Acaso?


JOGO de coincidencias?

Em pequeno fui um grande guloso de cabelludas, frutinha amarella, que se faz hoje extremamente rara. Como as esporinhas, a maravilha, o alecrim, a romã, ninguem a cultiva hoje, que os pomares e jardins se civilizam e andam todos á moda. Em casa, na fazenda em que nasci, havia um pé de cabelludas, escarrapachado, de copa saiúda a relar o chão. Era meu. Boas horas passei dentro delle a chupar as frutinhas. Depois, faz isso doze annos as coisas mudaram, o mundo virou e nunca mais tive occasião de ver sequer uma cabelluda, ou ouvir falar nellas.

Pois bem: descobri, ha dias, cheio de emoção, um pé de cabelludas no fundo da chacara velha. E carregadinho! Regalei-me, infantilmente, e enchi os bolsos logo que o estomago deu o basta.

De volta, detive-se em casa da velhinha amiga, pois nunca passo por alli sem portar. Livro vivo do passado, é uma delicia folheal-o. Encontrei-a como de habito na rede e ao pé della, na cadeira "pé-pé", cadeira de pernas cortadas onde sempre me sento, uma creaturinha humilde, trajada pobremente.

A boa velha teve clarão nos olhos ao ver-me.

— Esta mocinha anda campeando cabelludas. Precisa de "umas par dellas" para a irmã que está muito malzinha no hospital. Já correu a cidade inteira, e nada. Quem sabe se o senhor sabe de algum pé por ahi? A pobrezinha vae morrer e seu ultimo desejo é chupar cabelludas...

— Sei. Sei onde ha cabelludas, respondi.

A physionomia de ambas illuminou-se.

— Onde? perguntou a velha, detendo o balanço da rede.

— Aqui. Eil-as! exclamei, theatralmente, despejando um bolso de cabelludas no collo da mocinha assombrada, emquanto a velha erguia as mãos para o céu, convicta de milagre.


Saí, impressionado. Atrás dessa cadeia de coincidencias haveria um ligador de elos? O desejo da doentinha; as pesquizas da irmã; o meu achado; a minha visita á velha; o nosso encontro lá; as frutas no bolso, coisa que jamais fiz. Acaso, coincidencia: palavras que definem a trama, mas não a explicam. E tudo na vida não é assim? Definimos, classificamos. Não explicamos coisa nenhuma. Falta-nos o sexto sentido.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.