"Errare"...


NO principio era o macaco. Integrado na natureza, a exemplo de toda a animalidade, tinha, como todos os animaes, a sabedoria dos instinctos, a disciplina da cellula em um grande corpo, a afinação de uma nota no concerto universal.

A natureza, una, regia-se pelas leis communs que mais tarde philosophos chamaram biologicas. Ave ou peixe, mosca ou proboscida, a vida na terra evolvia num sentido profundamente sabio de adaptação, sob a vigilancia do deus unico — o Instincto.

Mas um macaco, certa vez, falseou de equilibrio em seu galho e cahiu por terra. E ao cahir chocou num lagedo o craneo continente, de modo a lesar de lesão grave o cerebro conteúdo.

Lesão grave! Gravissima!

Lesão especialissima que determinou naquelles miolos um estado pathologico "sui-generis", absolutamente inedito e jamais repetido em tombo nenhum de nenhum outro ser vivente.

Consequencia: o lesado entrou a agir de maneira diversa dos seus irmãos. Emquanto estes, felizes, continuavam a viver na feliz integração da natureza, guiados sempre pelo deus interior, o macaco doente, victima de eterna cephalalgia, punha-se de lado, pensativo, a ver e a errar.

Errava na escolha dos alimentos, errava na eleição dos galhos de pouso, errava na escolha das macacas.

Entre irmãos infalliveis, vivissimos e sadios, o pobre doente distrahia-se, todo elle movimentos morosos, incoherentes, e pensava.

A lesão fez abrolhar em seu cerebro o germem de uma coisa inedita para o mundo, que mais tarde se denominou — intelligencia.

Coisa nova, doença mental, desvio, força não prevista no plano biologico, mal susceptivel de evolução imprevisivel, norteada para rumos não sonhados pela mechanica da vida. E mal que se perpetuaria na descendencia do macaco lesado, dando como resultante o homo. Hoje, com milhares de annos de permeio, nós, descendentes do pensativo inicial, sentimos no cerebro a força já immensa que resultou da lesão.

A dor de cabeça persiste e força-nos a caminhar sempre em divorcio com os sabios mandamentos de Bios.

Creação extra-natural, rebelde ás leis da unidade, evolve sempre, cresce e arrasta comsigo o ser parasitado, como o cancro arrasta e determina o canceroso.

E o homo, triste descendencia de um individuo lesado, vê toda a especie feliz, parada no admiravel equilibrio que o Instincto crea.

E queixa-se.

E toma aspirina.

E multiplica-se, e inventa, e crea, e faz-se o genio novo da terra, algo super, a coisa extra, o desnorteante flagello do planeta e o peor flagello de si proprio.

E é soberanamente infeliz.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.