Marina:
Hoje, 11 de maio de 1946, passei a manhã destruindo papeis velhos. Encontrei um antigo caderno de notas que ésó eu entendo e tive a ideia,em vez de destrui-lo,de da-lo á boa amiga,como curiosidade. E bati esta copia das notas,com algumas observações esclarecedoras. Nessas notas aparecem os germes de varias coisas que escrevi - inclusive o "começo" de Narizinho - o olho d'agua da minha literatura infantil. É um caderno-documento.
Joãozinho pegou da peneira de tia Joaquina e foi mariscar no ribeirão do pasto. Arregaçou a calça, um palmo acima do joelho, e entrou n'agua. Sua irmãzinha Nenê foi com ele, levando uma lata para pôr os peixes. O ribeirão era raso,de aguas muito claras.Viam-se no fundo a areia alva e as pedrinhas redondas. Guarús em quantidade nadavam de todos os lados,e quando caia n'agua algum cisquinho,corriam todos para ver se era alguma coisa de comer. Camarão não se via nenhum. Andavam sempre escondidos nos capins da beira,e como são transparentes é dificil enxerga-los. Joãozinho entrou na agua e mergulhou a peneira.Não saiu nem um peixe,só um baratão e mais um bicho feio,cheio de pernas esquisitas. Jogou para o capim o baratão e mergulhou a peneira em outro lugar. Agora sim,saiu uma porção de guarusinhos e um camarão dos miudos. Os guarús começaram a saltar na peneira e o os marão tambem,e este,de repente,saltou fora da peneira.Nenê pulava de contenteza.
-Ponha aqui,João,esse maionzinho e solte os outros para crescerem.
João escolheu os tres mais taludos e botou-os na lata onde eles começaram a pular mais ainda.
-Ponha agua na lata,disse Joãozinho,senão eles saltam fora.
Nenê encheu a lata pelo meio e os gurús sossegaram. Continuou a pescaria.Cada vez que a peneira afundava na agua,quando saia vinha com mais peixinhos,mas sempre guarús e lá um ou outro camarão.De repente,
-Uma traira! gritou Joãozinho,jogando a peneira com o peixe na grama.
-Que bruto! exclamou Nenê pulando de alegria.Este valeu valeu a pena — e eia pegando a traira,que tinha quasi um palmo de tamanho, quando o menino berrou:
- Olhe a boba! Não vê que isso morde? Nenê encolheu a mão e recuou um passo,enquanto o irmão saia da agua para segurar o "peixão". Com muito cuidado, e depois de muito custo, conseguiu segurar a bicho pela cauda e deita-lo na lata,onde ele fez um reboliço,espantando ospobres guarús. E ficaram os dois meninos de cocaras,a admirar no fundo da lata a bela pescaria.
-Já dá para uma fritada,disse Nenê.
- Qual o que! Não chega nem para a cova de um dente. retrucou Joãozinho,que era muito guloso,e entrou na agua novamente. Pegou mais guarús em quantidade,e continuou pondo na lata só os barrigudos e soltando pirquiras. Camarões tambem apanhou uma duzia,e tambem uma "mocinha" e tres lambaris novos,e um "cascudinho".
-Agora chega,disse Nenê,que já estava sendo incomodada pelo sol quente.Vamos embora para dar tempo de fritar a peixada para o almoço.
-Espere um pouco,respondeu Joãozinho. Ali adiante tem um poço onde mora um camarão"deste tamanho",aquele que me escapou outro dia. Hoje pego o ladrão - e foi para lá,mergulhou a peneira de mansinho e bem fundo, e tirou-a de repente.
-Pegou! gritou Nenê vendo pinotear na peneira um baita camarão,cascudo e preto. João radiante atirou com ele para a grama,exclamando:
-Esse é o rei de todos! Está bom de comer recheado.
Saiu da agua e voltaram para casa. Lá repartiram o peixe;e enquanto Joãozinho fazia ele mesmo uma fritada,Nenê pôs os seus numa bacia d'agua eficou muito atenta a observar os pobresinhos. Como estivesse muito calor,Nenê cochilou. E esta va dorme-não-dorme, quando vê sair da bacia o camarão grande,com coroa de rei na cabeça,um manto de cauda e um cetro de ouro na mão. Atrás dele, segurando a cauda do manto,vinham dois "cascudos". Mais atrás, todos os guarús,montados a cavalo em baratões d'agua. Formavam um cortejo.
Nenê não teve medo nenhum.Olhou para si e viu que ela tambem estava virada numa linda camarôa,e que todas as pessoas de sua casa tambem eram camarões. O rei Camarão aproximou-se com muita cerimonia e,chegando perto dela, tirou a coroa e disse:
-Ilustrissima,excelentissima senhora princesa do Ribeirão! Eu sou o rei da Camaronia,me chamo Don Cascudo I, e venho pedir a princesa em casamento.
-Pois não,meu caro rei! Estou ás ordens de V.Majestade,disse a menina - e dando um salto caiu nos braços do rei. O cortejo então voltou e se dirigiu para a igreja,que era uma moita de guanxuma á beira o rio. Estava enfeitada de floresinhas do mato,com o chão coberto de areia do rio. Um altar de pedrinhas d'agua,e na frente do altar um baratão de batina, com uma pedrinha redonda e chata na cabeça,fingindo de coroa. Ao lado do padre,um filhote de guarú,que servia de coroainha. Em cima,no côro da igreja,havia uma orquestra de grilos,dirigida por uma cigarra. E de um lado o povo,eom os graúdos na frente - sapos, trairas,lambaris, "cascudos",etc; e a arraia-miuda atrás - baratinhas, moscas d'agua,larvas,minhocas, etc
Começou o casamento. Disse o padre em latim:
-Em nome de Deus conjugo vobis.Está casado S.M. o rei Cascudo com a princesa do Ribeirão. Podem ir embora.
O rei e a nova rainha sairam da igreja,muito importantes da vida,e foram para o palacio imperial. O palacio era no fundo da agua,debaixo de uma grande pedra. O rei entrou na agua com toda a sua comitiva, mas quando chegou a vez da rainha esta sentiu uma grande aflição, como se estivesse morrendo afogada,e abriu os olhos... Tudo sumiu. O rei voltou para a bacia d'agua virado em simples camarão, e os outros a mesma coisa,e Nenêolhando para si,viu que tinha perdido a forma de camarôa. Fôra tudo um sonho. E,bem bem acordou, e entrou no quarto o Joãozinho comendo um bolo de peixe.
-Boba! Enquanto você namora os peixinhos, eu como os meus.
Nenê ficou com inveja,agarrou no rei,nos guardas e na comitiva e correu com eles para a cosinha. Dali a pouco a corte tóda chiava na frigideira.
( Temos aqui o começo da historia da Menina do Narizinho Arebitado. Tudo mais saiu daí. Joaquina... Joaquina existiu,uma mulata do norte,que fôra escrava de minha familia. Costumava ir aos domingos mariscar de peneira nos riachos da fazenda - e a historia rescende a impressão infantil).
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.