CAPITULO XVI
Cartas de um marido
Meu caro amigo.
Onde é que fui desencantal-a? perguntas tu com justificado espanto.
E tens razão.
O facto é que nunca a vi, valsando n’um baile á luz quente e abafadiça do gaz, decotada, cheia de pó de arroz e de suor, abandonando-se n’uma postura voluptuosa, nos braços de um sujeito esgrouviado, de casaca, collarinhos de papelão, e olhar que tenta ser magnetisador e irresistivel, e que depois de tamanhos esforços não consegue ser senão comico.
Nunca a encontrei cantando n’um concerto duetos apaixonados em beneficio dos meninos pobres, vendendo n’um bazar sorrisos de dançarina e bibelots de fancaria em beneficio dos velhinhos aleijados, representando n’um sarau dramatico, comediazinhas maliciosas em beneficio dos adultos cegos.
Frequentando os theatros de segunda ordem, onde os palhaços e as cocottes de Offenbach, e dos modernissimos maestrinos da decadencia se desengonsam em scena, fazendo gestos desmanchados e sublinhando com sorrisos torpes as suas cantilenas de café-concerto, debalde a procurei pelas frisas, e pelos camarotes, applaudindo as farçadas impuras, e dando gargalhadas que attrahissem a attenção e os maliciosos commentarios da platéa.
Nas noites de verão, no Passeio Publico, quando ha musica, fogo de artificio, muito calor e muito aperto, e as meninas burguezas que ainda não podem gozar da villeggiatura elegante, passeiam com toilettes claras, na plena expansão da flirtation lisbonense, confesso que muitas vezes atravessei a multidão, pisado, empurrado, offegante, sem respeito pelas caudas de seda, de foulard, de linho transparente, que para alli vão desfructar o prazer de se encherem de poeira e de rasgões, e que debalde procurava reconhecel-a em cada vulto feminino, esbelto, gracioso, que passava pisando a areia das ruas, com o tacão alto das estreitas botinas de pellica.
Até comecei a frequentar S. Luiz, a igreja da devoção fidalga, do arrependimento perfumado de poudre d’iris, do mais alto, do mais distincto e do mais desdenhoso beaterio...
Vi todas as nossas flores da alta vida, trajando com discrição finamente aristocratica, revelando a elegancia que as distingue, no modo de se ajoelharem, de se persignarem devotamente, de erguerem os olhos com extasi piedoso, para a imagem alabastrina da Virgem, que parece erguer-se como um lyrio desabrochado, d’entre as verduras e as brancas florescencias que a cercam de todos os lados.
Vi-as descalçarem, das suas estreitas luvas de cinco botões, as mãos esguias, avelludadas, feitas da alvura dos marfins; vi-as curvarem-se até ao chão, humilhadas, contritas, mas sempre correctas; lerem uma oração privilegiada, em cada um dos quatro ou seis grossos volumes devotos que trazem comsigo, beijarem com felina graça as mãos rechonchudas e macias dos louros abbades francezes, disputarem entre si com delicadeza, não inteiramente isenta de colera, a sua vez de confissionario, e de confidencias adocicadas e asceticas; mas nenhuma d’essas encantadoras filhas de Eva, com os seus gestos miudos, os seus movimentos ondeantes de serpente, as multiplas seducções da sua artificial formosura, me deu a idéa boa, sã, carinhosa, como um affago de mãe, que eu tivera vendo-a, a ella.
Escuso de accrescentar que ella não se encontrava entre essas todas.
Um dia porém, — que bom dia aquelle! — tornei a vel-a em casa de uma amiga de minha mãe.
Não me pareceu bella, pareceu-me boa, mas de uma bondade em que a belleza não deixava de entrar, embora como elemento secundario.
Estava com as suas amigas em volta de uma grande mesa de serão. Largára um pequeno trabalho da agulha, e começara a lêr alto a pedido de todas as companheiras.
Lia um livro de Michelet, L’insecte.
Tinha a voz grave, sonora, musical, como eu sempre imaginei que havia de ser; a luz coada pelo globo fosco do alto candieiro, banhava de vagos tons dourados o seu cabello simplesmente penteado, torcido n’um grosso rolo luminoso sobre a nuca torneada e forte.
Não me lembro bem de como estava vestida, signal de que era tão despretencioso o seu trajo que não prendia nem demorava a attenção. Havia de ser por força bastante distincto para lhe não alterar a graça; bastante singelo para não dar um aspecto de artificio á sua natural e casta formosura.
Emquanto a ouvia ler, parecia-me comprehender melhor aquella grande alma luminosa do velho Michelet.
E sentia em mim a vivificante sympathia da natureza, o amor dos pequeninos, a ternura comprehensiva para tudo que vive, que sente, que palpita na enorme Creação.
Quando acabou de ler, fechou o livro, e naturalmente, sem languidez, sem cansaço, pegou de novo no trabalho, e recomeçou a bordar.
Aproveitei o ensejo e sentei-me n’uma cadeira vaga ao seu lado.
Conversámos muito. Em muita cousa, em quasi tudo.
Era um gosto ver de perto a luz tranquilla e doce d’aquelle olhar azul escuro, reflectido, serio, innocente.
Não baixava os olhos deixando transparecer nas faces rubor intempestivo; tinha um modo seu de olhar, franco, sincero, de uma limpidez de lago suisso em que se reflectisse o largo céu da primavera.
De vez em quando ria-se.
Que musica crystallina a do seu riso!
Uma das vezes lembra-me, que seguindo o falso pendor da nossa detestavel educação de sala, fui sentimental, sem dar por isso, de uma sentimentalidade piegas, da que produz sempre um certo effeito no espirito das meninas que valsam.
Levantou subitamente a cabeça, como se ficasse um tanto surprehendida, como se tivesse agourado melhor de mim, á primeira vista.
Depois, não sei o quê, provavelmente a expressão alambicada da minha cara, desafiou-lhe a vontade de rir, uma vontade de rir irresistivel!
Coitadinha! Que bem educada que ella é!
Suffocou aquella boa hilaridade tão espontanea! Disfarçou perfeitamente o effeito comico que eu lhe produzira, isto com uma graça, tão cheia de infantilidade!
Castigou-me melhor assim, do que outra qualquer fingindo um enleio theatral.
D’alli a nada, a dona da casa, uma senhora de aspecto muito distincto e muito bondoso, veio pedir-lhe com grande empenho que fosse para o piano.
Levantou-se docilmente, e tocou e cantou emquanto quizeram ouvil-a!
Era a simplicidade, a graça, a mais delicada intuição artistica, isto acompanhando uma vocação musical deveras notabilissima.
Nem uma só d’aquellas languidas arias italianas, de um sentimentalismo tão dissolvente e que parecem banhar a alma que as escuta n’um tepido banho de caricias molles!
Musicas graves e de uma austera melancolia como as dos mestres allemães; ou musicas graciosas, ligeiras, scintillantes, inoculando no espirito uma sensação de frescura matutina, de robusta alegria, levando-nos atraz das suas notas de crystal, pelas pradarias illuminadas da luz das alvoradas estivas, onde os melros maliciosos assobiam, saltando de ramo em ramo!
Quando sahi d’alli, d’aquella casa hospitaleira, em que o espirito parecia dilatar-se affectuosamente, pensei de mim para mim que ella havia de ser minha mulher!
...Sabes uma cousa? Temos um filho! Estas palavras a ti não te dizem nada, a mim banham-me o coração n’uma alegria que em lingua humana se não póde exprimir.
A deliciosa canção da minha felicidade, canto-a eu em beijos chilreados, no corpinho roliço e avelludado, no corpinho de leite do meu primeiro pequenino!
Vivemos em um bairro pouco central, em uma rua muito socegada, onde passam pouquissimos trens, e onde se não ouve o pregoar rouquenho dos vendilhões ambulantes.
O nosso orçamento é de uma exiguidade que faz rir, mas não sei porque minha mulher tem a habilidade de fazer render da maneira mais milagrosa os nossos modestissimos haveres.
Creio que se ámanhã me visse rico, não podia ser tão feliz.
Se eu fosse rico, havia de ter criados, não é verdade? Criados graves, solemnes, de olhar sonso, que vivessem da minha vida, que maculassem com a sua ironia baixa as santas expansões do meu affecto de marido e de pae, que invejassem a minha felicidade, que calumniassem as minhas intenções, os meus actos, a minha vida toda!
Ao jantar um ou dous d’aquelles figurões altos, espadaudos, ociosos, vestidos de preto, haviam de espreitar com olhar guloso cada bocado que eu mettesse na bôca; teria um cozinheiro gordo, de barrete branco, que me fizesse molhos indigestos, uma criadinha de quarto buliçosa, e petulante que se risse do burguezismo pacato dos meus habitos.
Viveria escravo, preso nas malhas de ouro, d’esta grande rede que se chama a riqueza.
Receberia muitas visitas, muita gente indifferente ou hostil, que viesse para me bajular, e que se fosse embora para me morder traiçoeiramente pelas costas.
Uma governante ingleza empavezada, grotesca, um pouco pedante, cortaria na sua flôr, na querida alma transparente do meu pequeno anjo, os carinhos, as expansões innocentes, os risos inextinguiveis e sem causa, tudo que é hoje a nossa alegria!
E depois, habituado ao luxo não sentiria o conchego! Satisfeitos até á saciedade todos os desejos, não teria nunca a boa, a vivificante sensação do obstaculo vencido!
E o socego depois do trabalho! E as alegrias da posse, quando o objecto longo tempo cubiçado, para alcançar o qual se fizeram tantas economias, se supportaram tantas privaçõesinhas, nos apparece emfim em todo o prestigioso brilho do impossivel, que de repente se deixa conquistar!
Ai! as minhas alegrias de pobre, que saudades que eu terei d’ellas mais tarde!
Mas, meu querido A., não comeces tu agora a lamentar-me imaginando-me novo monge entregue ás austeridades da penitencia voluntariamente acceita!
Não te disse eu que uma boa mulher que nos ame, e que nos saiba amar, é um thesouro inestimavel, que o homem desdenha, e que por isso, se tem feito tão raro?
A minha casa não tem estofos de seda, não tem custosos moveis de carvalho entalhado, não tem frageis porcellanas de Saxe, de Sevres ou do Japão, não tem tapetes turcos, nem artisticos Gobelinos.
Mas olha que nem sempre o luxo é o conforto, nem sempre a opulencia é a graça, nem sempre as cousas caras são as cousas elegantes!
A nossa pequenina casa, toda forrada de papel claro, com as suas cadeiras de cretonne, as suas cortinas muito brancas, e vasos de plantas em pequenas estantes de madeira, e jarras de flôres na mesa de jantar, com a luz clara e festiva do sol, a illuminal-a toda, com o aceio escrupuloso que é o luxo dos pobres, com a tranquilidade doce e recolhida, que é a poesia dos que se amam e na qual põe a espaços a nota clara e festiva o riso do nosso filhinho, a nossa casa é como que a deliciosa encardenação do poema do nosso amor!
Todas as senhoras que eu conheço sahem muito; os maridos voltam á noite exangues das enfadonhas labutações do dia, com o espirito abatido, com o corpo cansado e no entanto teem de seguil-as ao baile, ao theatro, a casa das amigas, de figurarem de comparsas na fastidiosa comedia social, de se mostrarem debaixo de um aspecto desfavoravel, de realizarem emfim á risca o lendario typo que o romantismo amarrou ao pelourinho do ridiculo, o marido macambuzio, o marido desengraçado, o marido sem espirito, em quanto á roda, fresco, malicioso, cheio de ditos e anecdotas, com uma rosa na abotoadura, borboleteia o galan que povôa de perigosas seducções a fantasia de todas as pobres mulheres frageis!
Minha mulher á noite sahe raras vezes, de modo que eu durante o dia, na atmosphera pesada e asphyxiante do escriptorio, estou sem querer a scismar no conforto que me espera quando eu voltar.
O jantarinho quente, saboroso, cozinhado pela nossa velha Anna, debaixo da direcção da minha querida Maria, a toalha muito branca, um ramo de lilazes no centro, as fructeiras de vidro com as suas pyramides de fructas, sahindo do ninho fresco e avelludado das folhas verdes, os talheres muito bem limpos, um grande conchêgo na atmosphera, e em tudo visiveis o gosto d’ella, os cuidados d’ella, o affecto d’ella manifestando-se no bem-estar que me envolve e me acaricia!
Depois, á noite, o gabinete com a mesa redonda no centro, o candieiro de Carcel de luz clara e discreta, a poltrona de marroquim, com os grandes braços abertos que me convidam, os jornaes do dia, a ultima Revista, um romance novo, e a minha querida mulhersinha, com um vestido que lhe fica muito bem e que andou ella propria a fazer ás minhas escondidas — a ladina! — como se eu não tivesse olhos perspicazes que vêem de longe! com os seus longos cabellos louros penteados d’aquelle modo simples e puramente artistico, que faz da cabeça de cada estatua grega uma cabeça encantadora, e sobretudo com o seu sorriso bom, o seu olhar affectuoso e honesto, a sua voz consoladora que é uma musica, a melhor das musicas para o meu coração!
Para além do reposteiro entre-aberto, vê-se a alcova, o berço de cortinados brancos, e á luz branda da lamparina, sobre uma cadeira, um vestidinho claro, uns pequenos sapatos, umas meiazinhas de côr, umas cousas para que ninguem repara, e que a mim me fazem ás vezes chorar.
Tenho já perguntado a mim mesmo, que differença existe entre mim e os outros homens, porque é que elles andam pelo gremio, pelos cafés, pelos theatros, alguns pelas salas, e porque estou eu tanto em casa, finda que seja a minha tarefa diaria?
Serei melhor do que os outros maridos?
Não; ella é que é melhor do que as outras mulheres.
A felicidade de que eu gozo devo-a á sua comprehensão tão santa dos deveres, e ao meu egoismo todo masculino.
Vou para onde me chama maior somma de alegrias e de confortos que posso conhecer n’este mundo.
Não ha n’isto merito nem dedicação dignos de louvor.
Se á noite a nossa pequena sala se enchesse das amigas de minha mulher, palradeiras, frivolas, pueris, a discutirem banalidades, é provavel que eu fugisse para qualquer outra parte.
Se quando chegasse a casa, a visse prompta para sahir, á minha espera para me fazer envergar uma terrivel casaca muito hostil, que me acenasse de longe com as suas azas de gafanhoto, se ella me apparecesse toda occupada de si, da sua toilette, dos triumphos que ia ter, e esquecendo completamente as exigencias mais prosaicas, do meu temperamento de homem, da minha vida de trabalhador, com certeza que me chegaria a minha hora de revolta, que o trabalho deixaria de ser o meio de que eu me servisse para alcançar o bem estar dos meus, e que se tornaria simplesmente uma tarefa exercida sem alma, sem alento interior, só para que o mundo me não alcunhasse de ocioso e de zangão da grande colmêa social.
Dos defeitos d’ella proviriam todos os meus defeitos, dos seus esquecimentos, todas as minhas faltas.
Já vês quanto ganhei casando-me com esta querida e nobre creatura.
Se me perguntares o que ella sabe, dir-te-hei que sabe tudo, e que a sciencia toda lhe provém de uma só fonte — o coração.
Comprehende Shakespeare e faz deliciosamente uma omellete, toca com o sentimento mais fino e mais ideal, uma phantasia de Beethoven, e inventou um systema engenhoso e abreviado de fazer o rol da lavadeira; adora as flores, os versos, as creanças, os livros, tudo que é bello, tudo que é bom na natureza, e de manhã, com a sua touquinha de cambraia branca, o seu avental de merino, um espanador de pennas na mão, pondo os moveis em harmonia, tocando em todas as cousas, imprimindo em tudo o cunho da symetria e da ordem, atarefada, sem distracção, sem enfado, parece uma spinster ingleza atacada da monomania do arranjo.
A brincar com o filho, na rua areada do nosso pequeno jardim, dir-se-hia a sua irmã mais velha; na hora da atribulação, na hora difficil em que de um bom conselho depende ás vezes a dignidade de um homem, lembra um espirito austero, cheio de altivas aspirações estoicas.
O contacto d’ella faz bons os que são maus, faz robustos os que são fracos!
São estas as mulheres que salvam a honra e a felicidade dos maridos.
Queres um conselho? Procura no mundo outra Maria como é a minha e casa-te.