tem por esposa; quando entro n’uma casa basta-me vêr a disposição dos moveis, a escolha dos livros, o aspecto das creanças, a expressão das cousas mudas, para poder afiançar se a dona d’essa casa, a divindade modesta e tutelar d’esse pequeno templo, é digna do seu titulo sagrado de esposa e mãe.