CAPÍTULO XIII
Influência da escravidão sobre a nacionalidade


(Com a escravidão) nunca o Brasil aperfeiçoará as raças existentes.

José Bonifácio

O Brasil, como é sabido, é um dos mais vastos países do globo, tendo uma área de mais de 8 milhões de quilômetros quadrados; mas esse território em grandíssima parte nunca foi explorado, e na sua porção conhecida acha-se esparsamente povoado. A população nacional é calculada entre 10 e 12 milhões; mas não há base séria para se a computar, a não ser que se acredite nas listas de recenseamento apuradas em 1876, listas e apuração que espantariam a qualquer principiante de estatística. Sejam, porém, 10 ou 12 milhões, essa população na sua maior parte descende de escravos, e por isso a escravidão atua sobre ela como herança do berço.

Quando os primeiros africanos foram importados no Brasil, não pensaram os principais habitantes – é verdade que, se o pensassem, isso não os impediria de fazê-lo, porque não tinham o patriotismo brasileiro – que preparavam para o futuro um povo composto na sua maioria de descendentes de escravos. Ainda hoje, muita gente acredita que 100 ou 200 mil chins seria um fato sem consequências étnicas e sociais importantes, mesmo depois de 5 ou 6 gerações. O principal efeito da escravidão sobre a nossa população foi assim africanizá-la, saturá-la de sangue preto, como o principal efeito de qualquer empresa de imigração da China seria mongolizá-la, saturá-la de sangue amarelo.

Chamada para a escravidão, a raça negra, só pelo fato de viver e propagar-se, foi-se tornando um elemento cada vez mais considerável da população. A célebre frase que tanto destoou no parecer do padre Campos em 1871 – “Vaga Vênus arroja aos maiores excessos aquele ardente sangue líbico” –, traduzida em prosa, é a gênese primitiva de grande parte do nosso povo. Foi essa a primeira vingança das vítimas. Cada ventre escravo dava ao senhor três ou quatro crias que ele reduzia a dinheiro; essas, por sua vez, multiplicavam-se e assim os vícios do sangue africano acabavam por entrar na circulação geral do país.

Se, multiplicando-se a raça negra sem nenhum dos seus cruzamentos, se multiplicasse a raça branca por outro lado mais rapidamente, como nos Estados Unidos, o problema das raças seria outro, muito diverso – talvez mais sério, e quem sabe se solúvel somente pela expulsão da mais fraca e inferior por incompatíveis uma com a outra; mas isso não se deu no Brasil. As duas raças misturaram-se e confundiram-se; as combinações mais variadas dos elementos de cada uma tiveram lugar, e a esses juntaram-se os de uma terceira, a dos aborígenes. Das três principais correntes de sangue que se confundiram nas nossas veias, o português, o africano e o indígena, a escravidão viciou sobretudo os dois primeiros. Temos aí um primeiro efeito sobre a população: o cruzamento dos caracteres da raça negra com os da branca, tais como se apresentam na escravidão a mistura da degradação servil de uma com a imperiosidade brutal da outra.

No princípio da nossa colonização, Portugal descarregava no nosso território os seus criminosos, as suas mulheres erradas,[1] as suas fezes sociais todas, no meio das quais excepcionalmente vinham emigrantes de outra posição, e por felicidade grande número de judeus. O Brasil se apresentava então como até ontem o Congo. No século XVI ou XVII, o espírito de emigração não estava bastante desenvolvido em Portugal para mover o povo, como desde o fim do século passado até hoje, a procurar na América portuguesa o bem-estar e a fortuna que não achava na Península. Os poucos portugueses que se arriscavam a atravessar o oceano à vela e a ir estabelecer-se nos terrenos incultos do Brasil representavam a minoria dos espíritos aventureiros, absolutamente destemidos, indiferentes aos piores transes na luta da vida, minoria que em Portugal hoje mesmo não é grande e não podia sê-lo há dois ou três séculos. Apesar de se haver estendido pelo mundo todo o domínio português, à América do Sul, à África ocidental, austral e oriental, à Índia e até à China, Portugal não tinha corpo nem forças para possuir mais do que nominalmente esse imenso império. Por isso, o território do Brasil foi distribuído entre donatários sem meios, nem capitais, nem recursos de ordem alguma, para colonizar as suas capitanias, isto é, de fato entregue aos jesuítas. A população europeia era insignificante para ocupar essas ilimitadas extensões de terra, cuja fecundidade a tentava. Estando a África nas mãos de Portugal, começou então o povoamento da América por negros; lançou-se, por assim dizer, uma ponte entre a África e o Brasil, pela qual passaram milhões de africanos, e estendeu-se o habitat da raça negra das margens do Congo e do Zambeze às do São Francisco e do Paraíba do Sul.

Ninguém pode ler a história do Brasil no século XVI, no século XVII, e em parte no século XVIII (excetuada unicamente a de Pernambuco), sem pensar que a todos os respeitos houvera sido melhor que o Brasil fosse descoberto três séculos mais tarde. Essa imensa região, mais favorecida que outra qualquer pela natureza, se fosse encontrada livre e desocupada há cem anos, teria provavelmente feito mais progressos até hoje do que a sua história recorda. A população seria menor, porém mais homogênea; a posse do solo talvez não se houvesse estendido tão longe, mas não houvera sido uma exploração ruinosa e esterilizadora; a nação não teria ainda chegado ao grau de crescimento que atingiu, mas também não mostraria já sintomas de decadência prematura.

Pretende um dos mais eminentes espíritos de Portugal que “a escravidão dos negros foi o duro preço da colonização da América, porque, sem ela, o Brasil não se teria tornado no que vemos”.[2] Isso é exato, “sem ela o Brasil não se teria tornado no que vemos”; mas esse preço quem o pagou, e está pagando, não foi Portugal, fomos nós; e esse preço a todos os respeitos é duro demais e caro demais para o desenvolvimento inorgânico, artificial e extenuante que tivemos. A africanização do Brasil pela escravidão é uma nódoa que a mãe pátria imprimiu na sua própria face, na sua língua, e na única obra nacional verdadeiramente duradoura que conseguiu fundar. O eminente autor daquela frase é o próprio que nos descreve o que eram as carregações do tráfico:

Quando o navio chegava ao porto de destino – uma praia deserta e afastada –, o carregamento desembarcava; e à luz clara do sol dos trópicos aparecia uma coluna de esqueletos cheios de pústulas, com o ventre protuberante, as rótulas chagadas, a pele rasgada, comidos de bichos, com o ar parvo e esgazeado dos idiotas. Muitos não se tinham em pé: tropeçavam, caíam e eram levados aos ombros como fardos.

Não é com tais elementos que se vivifica moralmente uma nação.

Se Portugal tivesse tido no século XVI a intuição de que a escravidão é sempre um erro, e força bastante para puni-la como um crime, o Brasil “não se teria tornado no que vemos”; seria ainda talvez uma colônia portuguesa, o que eu não creio, mas estaria crescendo sadio, forte e viril como o Canadá e a Austrália. É possível que nesse caso ele não houvesse tido forças para repelir o estrangeiro, como repeliu os holandeses, e seja exata a afirmação de que a não serem os escravos o Brasil teria passado a outras mãos e não seria português. Ninguém pode dizer o que teria sido a história se acontecesse o contrário do que aconteceu. Entre um Brasil arrebatado aos portugueses no século XVII, por estes não consentirem o tráfico, e explorado com escravos por holandeses ou franceses, e o Brasil, explorado com escravos pelos mesmos portugueses, ninguém sabe o que teria sido melhor para história da nossa região. Entre o Brasil, explorado por meio de africanos livres por Portugal, e o mesmo Brasil, explorado com escravos também por portugueses, o primeiro a esta hora seria uma nação muito mais robusta do que é o último. Mas entre o que houve – a exploração da América do Sul por alguns portugueses cercados de um povo de escravos importados da África – e a proibição severa da escravidão na América portuguesa, a colonização gradual do território por europeus, por mais lento que fosse o processo, seria infinitamente mais vantajosa para o destino dessa vasta região do que o foi, e o será, o haverem-se espalhado por todo o território ocupado as raízes quase que inextirpáveis da escravidão.

Diz-se que a raça branca não se aclimaria no Brasil, sem a imunidade que lhe proveio do cruzamento com os indígenas e os africanos. Em primeiro lugar, o mau elemento da população não foi a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro; em segundo lugar, nada prova que a raça branca, sobretudo as raças meridionais, tão cruzadas de sangue mouro e negro, não possam existir e desenvolver-se nos trópicos. Em todo o caso, se a raça branca não se pode adaptar aos trópicos em condições de fecundidade ilimitada, essa raça não há de indefinidamente prevalecer no Brasil: o desenvolvimento vigoroso dos mestiços há de por fim sobrepujá-la, a imigração europeia não bastará para manter o predomínio perpétuo de uma espécie de homens à qual o sol e o clima são infensos. A ser assim, o Brasil ainda mesmo hoje, como povo europeu, seria uma tentativa de adaptação humana forçosamente efêmera; mas nada está menos provado do que essa incapacidade orgânica da raça branca para existir e prosperar em uma zona inteira da terra.

Admitindo-se, sem a escravidão, que o número dos africanos fosse o mesmo, e maior se se quiser, os cruzamentos teriam sempre tido lugar; mas a família teria aparecido desde o começo. Não seria o cruzamento pelo concubinato, pela promiscuidade das senzalas, pelo abuso da força do senhor; o filho não nasceria debaixo do açoite, não seria levado para a roça ligado às costas da mãe, obrigada à tarefa da enxada; o leite desta não seria utilizado, como o da cabra, para alimentar outras crianças, ficando para o próprio filho as últimas gotas que ela pudesse forçar do seio cansado e seco; as mulheres não fariam o trabalho dos homens, não iriam para os serviços do campo ao sol ardente do meio-dia, e poderiam durante a gravidez atender ao seu estado. Não é do cruzamento que se trata; mas sim da reprodução no cativeiro, em que o interesse verdadeiro da mãe era que o filho não vingasse. Calcule-se o que a exploração dessa bárbara indústria, expressa em 1871 nas seguintes palavras dos fazendeiros do Piraí – “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador” – deve ter sido durante três séculos sobre milhões de mulheres. Tome-se a família branca, como ser moral, em três gerações, e veja-se qual foi o rendimento para essa família de uma só escrava comprada pelo seu fundador.

A história da escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que não se pode sondar, e infelizmente essa é a história do crescimento do Brasil. No ponto a que chegamos, olhando para o passado, nós, brasileiros, descendentes ou da raça que escreveu essa triste página da humanidade, ou da raça com cujo sangue ela foi escrita, ou da fusão de uma e de outra, não devemos perder tempo a envergonhar-nos desse longo passado que não podemos lavar, dessa hereditariedade que não há como repelir. O que devemos é fazer convergir todos os nossos esforços para o fim de eliminar a escravidão do nosso organismo, de forma que essa fatalidade nacional diminua em nós e se transmita às gerações futuras já mais apagada, rudimentar e atrofiada.

Muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições grosseiras. A fusão do catolicismo, tal como o apresentava ao nosso povo o fanatismo dos missionários, com a feitiçaria africana – influência ativa e extensa nas camadas inferiores, intelectualmente falando, da nossa população, e que pela ama de leite, pelos contatos da escravidão doméstica, chegou até aos mais notáveis dos nossos homens; a ação de doenças africanas sobre a constituição física de parte do nosso povo; a corrupção da língua, das maneiras sociais, da educação e outros tantos efeitos resultantes do cruzamento com uma raça num período mais atrasado de desenvolvimento; podem ser consideradas isoladamente do cativeiro. Mas, ainda mesmo no que seja mais característico dos africanos importados, pode afirmar-se que, introduzidos no Brasil em um período no qual não se desse o fanatismo religioso, a cobiça, independente das leis, a escassez da população aclimada, e sobretudo a escravidão, doméstica e pessoal, o cruzamento entre brancos e negros não teria sido acompanhado do abastardamento da raça mais adiantada pela mais atrasada, mas da gradual elevação da última.

Não pode, para concluir, ser objeto de dúvida que a escravidão transportou da África para o Brasil mais de 2 milhões de africanos; que, pelo interesse do senhor na produção do ventre escravo, ela favoreceu quanto pôde a fecundidade das mulheres negras; que os descendentes dessa população formam pelo menos dois terços do nosso povo atual; que durante 3 séculos a escravidão, operando sobre milhões de indivíduos, em grande parte desse período sobre a maioria da população nacional, impediu o aparecimento regular da família nas camadas fundamentais do país; reduziu a procriação humana a um interesse venal dos senhores; manteve toda aquela massa pensante em estado puramente animal; não a alimentou, não a vestiu suficientemente; roubou-lhe as suas economias e nunca lhe pagou os seus salários; deixou-a cobrir-se de doenças e morrer ao abandono; tornou impossíveis para ela hábitos de previdência, de trabalho voluntário, de responsabilidade própria, de dignidade pessoal; fez dela o jogo de todas as paixões baixas, de todos os caprichos sensuais, de todas as vinditas cruéis de uma outra raça.

É quase impossível acompanhar a ação de tal processo nessa imensa escala – inúmeras vezes realizado por descendentes de escravos – em todas as direções morais e intelectuais em que ele operou e opera; nem há fator social que exerça a mesma extensa e profunda ação psicológica que a escravidão quando faz parte integrante da família. Pode-se descrever essa influência dizendo que a escravidão cercou todo o espaço ocupado do Amazonas ao Rio Grande do Sul de um ambiente fatal a todas as qualidades viris e nobres, humanitárias e progressivas da nossa espécie; criou um ideal de pátria grosseiro, mercenário, egoísta e retrógrado, e nesse molde fundou durante séculos as três raças heterogêneas que hoje constituem a nacionalidade brasileira. Em outras palavras, ela tornou, na frase do direito medievo, em nosso território, o próprio ar servil, como o ar das aldeias da Alemanha que nenhum homem livre podia habitar sem perder a liberdade. “Die Luft leibeigen war” é uma frase que, aplicada ao Brasil todo, melhor que outra qualquer sintetiza a obra da escravidão: ela criou uma atmosfera que nos envolve e abafa a todos, e isso no mais rico e admirável dos domínios da terra.

Notas do autor editar

  1. Padre Manuel da Nóbrega. No seu romance abolicionista Os herdeiros de Caramuru, o Dr. Jaguaribe Filho, um dos mais convictos propugnadores da nossa causa, transcreve a carta daquele célebre jesuíta, de 9 de agosto de 1549, em que se vê como foi fabricada pela escravidão a primitiva célula nacional.
  2. Oliveira Martins, O Brasil e as colônias, 2ª ed., p. 50.