MEU maior amigo chamava-se Helio Bruma. Com elle convivi em intimidade estreitissima até aos vinte annos. Por ahi, como a "vida pratica" me acenasse e fosse elle o mais impenitente dos contemplativos — vulgo pateta, separamo-nos de boa cara. Helio abraçou-me, dizendo:
— Adeus. Mudo-me para Marte.
— ?!...
— Sim, Marte, o planeta. Tinha um amigo na Terra, tu; mas vejo-te mudado, cheio de idéas praticas, de olhos ferrados na victoria. Isso fatalmente nos separará no correr do tempo. Ora, se tem de ser assim amanhã, precipitemos os acontecimentos: seja boje. Adeus! Como lembrança deixo-te o meu diario. Casa-te, procrêa, ganha dinheiro, sê feliz. Quando deres de engordar, lê-m'o. Adeus!
Disse e sumiu-se.
Por muito tempo conservei na gaveta o diario do meu amigo. Pesava-me, e a balança accusava sempre cincoenta e seis kilos. Agora que accusa cincoenta e nove, julgo-me em ponto de bala para folhear o mysterioso calbamaço. Faço-o, e encontro pequeninos quadros, paizagens, retratos, instantaneos psychicos, sonhos, idéas, revoltas, agedumes. Gaveta de sapateiro d'um menino que promettia.
E resolvo dal-o a publico, escolhendo quanto baste á prova de que Helio fez bem em mudar-se de mundo. Um contemplativo! Um patéta que se por aqui ficasse acabaria de cabelleira, a sonhar mundices da lua.
M. L.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.

