A velhinha.


A minha boa velha, lá do fim da rua, contou-me nova historia da sua cabra. Vim cheio de cabras na cabeça. Fui á Grecia ver a cabra de Jupiter, cheguei a Cachemira e tive a visão dos burricos de Poppéa.

D'ahi o povoar-se-me o sonho da manhã de magnificos animaes domesticos. Lembro-me dum trecho: lucta feroz entre formosissimo touro e um homem de pé sobre um carrinho de creança, tirado por grande bode preto.

Ao acordar-me, de nada me lembrei. Foi depois, ao ler umas paginas de Nietzsche, que dum jacto me veio o sonho e com elle a idéa de jogar na cabra. Fil-o e deu a cabra.

Tenho tres factos coincidentes: o sonhar com a cabra, o deliberar a parada e o dar o jogo. O segundo tem origem evidente no primeiro, mas o deliberar firmemente, de convicção inconsciente, já não contitue precessus singelo e cahe no terreno do inexplicavel; o advento do terceiro desnorteia-me.

Existiam já os dois primeiros quando o terceiro, increado até o momento de correr a roda, sobreveio. Existiu, sem germen causal.

Sem germen causal!... Como é facil o malabarismo das palavras! Para a mechanica das forças naturaes o futuro está rigorosamente predeterminado pelos factores que o terão como resultante. A+B+C+D+ .............. = F. Emquanto se vão seriando os factores cuja resultante está no futuro, pari-passu se vae predeterminando o futuro, que não existe e já está condicionado. Isto é imagem grosseira do como procede o mechanismo da natureza, agindo com milhões de factores que em absoluto escapam á percepção humana consciente.

Consciente, porque pela percepção inconsciente esse total-futuro é ás vezes vislumbrado. Como? Ignoramos. Temos a palavra presentimento para nomear o phenomeno, e contentamo-nos com isso. A minha resolução de jogar, o meu palpite, não será uma dessas percepções inconscientes? Adivinhar! Palavra de sentido immensamente profundo. Será conhecer, por meio dum processo desconhecido, o que ainda se não effectivou, mas que se effectivará fatalmente? Adquiriremos um dia, o sexto sentido devinatorio, que devassará o futuro como a visão devassa o espaço?

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.