CAPÍTULO XII
A escravidão atual


Bárbara na origem; bárbara na lei; bárbara em todas as suas pretensões;bárbara nos instrumentos de que se serve; bárbara em suas consequências; bárbara de espírito; bárbara onde quer que se mostre; ao passo que cria bárbaros e desenvolve em toda a parte, tanto no indivíduo como na sociedade a que ele pertence, os elementos essenciais dos bárbaros.

Charles Sumner

Desde que foi votada a Lei de 28 de setembro de 1871, o governo brasileiro tratou de fazer acreditar ao mundo que a escravidão havia acabado no Brasil. Uma propaganda voltada para ele começou a espalhar que os escravos iam sendo gradualmente libertados em proporção considerável e que os filhos das escravas nasciam completamente livres. A mortalidade dos escravos é um detalhe que nunca aparece nessas estatísticas falsificadas, cuja ideia é que a mentira no estrangeiro habilita o governo a não fazer nada no país e a deixar os escravos entregues à sua própria sorte.

Todos os fatos de manumissão – honrosíssimos para o Brasil – formam um admirável alto-relevo no campo da mortalidade que nunca atrai a atenção, ao passo que os crimes contra os escravos, o número de africanos ainda em cativeiro, a caçada de negros fugidos, os preços flutuantes da carne humana, a educação dos ingênuos na escravidão, o aspecto mesmíssimo dos ergástulos rurais: tudo o que é indecoroso, humilhante, triste para o governo, é cuidadosamente suprimido.

A esse respeito citarei um único resultado desse sistema, talvez o mais notável.

Na biografia de Augustin Cochin, pelo conde de Falloux, há um trecho relativo ao artigo daquele ilustre abolicionista sobre a nossa Lei de 28 de setembro. Depois de referir-se aos votos que Cochin fizera, anteriormente no seu livro L’abolition de l’esclavage pela abolição no Brasil, diz o seu biógrafo e amigo:

Esse voto foi ouvido; a emancipação foi decretada em 1870 (sic), e M. Cochin pode legitimamente reivindicar a sua parte nesse grande ato. O seu livro produzira viva sensação na América; os chefes do movimento abolicionista tinham-se posto em comunicação com o autor; ele mesmo havia dirigido respeitosas, mas urgentes instâncias ao governo brasileiro. O Imperador, que as não havia esquecido, quando veio à Europa, conversou muito com M. Cochin. Este não aprovava inteiramente a nova lei; achava-a muito lenta, muito complicada; ela não satisfazia inteiramente suas vastas aspirações; mas, apesar de defeitos, marcava um progresso bastante real para merecer ser assinalado. M. Cochin consagrou-lhe um artigo inserido na Revue des Deux Mondes, talvez o último escrito que lhe saiu da pena. Hoje (1875) a lei de emancipação começa a dar fruto; o desenvolvimento da produção aumenta com o desenvolvimento do trabalho livre; o governo, surpreendido com os prodigiosos resultados obtidos, procura acelerá-los consagrando 6 milhões por ano à libertação dos últimos escravos.

Estas últimas palavras, das quais grifei uma, são significativas e realmente expressam o que o governo queria desde então que se acreditasse na Europa. Em 1875 apenas o fundo de emancipação havia sido distribuído pela primeira vez; e já o desenvolvimento da produção aumentava com o desenvolvimento do trabalho livre; o governo estava surpreendido com os prodigiosos resultados da lei, e consagrava 6 milhões de francos por ano (2.400 contos) à liberdade dos últimos escravos. Quem escrevia isso era um homem da autoridade do conde de Falloux, cujas relações com a família de Orléans provavelmente lhe deram alguma vez ensejo de ter informações oficiais, num assunto que particularmente interessa à biografia da princesa imperial. Era preciso todo o sentimento abolicionista de Cochin para ver através de todas elas o destino sempre o mesmo dos escravos, e foi isso que o levou a escrever: “A nova lei era necessária, mas é incompleta e inconsequente, eis aí a verdade”.

O país, porém, conhece a questão toda e sabe que depois da Lei de 28 de setembro a vida dos escravos não mudou nada, senão na pequena porção dos que têm conseguido forrar-se esmolando pela sua liberdade. É preciso, todavia, para se não dizer que em 1883, quando este livro estava sendo escrito, os abolicionistas tinham diante de si não a escravidão antiga, mas outra espécie de escravidão modificada para o escravo por leis humanas e protetoras, e relativamente justa, que definamos a sorte e a condição do escravo hoje em dia perante a lei, a sociedade, a justiça pública, o senhor e finalmente ele próprio. Fá-lo-ei em traços talvez rápidos demais para um assunto tão vasto.

Quem chega ao Brasil e abre um dos nossos jornais encontra logo uma fotografia da escravidão atual, mais verdadeira do que qualquer pintura. Se o Brasil fosse destruído por um cataclismo, um só número ao acaso de qualquer dos grandes órgãos da imprensa bastaria para conservar para sempre as feições e os caracteres da escravidão tal qual existe em nosso tempo. Não seriam precisos outros documentos para o historiador restaurá-la em toda a sua estrutura e segui-la em todas as suas influências.

Em qualquer número de um grande jornal brasileiro – exceto, tanto quanto sei, na Bahia, onde a imprensa da capital deixou de inserir anúncios sobre escravos – encontram-se, com efeito, as seguintes classes de informações que definem completamente a condição presente dos escravos: anúncios de compra, venda e aluguel de escravos, em que sempre figuram as palavras mucama, moleque, bonita peça, rapaz, pardinho, rapariga de casa de família (as mulheres livres anunciam-se como senhoras, a fim de melhor se diferençarem das escravas); editais para praças de escravos, espécie curiosa e da qual o último espécime de Valença é um dos mais completos;[1] anúncios de negros fugidos acompanhados em muitos jornais da conhecida vinheta do negro descalço com a trouxa ao ombro, nos quais os escravos são descritos muitas vezes pelos sinais de castigos que sofreram, e se oferece uma gratificação, não raro de 1:000, a quem o apreender e o levar a seu dono – o que é um estímulo à profissão de capitães do mato –; notícias de manumissões, bastante numerosas; narrações de crimes cometidos por escravos contra os senhores, mas sobretudo contra os agentes dos senhores, e de crimes cometidos por estes contra aqueles, castigos bárbaros e fatais, que formam, entretanto, uma insignificantíssima parte dos abusos do poder dominical, porque estes raro chegam ao conhecimento das autoridades, ou da imprensa, não havendo testemunhas nem denunciantes nesse gênero de crime.

Encontram-se, por fim, declarações repetidas de que a escravidão entre nós é um estado muito brando e suave para o escravo, de fato melhor para este do que para o senhor, tão feliz pela descrição, que se chega a supor que os escravos, se fossem consultados, prefeririam o cativeiro à liberdade; o que tudo prova, apenas, que os jornais e os artigos não são escritos por escravos, nem por pessoas que se hajam mentalmente colocado por um segundo na posição deles.

Mais de um livro estrangeiro de viagens em que há impressões do Brasil trazem a reprodução desses anúncios como o melhor meio de ilustrar a escravidão local, e realmente não há documento antigo, preservado em hieróglifos nos papiros egípcios ou em caracteres góticos nos pergaminhos da Idade Média, em que se revele uma ordem social mais afastada da civilização moderna do que esses tristes anúncios da escravidão, os quais nos parecem efêmeros, e formam, todavia, a principal feição da nossa história. A posição legal do escravo resume-se nestas palavras: a Constituição não se ocupou dele. Para conter princípios como estes – “Nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”; “Todo o cidadão tem em sua casa um asilo inviolável”; “A lei será igual para todos”; “Ficam abolidos todos os privilégios”; “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis”; “Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente; nem a infâmia do réu se transmitirá aos parentes em qualquer grau que seja”; “É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude” – era preciso que a Constituição não tivesse uma só palavra que sancionasse a escravidão.

Qualquer expressão que o fizesse incluiria naquele código de liberdades a seguinte restrição:

Além dos cidadãos a quem são garantidos esses direitos e dos estrangeiros a quem serão tornados extensivos, há no país uma classe sem direito algum, a dos escravos. O escravo será obrigado a fazer, ou a não fazer, o que lhe for ordenado pelo seu senhor, seja em virtude da lei, seja contra lei que não lhe dá o direito de desobedecer. O escravo não terá um único asilo inviolável, nem nos braços da mãe, nem à sombra da cruz, nem no leito de morte; no Brasil não há cidades de refúgio; ele será objeto de todos os privilégios, revogados para os outros; a lei não será igual para ele porque está fora da lei, e o seu bem-estar material e moral será tão regulado por ela como o é o tratamento dos animais; para ele continuará de fato a existir a pena abolida de açoites e a tortura, exercida senão com os mesmos ou todos os instrumentos medievais, com maior constância ainda em arrancar a confissão, e com a devassa diária de tudo o que há de mais íntimo nos segredos humanos. Nessa classe a pena da escravidão, a pior de todas as penas, transmite-se com a infâmia que a caracteriza de mãe a filhos, sejam esses filhos do próprio senhor.

Está assim uma nação livre, filha da Revolução e dos Direitos do Homem, obrigada a empregar os seus juízes, a sua polícia, se preciso for o seu exército e a sua armada, para forçar homens, mulheres e crianças a trabalhar noite e dia sem salário.

Qualquer palavra que desmascarasse essa triste constituição social reduziria o foral das liberdades do Brasil e o seu regime de completa igualdade na monarquia democratizada a uma impostura transparente; por isso a Constituição não falou em escravos, nem regulou a condição desses. Isso mesmo era uma promessa a esses infelizes de que o seu estado era todo transitório, a atribuir-se a lógica à vergonha mostrada pelos que nos constituíram por aquele decreto.

Em 1855 o governo encarregou um dos mais eminentes dos nossos jurisconsultos, o Sr. Teixeira de Freitas, de consolidar o direito pátrio. Esse trabalho, que é Consolidação das Leis Civis, e já teve três edições, apareceu sem nenhum artigo referente a escravos. Pela Constituição não existia a escravidão no Brasil; a primeira codificação geral do nosso direito continuou essa ficção engenhosa. A verdade é que ofende a suscetibilidade nacional o confessar que somos, e não o sermos, um país de escravos, e por isso não se tem tratado de regular a condição destes.

Cumpre advertir [dizia o autor da Consolidação] que não há um só lugar do nosso texto onde se trate de escravos. Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas se esse mal é uma exceção que lamentamos, condenada a extinguir-se em época mais ou menos remota, façamos também uma exceção, um capítulo avulso na reforma das nossas leis civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir para a posteridade; fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso. As leis concernentes à escravidão (que não são muitas) serão, pois, classificadas à parte e formarão o nosso Código Negro.

Tudo isso seria muito patriótico se melhorasse de qualquer forma a posição dos escravos; mas, quando não se legisla sobre estes porque a escravidão é repugnante, ofende o patriotismo, [2] é uma vista que os nervos de uma nação delicada não podem suportar sem crise, e outros motivos igualmente ridículos, desde que no país noite e dia se pratica a escravidão e todos se habituaram, até a mais completa indiferença, a tudo o que ela tem de desumano e cruel, à vivissecção moral a que ela continuamente submete as suas vítimas, esse receio de macular as nossa leis civis com disposições vergonhosas só serve para conservar aquelas no estado bárbaro em que se acham.

As disposições do nosso Código Negro são muito poucas. A escravidão não é um contrato de locação de serviços que imponha ao que se obrigou certo número de deveres definido para com o locatário. É a posse, o domínio, o sequestro de um homem-corpo, inteligência, forças, movimentos, atividade – e só acaba com a morte. Como se há de definir juridicamente o que o senhor pode sobre o escravo, ou o que este não pode contra o senhor? Em regra o senhor pode tudo. Se quiser ter o escravo fechado perpetuamente dentro de casa, pode fazê-lo; se quiser privá-lo de formar família, pode fazê-lo; se, tendo ele mulher e filhos, quiser que eles não se vejam e não se falem, se quiser mandar que o filho açoite a mãe, apropriar-se da filha para fins imorais, pode fazê-lo. Imaginem-se todas as mais extraordinárias perseguições que um homem pode exercer contra outro, sem o matar, sem separá-lo por venda de sua mulher e filhos menores de quinze anos – e ter-se-á o que legalmente é a escravidão ente nós. A Casa de Correção é ao lado desse outro estado um paraíso. Exceto a ideia do crime, que é pior do que a sorte do escravo o mais infeliz, tomando-se por exemplo um condenado inocente, não há comparação entre um regime de obrigações certas, de dependência da lei e dos seus administradores, e um regime de sujeição, a um indivíduo, que pode ser um louco ou um bárbaro, como sua propriedade.

Quanto à capacidade civil, pela Lei de 28 de setembro de 1871 é permitida ao escravo a formação de um pecúlio do que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. Mas a aplicação da lei depende inteiramente do senhor, o qual está de posse do escravo e, portanto, de tudo o que ele tem, num país onde a proteção da magistratura aos escravos não é espontânea nem efetiva. Quanto à família, é proibido, sob pena de nulidade de venda, separar o marido da mulher, o filho do pai ou da mãe, salvo sendo os filhos maiores de quinze anos (Lei nº 1.695 de 15 de setembro de 1869, artigo 2); mas depende do senhor autorizar o casamento, e se não pode separar por venda, separa quando o quer, pelo tempo que quer, por uma simples ordem. Para resumir fixarei alguns dos principais traços do que é legalmente a escravidão em 1883 no Brasil.

1. Os escravos, nascidos antes do dia 28 de setembro de 1871, hoje com onze anos e meio de idade no mínimo, são até a morte tão escravos como os das gerações anteriores; o número desses, como adiante se verá, é de mais de um  milhão.

2. Essa escravidão consiste na obrigação de quem está sujeito a ela de cumprir sem ponderar as ordens que recebe, de fazer o que se lhe manda, sem direito de reclamar coisa alguma, nem salário, nem vestuário, nem melhor alimentação, nem descanso, nem medicamento, nem mudança de trabalho.

3. Esse homem assim escravizado não tem deveres para com Deus, para com pais, mulher ou filhos, para consigo mesmo, que o senhor seja obrigado a respeitar e a deixá-lo cumprir.

4. A lei não marca máximo de horas de trabalho, mínimo de salário, regime higiênico, alimentação, tratamento médico, condições de moralidade, proteção às mulheres; em uma palavra, interfere tanto na sorte da fábrica de uma fazenda quanto na dos animais do serviço.

5. Não há lei alguma que regule as obrigações e os direitos do senhor; qualquer que seja o número de escravos que possua, ele exerce uma autoridade limitada apenas pelo seu arbítrio.

6. O senhor pode punir os escravos com castigos moderados, diz o Código Criminal que equipara a autoridade dominical ao poder paterno; mas, de fato, à sua vontade, porque a justiça não lhe penetra no feudo; a queixa do escravo seria fatal a este, como já tem sido,[3] e a prática tornou o senhor soberano.

7. O escravo vive na completa incerteza da sua sorte; se pensa que vai ser vendido, hipotecado ou dado em penhor, não tem o direito de interrogar o seu dono.

8. Qualquer indivíduo que saia da Casa de Correção ou esteja dentro dela, por mais perverso que seja, brasileiro ou estrangeiro, pode possuir ou comprar uma família de escravos respeitáveis e honestos, e sujeitá-los aos seus caprichos.

9. Os senhores podem empregar escravas na prostituição, recebendo os lucros desse negócio, sem que isso lhes faça perder a propriedade que têm sobre elas; assim como o pai pode ser senhor do filho.

10. O Estado não protege os escravos de forma alguma, não lhes inspira confiança na justiça pública; mas entrega-os sem esperança ao poder implacável que pesa sobre eles, e que moralmente os prende ou magnetiza, lhes tira o movimento, em suma, os destrói.

11. Os escravos são regidos por leis de exceção. O castigo de açoites existe contra eles apesar de ter sido abolido pela Constituição; os seus crimes são punidos por uma lei bárbara, a Lei de 10 de junho de 1835, cuja pena uniforme é a morte. [4]

12. Tem-se espalhado no país a crença de que os escravos, muitas vezes, cometem crimes para se tornarem servos da pena e escaparem assim do cativeiro, [5] porque preferem o serviço das galés ao da fazenda, como os escravos romanos preferiam lutar com as feras, pela esperança de ficarem livres se não morressem. Por isso, o júri no interior tem absolvido escravos criminosos para serem logo restituídos aos seus senhores, e a lei de Lynch há sido posta em vigor em mais de um caso.

13. Todos os poderes, como vemos, praticamente sem limitação alguma, do senhor, não são exercitados diretamente por ele, que se ausenta das suas terras e não vive em contato com os seus escravos; mas são delegados a indivíduos sem educação intelectual ou moral, que só sabem guiar homens por meio do chicote e da violência.

É curioso que os senhores, que exercem esse poder ilimitado sobre os seus escravos, considerem uma opressão intolerável contra si a mínima intervenção da lei a favor destes. A resistência, entretanto, que a lavoura opôs à parte da Lei de 28 de setembro, que criou o direito do escravo de ter pecúlio próprio e o de resgatar-se por meio deste, prova que nem essa migalha de liberdade ela queria deixar cair da sua mesa. Os lavradores do Bananal, por exemplo, representando pelos seus nomes a lavoura de São Paulo e dos limites da província do Rio, diziam em uma petição às Câmaras:

Ou existe a propriedade com suas qualidades essenciais, ou então não pode decididamente existir. A alforria forçada, com a série de medidas que lhe são relativas, é a vindita armada sobre todos os tetos, a injúria suspensa sobre todas as famílias, o aniquilamento da lavoura, a morte do país.

Quando se tratou no Conselho de Estado de admitir o direito de pecúlio, o marquês de Olinda serviu-se desta frase significativa: “Não estamos fazendo lei de moral”.

O pior da escravidão não é, todavia, os seus grandes abusos e cóleras, nem as suas vinditas terríveis; não é mesmo a morte do escravo: é sim a pressão diária que ela exerce sobre este; a ansiedade de cada hora a respeito de si e dos seus; a dependência em que está da boa vontade do senhor; a espionagem e a traição que o cercam por toda a parte, e o fazem viver eternamente fechado numa prisão de Dionísio, cujas paredes repetem cada palavra, cada segredo que ele confia a outrem, ainda mais, cada pensamento que a sua expressão somente denuncia.

Diz-se que entre nós a escravidão é suave e os senhores são bons. A verdade, porém, é que toda escravidão é a mesma, e quanto à bondade dos senhores esta não passa da resignação dos escravos. Quem se desse ao trabalho de fazer uma estatística dos crimes ou de escravos ou contra os escravos, quem pudesse abrir um inquérito sobre a escravidão e ouvir as queixas dos que a sofrem, veria que ela no Brasil ainda hoje é tão dura, bárbara e cruel como foi em qualquer outro país da América. Pela sua própria natureza a escravidão é tudo isso, e quando deixa de o ser, não é porque os senhores se tornem melhores, mas sim porque os escravos se resignaram completamente à anulação de toda a sua personalidade.

Enquanto existe, a escravidão tem em si todas as barbaridades possíveis. Ela só pode ser administrada com brandura relativa quando os escravos obedecem cegamente e sujeitam-se a tudo; a menor reflexão destes, porém, desperta em toda a sua ferocidade o monstro adormecido. É que a escravidão só pode existir pelo terror absoluto infundido na alma do homem.

Suponha-se que os duzentos escravos de uma fazenda não querem trabalhar; que pode fazer um bom senhor para forçá-los a ir para o serviço? Castigos estritamente moderados talvez não deem resultado: o tronco, a prisão, não preenchem o fim, que é o trabalho; reduzi-los pela fome não é humano nem praticável; está assim o bom senhor colocado entre a alternativa de abandonar os seus escravos e a de subjugá-los por um castigo exemplar infligido aos principais dentre eles.

O limite da crueldade do senhor está, pois, na passividade do escravo. Desde que esta cessa, aparece aquela; e como a posição do proprietário de homens no meio do seu povo sublevado seria a mais perigosa, e, por causa da família a mais aterradora possível, cada senhor, em todos os momentos da sua vida, vive exposto à contingência de ser bárbaro e, para evitar maiores desgraças, coagido a ser severo. A escravidão não pode ser com efeito outra coisa. Encarreguem-se os homens mais moderados da administração da intolerância religiosa e teremos novos autos de fé tão terríveis como os da Espanha. É a escravidão que é má, e obriga o senhor a sê-lo. Não se lhe pode mudar a natureza. O bom senhor de um mau escravo seria mais do que um acidente feliz; o que nós conhecemos é o bom senhor do escravo que renunciou à própria individualidade e é um cadáver moral; mas esse é bom porque trata bem, materialmente falando, o escravo – não porque procure levantar nele o homem aviltado nem ressuscitar a dignidade humana morta.

A escravidão é hoje no Brasil o que era em 1862 nos estados do sul da União, o que foi em Cuba e nas Antilhas, o que não pode deixar de ser, como a guerra não pode deixar de ser sanguinolenta: isto é, bárbara, e bárbara como a descreveu Charles Sumner.[6]

Notas do autor editar

  1. “Valença. Praça. Em praça do juízo da provedoria deste termo que terá lugar no dia 26 de outubro do corrente ano, no paço da Câmara Municipal desta cidade, depois da audiência do costume, e de conformidade com o Decreto nº 1.695 de 15 de setembro de 1869, serão arrematados os escravos seguintes” – segue-se a lista de mais de cem escravos, da qual copio os seguintes itens: – “Joaquim Mina, quebrado, 51 anos, avaliado por 300$; Agostinho, preto, morfético, avaliado por 300$; Pio, Moçambique, tropeiro, 47 anos, avaliado por 2:000$; Bonifácio, Cabinda, 47 anos, doente, avaliado por 1:600$; Marcelina, crioula, 10 anos, filha de Emiliana, avaliada por 800$; Manuel, Cabinda, 76 anos, cego, avaliado por 50$; João, Moçambique, 86 anos, avaliado por 50$”; seguem-se as avaliações dos serviços de diversos ingênuos também postos em almoeda. Nesse edital são oferecidos africanos importados depois de 1831, crianças nascidas depois de 1871, cegos, morféticos e velhos de mais de oitenta anos, e por fim ingênuos como tais. É um resumo da escravidão, em que nenhuma geração foi esquecida e nenhum abuso escapou, e por isso merece ser arquivado como um documento de paleontologia moral muito precioso para o futuro. Em Itaguaí acaba-se de pôr em praça judicial um escravo anunciado dessa forma: Militão, de 50 anos, está doido, avaliado por 100$. Edital de 23 de abril de 1883.
  2. A escravidão nos coloca muitas vezes em dificuldades exteriores mal conhecidas, aliás, do país – apesar de conhecidas nas chancelarias estrangeiras. Uma dessas ocorreu com a França a propósito da celebração de um tratado de extradição de criminosos. Em 1857 não se pôde celebrar um tal tratado porque o Brasil fez questão da devolução de escravos prófugos. Em 1868 tratou-se novamente de fazer um tratado, e surgiu outra dificuldade: a França exigia que se lhe garantisse que os escravos cuja extradição fosse pedida seriam tratados como os outros cidadãos brasileiros. “Não fiz menção no projeto, escrevia o Sr. Paranhos ao Sr. Roquette, transmitindo-lhe um projeto de tratado, dos casos relativos a escravos porque não havia necessidade uma vez que entram na regra geral. Demais tenho grande repugnância em escrever essa palavra em documento internacional.” O governo francês, porém, tinha também a sua honra a zelar, não partilhava essa repugnância e precisava garantir a sorte dos antigos escravos que extraditasse. Daí a insistência do Sr. Gobineau em ter um protocolo estabelecendo que, quando se reclamasse a extradição de um escravo, o governo francês teria a inteira faculdade de conceder ou recusar a entrega do acusado, examinando cada caso, pedindo as justificações que lhe parecessem indispensáveis. Semelhante protocolo, declarou ainda o ministro de Napoleão III, não constituiria uma cláusula secreta, mas, sem ter nenhuma intenção de dar-lhe publicidade inútil, a França conservaria toda liberdade a esse respeito. Esse documento nunca foi publicado, que me conste; até quando teremos uma instituição que nos obriga a falsificar a nossa Constituição, as nossas leis, tratados, estatísticas e livros, para escondermos a vergonha que nos queima o rosto e que o mundo inteiro está vendo?
  3. Em 1852, o Conselho de Estado teve que considerar os meios de proteger o escravo contra a barbaridade do senhor. Diversos escravos no Rio Grande do Sul denunciaram o seu senhor comum pela morte de um dos escravos da casa. O senhor fora preso e estava sendo processado, e tratava-se de garantir os informantes contra qualquer vingança futura da família. A Seção de Justiça propôs que se pedisse ao Poder Legislativo uma medida para que a ação do escravo, em caso de sevícias, para obrigar o senhor a vendê-lo, fosse intentada ex officio. O Conselho de Estado (Olinda, Abrantes, José Clemente, Holanda Cavalcanti, Alves Branco e Lima e Silva) votou contra a proposta da Seção (Limpo de Abreu, Paraná, Lopes Gama) “por ter em consideração o perigo que pode ter o legislar sobre a matéria, pondo em risco a segurança, ou ao menos a tranquilidade da família; por convir nada alterar a respeito da escravidão entre nós, conservando-se tal qual se acha; e por evitar a discussão no Corpo Legislativo sobre quaisquer novas medidas a respeito de escravos, quando já se tinha feito quanto se podia e convinha fazer na efetiva repressão do tráfico”. Paraná cedeu à maioria, Araújo Viana também, e os conselheiros Maia, Lopes Gama e Limpo de Abreu formaram a minoria. É justo não omitir que Holanda Cavalcanti sugeriu a desapropriação do escravo seviciado, pelo governo e o Conselho de Estado. O Imperador deu razão à maioria. As ideias de 1852 são as de 1883. Era tão perigoso então, por ser igualmente inútil, queixar-se um escravo às autoridades como o é hoje. O escravo precisa ter para queixar-se do senhor a mesma força de vontade e resolução que para fugir ou suicidar-se, sobretudo se ele deixa algum refém no cativeiro.
  4. No Conselho de Estado foi proposta a revogação do artigo 60 do Código Criminal, que criou a pena de açoites, e a da Lei de 10 de junho. Sustentando uma e outra abolição, iniciada pela comissão da qual era relator, o conselheiro Nabuco fez algumas considerações assim resumidas na ata da sessão de 30 de abril de 1868: “O conselheiro Nabuco sustenta a necessidade da abolição da lei excepcional de 10 de junho de 1835. Que ela tem sido ineficaz está provado pela estatística criminal; os crimes que ela previne têm aumentado. É uma lei injusta porque destrói todas as regras da imputação criminal, toda a proporção das penas, porquanto os fatos graves e menos graves são confundidos, e não se consideram circunstâncias agravantes e atenuantes, como se os escravos não fossem homens, não tivessem paixões e o instinto de conservação. Que a pena de morte, e sempre a morte, não é uma pena exemplar para o escravo que só vê nela a cessação dos males da escravidão. Que o suicídio frequente entre os escravos e a facilidade com que confessam os crimes e se entregam depois de cometê-los provam bem que eles não temem a morte”. “Diz que a pena de açoites não pode existir na nossa lei penal, desde que a Constituição, artigo 179, § 19, aboliu esta pena e a considerou pena cruel. É um castigo que não corrige, mas desmoraliza. É além disso uma pena que não mantém o princípio da proporção das penas, sendo que o mesmo número de açoites substitui a prisão perpétua, a prisão por 30, 20 e 10 anos. As forças do escravo é que regulam o máximo dos açoites e, pois, o máximo vem a ser o mesmo para os casos graves e os mais graves. Que a execução dessa pena dá lugar a muitos abusos, sendo que em muitos casos é iludida, em outros tem causado a morte.” O barão do Bom Retiro disse combatendo a abolição da pena de açoites: “Abolida a de açoites ficarão as penas de galés e de prisão com trabalho, e pensa que nenhuma destas será eficaz com relação ao escravo. Para muitos, a de prisão com trabalho, sendo este, como deve ser, regular, tornar-se-á até um melhoramento de condição, senão um incentivo para o crime”. Aí está a escravidão como ela é! O suicídio, a morte parecem ao escravo a cessação dos males da escravidão, a prisão com trabalhos um melhoramento de condição, tal que pode ser um incentivo para o crime! No entanto, nós, nação humana e civilizada, condenamos mais de 1 milhão de homens, como foram condenados tantos outros, a uma sorte ao lado da qual a penitenciária ou a forca parece preferível!
  5. A preferência que muitos escravos dão à vida de galés à que levam nos cárceres privados induziu o governo em 1879 (o conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira) a propor a substituição da pena de galés pela de prisão celular. Tranquilizando aqueles senadores que se mostravam assustados quanto à eficácia desta última pena, o presidente do Conselho convenceu-os com este argumento: “Hoje está reconhecido que não há pessoa, ainda a mais robusta, que possa resistir a uma prisão solitária de 10 a 12 anos, o que quase equivale a uma nova pena de morte”.
  6. Discurso de Boston (outubro, 1862).