O grande debate que provocara na Câmara o projeto de formação de um novo Estado na federação nacional apaixonou não só a opinião pública, mas também (é extraordinário) os profissionais da política.
Em torno do projeto, interesses de toda a ordem gravitavam. Um grande número de cargos políticos e administrativos iam ser criados; e, se bem que a passagem do projeto de lei não fosse para já, os chefes, chefetes, subchefes, ajudantes, capatazes políticos se agitavam e pediam, e desejavam, e sonhavam com este e aquele lugar para este ou aquele dos seus apaniguados.
De resto, além desse resultado palpável do projeto, havia nele outro alcance que só os profissionais da política entreviam. Com a criação de um novo Estado nasceria naturalmente uma nova bancada da representação nacional no Senado e na Câmara; e o partido dominante, republicano radical, temia não eleger a totalidade dela.
Bastos, o seu poderoso e temido chefe, que detinha o domínio político do pais, hesitava em apoiar ou contrariar francamente o projeto e, a respeito, só tinha frases vagas e gestos de duvidoso sentido. Os seus asseclas, os muitos que lhe obedeciam cegamente, sem a palavra devida, não sabiam o que dizer; e os mais atarantados eram os seus jornalistas e parlamentares. Uns, apoiavam; outros, combatiam; outros, ainda, ora apoiavam, ora combatiam.
Essa desordem nos arraiais políticos, essa interrupção do trilho guiador, excitava os ânimos dos legisladores, preocupados, todos, quer combatessem, quer apoiassem, em agradar o chefe e revelar que haviam descoberto o pensamento oculto de Bastos - porque o Congresso era todo deste, a não ser uma reduzida minoria que, no afã de combatê-lo, ora dizia não, ora sim, conforme supunha que Basto queria ou não a criação de uma nova unidade federal.
Deputados houve que cortaram as relações amistosas, tão somente porque, no calor da discussão, um aparte mais veemente um deles proferira, quase sem reflexão.
Dizia-se à boca pequena que o projeto tinha por fim acrescer a representação federal de jeito que, na próxima legislatura, tivesse o Congresso os dois terços necessários para rejeitar o "veto" ao projeto de venda de um dos mais importantes próprios nacionais. Cochichavam que tal influência receberia tanto; que tal outro já havia recebido metade da gratificação prometida; que a esposa de um diplomata também tinha interesse no negócio, além de apontarem outros padrinhos, já conhecidos por todos, como protetores de tais cambalachos.
Ao certo, o que havia em torno da proposição parlamentar, o grosso público não sabia, e que ela podia trazer no bojo tudo o que se dizia, era admissível. A imitação do regime político dos Estados Unidos não ficou restrita à Constituição; aos poucos, como conseqüência ou não, conscientemente ou sem pensamento anterior, a imitação se estendeu aos seus escusos processos de traficâncias em votos e medidas de governo.
A massa, a população interessava-se pelo debate, pesava argumentos, sem suspeitar que tanto esforço de inteligência escondesse uma vulgar mascateação ou um arranjo de políticos.
Fosse a importância do assunto ou fossem os interesses subalternos em jogo, o certo é que ocuparam a tribuna os mais mudos deputados e os mais céticos foram ainda encontrar no fundo deles mesmos, ardor e vigor combativos.
Entre as revelações parlamentares que surgiram no momento, uma causou espanto. Era quase desconhecida da Câmara, e completamente do público, a existência do Deputado Numa Pompílio de Castro.
Apesar de nome tão auspicioso para o ofício de legislador, os próprios contínuos não lhe guardavam com facilidade nem o nome nem os traços fisionômicos. Durante muito tempo, chamaram-no de Nuno; e, nos primeiros meses de seu mandato, freqüentemente impediram-lhe a entrada em certas dependências, a menos que o fizesse pela porta por onde penetrara na véspera. Reconhecido e empossado, não deu sinal de si durante o primeiro ano e meio de legislatura. Passou todos esses longos meses a dormitar na sua bancada, pouco conversando, enigmático, votando automaticamente com o líder e designado pelos informados como - "O genro do Cogominho". Era o deputado ideal; já se sabia de antemão a sua opinião, o seu voto, e as suas presenças nas sessões era fatal. Se na passagem de algum projeto, anteviam dificuldades na obtenção da maioria, contavam logo com o voto do "genro do Cogominho". Ele vota conosco, diziam os cabalistas, a questão é saber o que o Bastos quer e o líder manda.
A sua colaboração, por esse tempo, para a felicidade nacional, se não foi fecunda, foi das mais tácitas de que se há notícia.
O deputado Pieterzoon, um gordo descendente de holandês, mas cuja malícia não tinham nem o peso do seu corpo, nem o da sua raça, disse certa vez: —"Numa ainda não ouviu a Ninfa; quando o fizer - ai de nós!"
O deputado Salvador. que ouviu a frase indagou: —"Ele é fauno?" O homenzinho tinha visto um quadro - Ninfas e Faunos - e não havia meio de se separar na sua inteligência uma coisa da outra. Pieterzoon redargüiu: —"Não sei, meu caro, mesmo porque não se está bem certo de que os faunos fossem mudos."
Foi, portanto, com extraordinária surpresa, que se viu o deputado Numa tomar a palavra e fazer um discurso valioso. Parecia um milagre ver aquele sujeito tão mudo, tão esquivo, tão aparentemente sem idéias, lidar com as palavras, organizá-las convenientemente, exprimindo-se com bastante lógica.
A sua argumentação foi até das mais perfeitas e eruditas, sem que a erudição perturbasse a concatenação, a seriação lógica da tese a demonstrar. Mostrou que a nossa federação não atendia a tradições locais de costumes, de língua ou e história; que não foram pequenos países que se uniram por ter um liame comum, mas, tão somente um imenso país que se dividiu e procurou com uma mais ampla autonomia local, perfeição administrativa: e, assim sendo, não se compreendia nem o "patriotismo estadual" nem a existência de desmedidos Estados, verdadeiros impérios.
Os representantes dos jornais, não contando com tão inesperada revelação, denunciaram o entusiasmo com calorosos elogios publicados nas suas folhas, ao dia seguinte.
Dizia A Aurora : "O debate sobre a formação do Estado de Guaxupé (projeto 244-A), se outro serviço não prestou, pelo menos teve a vantagem de ter revelado ao país um poderoso orador. O sr. Numa Pompílio, até agora considerado como uma perfeita excrescência parlamentar, produziu ontem um discurso cheio de critério, em que se notam saber, elegância e propriedade de frases."
Na seção competente, O Intransigente noticiava: "Ontem, na Câmara, naquele indecente valhacouto de caixeiros de oligarcas abandalhados, houve novidade. O sr. Numa de Castro, que até o dia de ontem era tido por idiota, revelou-se um orador. É verdade que não pode emparelhar-se com os grandes oradores da Câmara. Faltam-lhe imagens, o seu vocabulário é pobre, a sua construção é rasteira; fala como conversa. quase terra à terra, sem as imagens que tanto tornam notável o sr. Gracimundo Rocha. O seu discurso foi ouvido no maior silêncio e impressionou francamente a Câmara. Ainda bem que isso lhe desculpa um pouco o ser associado à deslavada oligarquia dos Cogominhos."
Um outro jornal, que se tinha por neutro, e aqui e ali, encontravam-se nele opiniões bem firmadas, contava a estréia da seguinte forma: "O Sr. Numa Cogominho parece ter esperado o momento azado de revelar-se. Até agora, depois de ter entrado para a Câmara, os trabalhos parlamentares têm se limitado a discussões corriqueiras de projetos pessoais, de questiúnculas políticas e mesmo do estafado orçamento. A sua cultura histórica e o seu saber sociológico pediam outros pretextos para se revelarem. Ontem, eles foram encontrados na discussão do projeto n.º 244-A. Toda gente sabe de que cuida esse projeto, mas o que toda gente não supôs era de que maneira elegante e sábia, ao mesmo tempo, ele podia ser tratado. O Sr. Numa fez isso e com muita discrição oratória, poucos tropos, sem guirlandas de frases. É simples a sua maneira de falar, calma e sóbria, sem nada daquilo que os latinos chamavam de asiático. Pode-se dizer dela o que já se disse do estilo de Descartes: "il n'a que des idées et pas de style visible."
Antes que acabasse a semana, as revistas ilustradas - Os Sucessos - A Nota - O Mequetrefe - publicaram o retrato da nova glória parlamentar e a primeira, a sua biografia desenvolvida. A repercussão do triunfo foi tal que, quando, dias após, o Dr. Numa atravessou a rua do Ouvidor, trazendo ao lado a mulher, era já uma notabilidade apontada e gloriosa. Aquela gente que a enche, gente habituada a respeitar as glórias retratadas nas revistas ilustradas e gabadas diariamente nos quotidianos, reconheceu-o e olho-o com o alto respeito que se deve a um grande orador parlamentar.
Numa caminhava acanhado, de cabeça baixa, trôpego um tanto, mas a mulher, D. Edgarda, pisava com segurança, muito naturalmente, e com a fisionomia cheia de alegria contida.
Esforçava-se por não perder o que diziam; e, ao menor comentário feito à glória do marido, procurava de soslaio ver no grupo de quem partia. Os seus olhos, ao chegar aos cantos das órbitas, fulguravam um instante e rapidamente se punham na posição normal. Se parava para falar a um conhecido, a alegria contida arrebentava em demorados sorrisos e frases meigas, dirigidas às amigas ou aos filhos destas, se as acompanhavam; e nunca o seu longo olhar foi tão longo e tão líquido e nunca brilhou tanto o esmalte de seus dentes na concha nacarada dos seus lábios.
Desceram assim os dois lentamente a rua, parando aqui e ali, gozando aos goles o licor inebriante do triunfo. Cumprimentos não faltavam. Numa era detido por este e aquele, mas, dos muitos que o cumprimentaram. um ele apreciou sobremodo. As palavras do Inácio Costa foram-lhe ao fundo d'alma. A mulher não as ouvira bem, ficara atendendo outro conhecimento e Costa passara a dizer:
— Meu caro Dr. Numa, gostei imensamente do seu discurso. Para mim, achei nas suas palavras um bálsamo tranqüilizador e patriótico. Estávamos voltando muito ao carrancismo egoísta dos conselheiros monárquicos. Os princípios republicanos estavam sendo esquecidos. Precisamos sempre reavivá-los. Ao mais digno! - é o meu pensamento.
Este Costa era funcionário público e fora da Escola Militar, donde trouxera uma fórmulas positivistas e um forte crença nos efeitos milagrosos da palavra república. Havia no seu feitio mental uma grande incapacidade para a crítica, para a comparação e fazia depender toda a felicidade da população numa simples modificação na forma de transmissão da chefia do Estado. Passara pelos jacobinos, florianistas e tinha a intolerância que os caracteriza, e a ferocidade política que os caracterizou.
Feroz e intolerante, com o apoio do positivismo autoritário, a sua concepção de governo se consubstanciava na ditadura e daí resvalava para o despotismo militar. Não se dirá que não fosse sincero; ele o era, embora houvesse nos seus intuitos, alguma mescla de interesse de melhoria na sua situação burocrática.
Julgava-se com a certeza; e, firmado na ciência, pois tirava toda a sua argumentação do positivismo, todo ele baseado na ciência e conseqüência dela, principalmente da matemática, condenava os adversários à fogueira.
Escusado é dizer que pouco sabia de matemática e falava por fé. Era um crente que tinha a revelação da certeza política.
Numa prezou muito a sua opinião por dois motivos. Costa escrevia nos jornais e era ouvido com atenção pelo poderoso chefe Bastos.
Esta última razão era por demais ponderável, porque Bastos tinha o mesmo feitio mental de Costa; e julgava imprescindível a manutenção da República, necessária à integração do Brasil no regime político da América. Não se atina bem por que seja isso necessário, pois é perfeitamente sabido que, antes de nós, os argentinos, nos quais essa espécie de gente encontra modelo, quiseram lá implantar a forma monárquica.
Costa e Bastos eram crentes, fanáticos com a mania de catequese de qualquer jeito e não discutiam a sua fé.
Numa viu nas palavras de Costa a aprovação do grande chefe - o que consolidava o discreto elogio que este último lhe fizera: - "Sr. Numa, o senhor é um republicano!..."
Numa Pompílio de Castro, a recente glória da tribuna política nacional, cuja biografia ocupou quatro páginas da Os Sucessos , não tinha história nem interessante nem longa. Filho de um pequeno empregado de um hospital do Norte, fizera-se bacharel em Direito à custa das maiores privações. Logo menino, não lhe solicitaram os lados extraordinários da vida. Embora humilde não foram as cumeadas da vida que ele viu. Viu a formatura, o doutorado, isto é, ser um dos brâmanes privilegiados, dominando sem grande luta e provas de valor, pois, com ele, afastava uma grande parte dos concorrentes.
O filho do escriturário, desprezado pelos doutores, percebeu logo que era preciso ser doutor fosse como fosse.
Arranjou daqui e dali os preparatórios; e, durante o curso, levou a mais miserável vida que se pode imaginar. Alimentava-se dias inteiros de café e pão, dormia em ciam de jornais, mas não deixava jamais de ir às aulas, de sentar-se ao banco da música, de fazer perguntas ao lente e prestar exames.
De quando em quando, arranjava um emprego efêmero, lições e munia-se de roupa. Formou-se aos vinte e quatro anos, tendo vivido desde os dezesseis sobre si.
Parecia que uma energia dessas se devesse empregar em altos intuitos; há aí, porém, uma questão de ponto de vista. No seu entender, o máximo escopo da vida era formar-se e formou-se com grande esforço e tenacidade.
Não que houvesse nele um alto amor ao saber, uma alta estima às matérias que estudava e das quais fazia exame. Odiava-as até. Todas aquelas complicações de direitos e outras disciplinas pareciam-lhe vazias de sentido, sem substância, puras aparências e mesmo sem grande utilidade e significação, a não ser a de constituírem barreiras e obstáculos, destinados à seleção dos homens.
O jovem Numa não separava o conceito das disciplinas dos da formatura; Economia Política, Direito Romano, Finanças e Medicina Legal não respondiam a certas necessidades da comunhão humana; e, se tais matérias foram criadas, descobertas ou inventadas, o foram tão somente para fabricar bacharéis em Direito. Com as outras carreiras, acontecia o mesmo.
Tal idéia pautava e regia o seu curso; instantes depois de acabado o exame Pompílio esquecia a disciplina.
Demais, pode dizer-se que nunca vira um livro. Todo o seu curso fora feito estudando nas apostilas, cadernos e pontos, organizados por outrem. Decorava aqueles períodos mastigados, triturados e os repetia palavra por palavra ao lente. Prevenia-se para a prova, imaginando as perguntas do professor, e organizava as respostas, citando autoridades de vários países.
Foi sempre dos primeiros estudantes e, se não foi o primeiro fim do curso, deveu à nota baixa que tirou em Medicina Legal. Vale a pena contar o caso. O lente perguntou-lhe:
— Qual a quantidade de arsênico que pode ser encontrada nas glândulas tireóideas?
Respondeu logo:
— Dezessete gramas.
Houve um grande espanto por parte do examinador e o estudante surpreendeu-se com o espanto do lente.
Não fora a sua ignorância que o fizera dizer semelhante dislate; foram os cadernos. O primeiro estudante escrevera certo; o copista que se seguira, atrapalhara-se na vírgula dos décimos e, de copista em copista, de erro em erro a apostila levara Numa a repetir tão imensa tolice nas bochechas dos seus sábios professores.
O seu rival no curso aproveitou a descaída e tirou o prêmio. Foi a única amargura da sua vida. Nascido pobremente, tendo passado toda espécie de privações e necessidades, nada o fazia sofrer profundamente. Logo que se viu formado partiu para a sua terra natal e lá andou um ano inteiro a receber homenagens, sempre estranhando que alguns dos seus companheiros de colégio não o chamassem por doutor.
Vendo que nada obtinha, deixou os penates paternos e veio em busca da fortuna. Em breve tempo, graças à sua insistência junto a um dos potentados da República, Numa foi despachado promotor de uma comarca de Estado longínquo. Aos poucos, com aquele seu faro de adivinhar onde estava o vencedor - qualidade que lhe vinha não de uma sagacidade natural e própria, mas de uma ausência total de emoção, de imaginação e orgulho inteligente - foi subindo até juiz de Direito.
Durante toda a sua passagem pela magistratura, Numa adquirira fama de talento. Fundava jornais onde escrevia panegíricos aos chefes, organizava bandas de música e animava representações teatrais em pequenos teatros de fortuna.
Não representava, mas ensaiava esse pequeno repertório da roça, velhas comédias que têm o único propósito de fazer rir, e, aos poucos as grandes cidades as banem e vão refugiar-se no interior - Os Trinta Botões, A Senhora Está Dormindo, O Bilontra.
Aos atores improvisados ensinava a entonação, a gesticulação, marcava a peça melhor que o próprio autor.
Fazendo de sua vara de juiz alfanje de emir obediente aos desígnios de Neves Cogominho, não estranharam que, eleito este presidente do Estado, Numa fosse feito chefe de polícia.
O novo presidente vivera sempre afastado do Estado, desde a proclamação da República. Sucessivamente deputado e senador, deixava-se ficar nas margens da Guanabara dominando o feudo por intermédio de delegados e prepostos.
Não conhecia bem Numa, embora o tivesse recomendado para obter a primeira nomeação; e o aceitou como chefe de polícia para satisfazer os chefes locais.
Cogominho sabia que esse seu afastamento do Estado não era bem visto pelos semi-rebeldes do seu domínio. Uma vez ou outra, acusavam-no pelas rubras folhas oposicionistas de ter um imenso desprezo pelo torrão natal e só lembrar-se dele para obter vantagens políticas.
No intuito de calar esse murmúrio, Cogominho fez-se eleger governador, embora fosse grande a diferença de subsídio entre aquele cargo e o de senador; e foi para Itaoca, a capital.
Não foi só; e, para mais completamente demonstrar o seu amor à terra natal, levou para o Estado toda a família. Deixou o filho que andava pelos estudos no Rio de Janeiro; e instalou-se no palácio com a filha, uma velha tia e os fâmulos de confiança que levava. Era viúvo desde muito e a chegada da família ducal muito alegrou os itaoquenses. As festas foram as mesmas com que se recebiam ali os governadores, a alegria foi a mesmas, os discursos foram os mesmos, as boas vindas as mesmas e a dúvida de sua estabilidade no domínio de Sepotuba foi a mesma no ânimo de Cogominho.
Numa esforçara-se muito para provar ao grande sepotubense o seu talento e a sua dedicação. Discursara ao desembarque, ao jantar, e notou com especial agrado que a filha de Cogominho não era de todo indiferente à sua oratória.
De indústria, o juiz se mantivera até então solteiro. Esperava, com rara segurança de coração, que o casamento lhe desse o definitivo empurrão na vida. Aproveitara sempre o seu estado civil para encarreirar-se. Ora ameaçava casar com a filha de Fulano e obtinha isto; ora deixava transparecer que gostava da filha de Beltrano, e conseguia aquilo; e se estava chefe de polícia, devia ao fato de ter julgado o Coronel Flores, poderosa influência do município de Catimbao, que Numa pretendia casar-se com a filha dele.
A presença da menina Cogominho fê-lo pensar mais alto e relembrar as suas desmedidas ambições casamenteiras. Não que ele fosse belo e galanteador, mas, perfeitamente sabia que essas coisas não são indispensáveis para um bom casamento, desde que o noivo não viesse a fazer má figura no eirado dos diplomatas e outras pessoa exigentes da representação interna e externa do Brasil.
Com toda firmeza, com aquela firmeza que empregou para formar-se, Numa tratou de casar-se com a filha de Cogominho e não viu diante dele obstáculo algum, como aquele não vira quando tratou de casar-se com a filha do capitalista Gomes.
Edgarda era bem mais moça, mas já tinha passado dos vinte anos e viera para Itaoca cheia de uma curiosidade constrangida. Nascida e criada no Rio, tendo vivido sempre nas rodas senatoriais e burguesas, tinha ilusões de nobreza. Acompanhava o pai com certa repugnância; ao mesmo tempo, porém, era atraída pela existência "dessas cidades" que não são o Rio. Encontrava no bacharel quem lhe informasse sobre a vida do Estado, a sua história, a sua indústria, as suas cidades; e as pedia com o espírito de uma marquesa ao intendente dos seus domínios.
Esta concepção de nobreza viera da educação das irmãs de caridade e a defeituosa instrução que recebera e não pudera ajudar à sua real inteligência a corrigi-la.
Não metera em linha de conta que a nobreza supõe domínio efetivo e perpetuidade na família desse domínio, garantida por privilégios, soberania, tradições de raça e sangue; e a ilusão que as irmãs lhe instilaram no espírito aos dezesseis anos, ficou-lhe sempre no subconsciente.
Como castelã, sonhara sempre casamentos excepcionais; e, a todos que lhe insinuavam, certos rejeitava por prosaicos; e outros, por serem desproporcionados. Talvez se iludisse a si mesma; talvez já tivesse achado um que era do seu amor, mas não era de sua prudência. A castelã mais uma vez se fizera burguesinha...
Nunca supôs que aquele bacharel esguio, amarelado, cabelos duros, com um grande queixo, vestido com um apuro exagerado de provinciano, premeditasse casar-se com ela; mas, o ócio provinciano, a falta de galanteadores passáveis, a vontade de matar o tédio, fizeram-na esquecer a artificial representação que tinha de si mesma e aceitou as homenagens do chefe de polícia de seu pai.
O governador via com bons olhos a aproximação dos dois e pareceu-lhe que o casamento de ambos seria útil à sua política.
Conhecendo a fama do rapaz no Estado, a sua influência, o seu atrevimento, o seu despudor em fazer do seu cargo judicial instrumento das ambições políticas do partido e de opressão para os adversários, Cogominho percebeu bem que era melhor tê-lo por aliado, antes que se unisse a Flores quase sempre disposto a não lhe obedecer totalmente.
Era bom separar um do outro para que ambos mais tarde não lhe dessem o que fazer e mesmo o "tombo". A desfaçatez judiciária de Numa dava medida do que ele seria capaz de fazer quando o solicitassem grandes ambições e tivesse o apoio familiar de Flores.
O processo da "Boa Vista" indicava bem a alma do seu chefe de polícia. Flores, o Coronel, por uma questão de gado, invadiu certa vez a estância do rival, matando-lhe filhas, filhos e criados e deixando que a horda que o acompanhava saqueasse casas, moinhos, currais e estrebaria. Até portas trouxeram.
Devido à celeuma que o caso levantou no Rio, houve processo e Numa, apesar das testemunhas, apesar de todas as provas, despronunciou Flores e seus sequazes.
Como esta, eram muitas as causas em que o juiz se fizera criatura do caudilho e seu casamento com a filha deste dar-lhe-ia uma força extraordinária na política do Estado. O braço juntar-se-ia à cabeça...
Pouco depois de eleito deputado estadual, Numa Pompílio de Castro casara-se com a filha de Neves Cogominho sem surpresa para ninguém, nem mesmo para Flores que apadrinhara o antigo chefe de polícia.
Quando se fizeram as eleições federais, o genro do presidente foi feito deputado federal e, como tal, partiu par o Rio, apressado em tomar assento na Câmara Federal.
Tinha poucas relações e o seu desembarque não foi concorrido como era o do seu sogro. Contudo, alguns conhecimentos da mulher vieram, entre os quais um primo de que ele tinha notícia como extravagante de marca. Numa, então, conheceu-o; tratou-o com a polida severidade de suas virtudes judiciárias e admirou-se da satisfação com que sua mulher o acolheu e do olhar doce e curioso que o cobriu todo.
Neves Cogominho ficou em Itaoca acabando o mandato de presidente; e, durante o primeiro ano, o genro foi fazendo com cautela a sua iniciação de deputado e de bacharel bem casado. Não faltava às sessões, conversava pouco, não adiantava opiniões e guardava de cor as de Bastos, à cuja casa não deixava de ir em obediências às recomendações do sogro.
Não se demorava na rua, mas pouco conversava com a mulher; dava os passeios e fazia as visitas de circunstâncias.
A vida e ambos era, entretanto, plácida como a de um velho casal.
A mulher lia, lia muito e ele, a princípio, admirou-se muito com aquela leitura.
Para quê? Não sabia bem que prazer pudesse ela encontrar nos livros com os quais só lidou por obrigação... Nada disse, no entanto; ambos se entenderam e ele mesmo, as mais das vezes, se prontificou a trazer este ou aquele volume.
Os observadores que o viam entrar nas livrarias, adquirir livros e revistas, começaram a estimá-lo como estudioso e homem de bom gosto. No fim de poucos meses, era conhecido dos caixeiros e o deputado Numa Pompílio de Castro continuava a ser obscuro, os diários não falavam nele e, mesmo quando aparecia nas festas as seções mundanas dos jornais não lhe davam o nome.
A mulher em que o casamento já começava a pesar, aborrecia-se com essa obscuridade. Não o amara, não o supunha inteligente, mas havia não sei que de organizado nele, de médio, de segurança de processo, que esperou sempre que a política o fizesse pelo menos conhecido; mas, assim não o queria e o seu enlace era um desastre sem desculpa aos seus olhos.
Esperava-o na Câmara barulhento, discutindo e ele vivia calado; esperava-o atacado pelos jornais da oposição e eles não diziam nada; esperava-o conhecido de todos e ninguém o conhecia, até mesmo as suas amigas. Ainda há dias a Hortênsia não lhe tinha perguntado: "Edgarda, teu marido é deputado?" Precisava animá-lo; fazia-se mister isso.
De volta do enterro de uma parenta, a mulher de Numa vinha satisfeita. Nem sempre isso acontece, mas muitas vezes se dá, apesar de nós. Não se colhem bem os motivos, as razões profundas de se ter passado de uma emoção à contrária, o certo é que se tem como que um alívio n'alma, a impressão que se diminuíram os nossos pecados; ficamos melhor diante de nós mesmos, mais de acordo com Deus e com o Mistério.
Ficara Edgarda até o saimento, voltara e jantara muito contente com o marido e o primo Benevenuto, que raras vezes os visitava. A tarde passaram excepcionalmente comunicativos; e, muito ternos, marido e mulher, recolheram-se à hora do costume.
O dia amanheceu lindo, transparente, tranqüilo; e os galos se esqueceram das horas e foram cantando pela manhã em fora. As alturas destacavam-se na tela fina do azul infinito; o Corcovado curvava-se curioso sobre a casa em que habitavam e as janelas tiveram pressa em se abrir.
Num conservava os seus hábitos de estudante. Erguia-se da cama cedo, tomava banho e cedo procurava o café e os jornais. A mulher, que se demorava mais no leito, naquele dia acompanhara o marido. Ela ainda tomava o café, quando já o esposo lia os jornais.
O deputado buscava imediatamente o que, nas folhas, se dizia dos debates, os comentários, os artigos de fundo; e, ao ler um dos jornais, não pode deixar de dizer à mulher:
— Que elogio ao Caldas!
— Que Caldas? O Eduardo?
— Sim.
— E o que fez ele?
— Um discurso ontem.
A mulher serviu-se novamente de café, açucarou-o bem, arrepanhou o roupão que lhe ia deixando muito à mostra o peito rosado, e disse:
— Você por que não faz um, também?
Sem deixar o jornal, Numa atendeu, sacudindo os ombros:
— Ora!
Edgarda, depois de levar a xícara aos lábios, sorver um gole e descansá-la, observou:
— É preciso aparecer, Numa!
Com preguiça e mansidão, o marido objetou:
— Para que, Edgarda? Para quê? Há lá tanta gente inteligente que não preciso incomodar-me.
— Eu - fez ela - se estivesse no caso de você, por isso mesmo é que me incomodava. Você tem vergonha?
— Não, ao contrário; sou até desembaraçado, mas... mas... preciso estudar.
— Pois então estude! Que dificuldade há? Você por que não experimenta? Não se discute a tal questão do novo Estado?
— Discute-se.
— Por que você não fala?
— É... É... Mas...
— Precisa estudar, não é?
— É.
— Eu ajudo.
— Como? Você sabe?
— Não. Vejo os livros - pergunto a papai; você indica outros, tomo notas e depois você as redige. Lê alguns discursos e o resto se arranja.
— Não vai sair a coisa com algumas inconveniências!
— Qual! Passo a limpo e você leva a papai, para ver o que há.
A peça oratória foi assim composta; e, na redação final, Numa ficou muito contente com a habilidade da mulher. Encontrou muitas modificações felizes, muita frase bonita e cheio de um intensa alegria, perguntou:
— Você já escreve há muito tempo, Edgarda?
— Não, nunca escrevi. Por quê? - respondeu a mulher com algum estremecimento na voz.
— Por quê?... Porque tem muita coisa que você escreveu melhor do que eu.
— Pois você pode ficar certo de uma coisa: escrevi o que está no teu rascunho, modificando uma ou outra coisa, naturalmente.
Obtida a aprovação do sogro, Numa estudou o discurso como se fosse um papel de teatro. Não era sem antecedentes o processo; e ele o soube empregar magnificamente, pois a Câmara admirou-o e o seu sucesso foi grande e notado em toda a cidade.
Quando terminou, recebendo abraços, ouvindo aqui e acolá comentários, a sua lembrança ia para a casa paterna, lá no seu Estado longínquo; e agora, passada a emoção da estréia, colecionando parabéns e olhares admirativos, naquela rua que sagra as celebridades nacionais, as recordações lhe voltavam mais vivas e mais cheias de ternura.
Recordou-se bem da casa de seu pai, das suas dificuldades, das suas ânsias, e sobressaltos para se prevenir contra os chefes políticos que lhe queriam sempre arrebatar o emprego. Subia um partido, descia outro; os Castriotos reconciliavam-se com os Cíceros; os Cíceros deixavam os Castriotos e iam para os Coimbras; e sempre seu pai tinha que adivinhar essas marchas, essas reconciliações e separações, para manter o seu emprego, sem pode abster-se, obrigado a tomar partido para a sua própria segurança.
Lembrava-se bem da casa, caiada, meio de telha vã, meio forrada, com um largo quintal, tendo, aqui e ali, uma árvore, um cajueiro e os urubus teimosos misturados com as aves domésticas. E agora? Habitava um palácio, no meio da abundância, ao lado de uma linda mulher bem educada, onde iria... Muito pode a formatura! Se ele não se fizesse doutor, que seria?... Bem lhe pareceu desde menino, que a carta era a chave da riqueza, uma chave mágica a abrir todas as fechaduras da vida, suavemente, docemente, rapidamente, sem o mais tênue ruído. Uma gazua...
Tinha saber? Não sabia. Tinha talento? Não sabia. Que é que sabia ao certo? É que era formado. Examinou toda a sua vida de juiz e as claudicações lhe vieram com afiada nitidez. Devia ter procedido de outra forma? Devia, ma que lhe adiantava? Ficar lá pelo interior a vegetar em lugarejos. O que ele sentia bem, o que lhe tocavam o que penetrava nele, não eram as faltas no cumprimento dos seus deveres; era a sensação de que estava em uma grande cidade, que tinha uma casa, que o dia de amanhã estava garantido e para viver não precisava esforçar-se. De resto, discursando hoje, falando amanhã, a ascensão era certa; e ele que quisera algum tinha muito; e ele que não ambicionara a celebridade, era célebre; e ele que não procurara os livros, os livros o elevavam.
Olhou um pouco a mulher, e alguém, quando passavam, disse perceptivelmente: o triunfo é dele, mas a glória é dela.
Edgarda, distraída da multidão, olhando aqui e ali sem ver, continuava a caminhar com segurança e com uma grande alegria em todo o rosto. Em breve estavam em uma saleta pretensiosa, onde é de bom gosto tomar chá. Era um luxo novo da cidade, um luxo bem nosso, barato e cauteloso.
Lá, após o passeio, encontravam conhecidos, e, como sempre, achavam-se já sentados a uma das mesas catitas, Mme. Forfaible, esposa do general do mesmo nome, acompanhada de uma amiga, e o primo Benevenuto.
— Não sabe - foi logo dizendo este último - como me agradou os eu discurso. Há muito pensamento nele, muito estudo...
O deputado sorriu convencido e respondeu:
— Muito obrigado! Muito obrigado!
Mme. Forfaible concluiu:
— O doutor deve levar em conta a opinião do Dr. Benevenuto. Ela é desinteressada, perfeitamente desinteressada... Não é de oficial do mesmo ofício.
— Sei bem, minha senhora. Sei bem.
A Numa seguiu-se Edgarda:
— Como vai o General, Anita?
— O General! Vai bem, vai bem.
Benevenuto indagou, então:
— Não foi para o Supremo?
— Qual! - acudiu a mulher. — Qual! Eu não dizia até agão o fizeram marechal nem ministro do Supremo Tribunal. É isto! Entretanto nomearam o Castelo que escreve corneta com "qu".
— Minha senhora, posso garantir-lhe que me interessei muito...
— Olhe Anita - disse Edgarda - não havia dia em que não lembrasse a Numa, que não deixasse de recomendar teu marido a papai.
— Sei bem - disse Mme. Forfaible - que a culpa não é dos civis. É dos colegas, doutor; é dos colegas... Bem fez o Dr. Benevenuto que não quis ser nada.
— Não sou eu quem não quer, minha senhora; são os obstáculos. A minha vocação não é para esse "steeple-chase" de pistolões, choradeiras, casamentos, intrigas, abdicações, pedidos, mofinas... Para isso, há uma raça especial... Eu...
Numa interveio:
— É mesmo um tormento! E as injustiças? Já no meu curso, não me deram a medalha. Mas tenho trabalhado para subir. Esta sabe bem.
A mulher foi ao encontro do marido, dizendo angelicamente:
— A questão é esperar. Paciência... Não é só um caminho que leva a Roma.
— O doutor - disse então Benevenuto - pode gabar-se de ter muita paciência. As injustiças não lhe fazem mossa.
— Já estou habituado com elas.
— É uma grande vantagem na nossa vida - continuou o primo. - Sem esse hábito, não se ia para diante... Eu sei que, às vezes, a gente se revolta....
— Eu! - exclamou Numa - Eu! Não me revolto nunca. Trabalho, trabalho e consigo.
A amiguinha de Mme. Forfaible falou por aí, timidamente:
— Quem tem talento, como o doutor, consegue tudo.
— Não é tanto assim, menina! - fez Mme. Forfaible, com alguma irritação. - O talento serve muito, não há dúvida; mas é para ajudar os outros.
Calaram-se e puseram-se a tomar o chá que esfriava nas xícaras.