I [1]

Nos Cantos populares do Alentejo, incluiu A. Tomás Pires a seguinte quadra, recolhida, em Elvas (1884), da tradição oral ([2]):

No ventre da Virgem bela
incarnou Jesus por graça:
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça.

Na Revista lusitana, ii, 343, o mesmo etnógrafo publicou mais esta variante:

No seio da Virgem-Mãe
incarnou divina graça:
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça,

variante que havia saído n-a Província de 5 de Agôsto de 1887 (artigo Nas férias grandes, do Sr. Queirós Veloso), no Diário ilustrado de 22 de Abril de 1888 (Cancioneiro popular, n.° mcccxlvi) e n-o Tempo de 19 de Janeiro de 1890.

Em todos êstes lugares se chamava «popular» à trova.

Tomás Pires, posteriormente, ouviu em Elvas um «Canto de Natal», em cujas quadras «se revela, não a litteratura dos simples, mas a dos lettrados» ([3]), e que termina desta maneira:

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Assim que o galo cantou,
com prazer e alegria,
nasceu o Verbo divino
filho da Virgem Maria;

entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça.
Pariu e ficou donzela
Maria cheia de graça. [4]

E, em vista disto, a trova passou à categoria de «popularizada».

A «ideia», encontrou-a Tomás Pires mais tarde em Manuel Bernardes, julgando então «provar que, se não a trova, ao menos a tão brilhante interpretação da virgindade immaculada de Maria, pertence» ([5]) àquele escritor. Eis o passo: — «E Christo nosso Salvador ao sahir da clausura do Sagrado ventre da Senhora, não necessitava de que as portas della se abrissem: sahio assim como o rayo do Sol penetra a vidraça, sem esta se quebrar, nem abrir, antes ficando mais fermosa e resplandecente.» ([6])

E encontrou-a depois ainda num livro do século XVIII, Vida admiravel de Santa Getrudis a Magna: — «Seguio-se dia de Natal, onde esta Santa vio espiritualmente nascer a Christo das purissimas entranhas da sempre Virgem Maria, da sorte que o Sol penetra o vidro, sem macular a vidraça». [7]

A feliz comparação encontra-se em mais livros, e não é raridade ouvi-la nos sermões.

Quem seria o autor dela?

Até prova em contrário, — Pedro Lombardo.

Lê-se na obra Institutiones theologiae theoreticae seu Dogmatico-polemicae, de Fr. Alberto Knoll (Auguste Taurinorum 1888, vol. i, pág. 445): — «Communis tamen Ss. Patrum et theologorum sententia est, Christum cum vero et naturali suo corpore exivisse ex clauso Mariae utero eum penetrando; quam sententiam iam proposuit Magister sentent. dicens: «Sol penetrat vitrum, nec frangitur aut violatur; sic Virgo peperit, nec maculata fuit». —

Magister sententiarum era Pedro Lombardo, que nasceu no fim do século XI. A edição pr. das Sentenças é de 1474 (Nuremberga): Petri Lombardi, episcopi parisiensis, sententiarum libri quatuor.

No trecho acima transcrito, de Manuel Bernardes, nota-se ainda a influência de outros textos religiosos. In Divi Thomae Aquinatis Summa Theologica (Paris 1864, vol. iv, col. 262), lê-se: ... «Sed contra est quod dicitur Ezech. 44, 2: Porta haec clausa erit, et non aperietur, et vir non transibit per eam, quoniam Dominus Deus Israel ingressus est per eam; quod exponens Augustinus (alius auctor) in quodam sermone dicit: Quid est PORTA [sic] in domo Domini CLAUSA [sic], nisi quòd Maria semper erit intacta? Et quid est: «Homo non transibit per eam,» nisi quòd Joseph non cognoscet eam? Et quid est: «Dominus solus intrat et egreditur per eam,» nisi quòd Spiritus sanctus impraegnabit eam, et angelorum Dominus nascetur per eam? Et quid est: «Clausa erit aeternum,» nisi quòd Maria virgo est ante partum, et virgo in partu, et virgo post partum?» — Vid. ainda Alberto Knoll, op. cit., pág. 446.

Na comparação de que se trata há a considerar, além da simples passagem do Sol pelo vidro, a pureza e, sem dúvida, a acção fecundante do Sol. Bossuet disse: ... «il [Deus] s’unira à votre corps [de Maria]: mais il faut pour cela qu’il soit plus pur que les rayons du soleil:» OEuvres choisies de Bossuet: VII —Elévations sur les mystères — , Paris 1900, pág. 187 . Quanto à a «acção fecundante» do sol, recordarei apenas que um deus dos siameses «a été conçu par une vierge, des rayons du soleil, et mis au monde sans douleur», Larousse, s. v. vierge. Entrevêem-se, assim, as determinantes da bela comparação de Pedro Lombardo, sôbre as quais me não demorarei, por aqui só virem acidentalmente.

Divulgada por livros e prègadores, tal comparação, caindo no goto, como o povo diz, foi posta em verso por qualquer poeta, talvez popular, talvez não. Quem no poderá dizer com certeza?

A «idéia», essa é que fica provado que não é do povo, nem de Bernardes, nem do autor da Vida admiravel de Santa Getrudis...

[Viana-do-Castelo, 10 de Julho de 1917.]

Cláudio Basto.

  1. Publicado na Lusa, i, 69-70 (n.° de 15 de Julho de 1917), sob o título: A Quadra No ventre da Virgem bela, etc.
  2. Cfr. Revista lusitana, ii, 343.
  3. Rev. lus., loc. cit.
  4. Ibid., pág. 344.
  5. Ibid., xii, pág. 75.
  6. Pam partido en pequeninos, tômo i, § 5.°, pág. 33.
  7. Pág. 89. — Vid. Rev. lus., xiii, pág. 41.