CAPÍTULO XVI
Necessidade da abolição – os perigos da demora


Se os seus [do Brasil] dotes morais e intelectuais crescerem de harmonia com a sua admirável beleza e riqueza natural, o mundo não terá visto uma terra mais bela. Atualmente há diversos obstáculos a esse progresso; obstáculos que atuam como uma doença moral sobre o seu povo. A escravidão ainda existe no meio dele.

Agassiz

“Mas – dir-se-á – se a escravidão é como acabamos de ver uma influência que afeta todas as classes; o molde em que se está fundindo, há séculos, a população toda: em primeiro lugar, que força existe fora dela que possa destruí-la tão depressa como quereis sem ao mesmo tempo dissolver a sociedade que é, segundo vimos, um composto de elementos heterogêneos do qual ela é a afinidade química? Em segundo lugar, tratando-se de um interesse de tamanha importância, de que dependem tão avultado número de pessoas e a produção nacional – a qual sustenta a fábrica e o estabelecimento do Estado, por mais artificiais que proveis serem as suas proporções atuais – e quando não contestais, nem podeis contestar, que a escravidão esteja condenada a desaparecer num período que pelo progresso moral contínuo do país nunca poderá exceder de vinte anos; por que não esperais que o fim de uma instituição, que já durou em vosso país mais de trezentos anos, se consume naturalmente, sem sacrifício da fortuna pública nem das fortunas privadas, sem antagonismo de raças ou classes, sem uma só das ruínas que em outros países acompanharam a emancipação forçada dos escravos?”

Deixo para o seguinte capítulo a resposta à primeira questão. Aí mostrarei que, apesar de toda a influência retardativa da escravidão, há dentro do país forças morais capazes de suprimi-la como posse de homens, assim como não há por enquanto – e a primeira necessidade do país é criá-las – forças capazes de eliminá-la como principal elemento da nossa constituição. Neste capítulo respondo tão somente à objeção, politicamente falando formidável, de impaciência, de cegueira para os interesses da classe de proprietários de escravos, tão brasileiros pelo menos como estes, para as dificuldades econômicas de um problema – a saber, se a escravidão deve continuar indefinidamente – que no ponto de vista humanitário ou patriótico o Brasil todo já resolveu pela mais solene e convencida afirmativa.

Essas impugnações têm tanto mais peso para mim quanto – e por todo este livro se terá visto – eu não acredito que a escravidão deixe de atuar como até hoje sobre o nosso país quando os escravos forem todos emancipados. A lista de subscrição que resulta na soma necessária para a alforria de um escravo dá um cidadão mais ao rol dos brasileiros; mas é preciso muito mais do que as esmolas dos compassivos ou a generosidade do senhor para fazer desse novo cidadão uma unidade, digna de concorrer ainda mesmo infinitesimalmente para a formação de uma nacionalidade americana. Da mesma forma com o senhor. Ele pode alforriar os seus escravos, com sacrifício dos seus interesses materiais, ainda que sempre em benefício da educação dos seus filhos, quebrando assim o último vínculo aparente, ou de que tem consciência, das relações em que se achava para com a escravidão; mas, somente por isso, o espírito desta não deixará de incapacitá-lo para cidadão de um país livre e para exercer as virtudes que tornam as nações mais poderosas pela liberdade individual do que pelo despotismo.

Em um e outro caso é preciso mais do que a cessação do sofrimento, ou da inflição do cativeiro, para converter o escravo e o senhor em homens animados do espírito de tolerância, de adesão aos princípios de justiça quando mesmo sejam contra nós, de progresso e de subordinação individual aos interesses da pátria, sem os quais nenhuma sociedade nacional existe senão no grau de molusco, isto é, sem vértebras nem individualização.

Os que olham para os três séculos e meio de escravidão que temos no passado e medem o largo período necessário para apagar-lhe os últimos vestígios não consideram, pelo menos à primeira vista, de cumprimento intolerável o espaço de vinte ou trinta anos que ainda lhe reste de usufruto. Abstraindo da sorte individual dos escravos e tendo em vista tão somente o interesse geral da comunhão – não se deve com efeito exigir que atendamos ao interesse particular dos proprietários, que são uma classe social muito menos numerosa do que os escravos, mais do que ao interesse dos escravos somado com o interesse da nação toda – não será o prazo de vinte anos curto o bastante para que não procuremos abreviá-lo mais, comprometendo o que de outra forma se salvaria?

“Vós dizeis que sois políticos” – acrescentarei completando o argumento sério e refletido dos homens tão inimigos como eu da escravidão, mas que se recusam a desmoroná-la de uma só vez, supondo que esse, a não ser o papel de um Heróstrato, seria o de um Sansão inconsciente –, “dizeis que não encarais a escravidão principalmente do ponto de vista do escravo, ainda que tenhais feito causa comum com ele para melhor moverdes a generosidade do país; mas sim do ponto de vista nacional, considerando que a pátria deve proteção igual a todos os seus filhos e não pode enjeitar nenhum. Pois bem, como homens políticos, que entregais a vossa defesa ao futuro, e estais prontos a provar que não quereis destruir ou empecer o progresso do país, nem desorganizar o trabalho, ainda mesmo por sentimentos de justiça e humanidade, não vos parece que cumpririeis melhor o vosso dever para com os escravos, para com os senhores – os quais têm pelo menos direito à vossa indulgência pelas relações que o próprio Abolicionismo, de uma forma ou outra, pela hereditariedade nacional comum, tem com a escravidão – e finalmente para com a nação toda, se em vez de propordes medidas legislativas que irritam os senhores e que não serão adotadas, esses não querendo; em vez de quererdes proteger os escravos pela justiça pública e arrancá-los do poder dos seus donos, começásseis por verificar até onde e de que forma estes, pelo menos na sua porção sensata e politicamente falando pensante, estão dispostos a concorrer para a obra que hoje é confessadamente nacional – da emancipação? Não seríeis mais políticos, oportunistas e práticos e, portanto, muito mais úteis aos próprios escravos se, em vez de vos inutilizardes como propagandistas e agitadores, correndo o risco de despertar, o que não quereis por certo, entre escravos e senhores, entre senhores e abolicionistas, sentimentos contrários à harmonia das diversas classes – que mesmo na escravidão é um dos títulos de honra do nosso país – vos associásseis, como brasileiros, à obra pacífica da liquidação desse regime?”

Cada uma dessas observações, e muitas outras semelhantes, eu as discuti seriamente comigo mesmo, antes de queimar os meus navios, e cheguei de boa-fé e contra mim próprio à convicção de que deixar à escravidão o prazo de vida que ela tem pela Lei de 28 de setembro seria abandonar o Brasil todo à contingência das mais terríveis catástrofes; e, por outro lado, de que nada se havia de conseguir para limitar de modo sensível aquele prazo senão pela agitação abolicionista, isto é, procurando-se concentrar a atenção do país no que tem de horrível, injusto e fatal ao seu desenvolvimento, uma instituição com a qual ele se familiarizou e confundiu a ponto de não poder mais vê-la objetivamente.

Há três anos que o país está sendo agitado como nunca havia sido antes em nome da abolição, e os resultados dessa propaganda ativa e patriótica têm sido tais que hoje ninguém mais dá à escravatura a duração que ela prometia ter quando em 1878 o Sr. Sinimbu reuniu o Congresso Agrícola, essa arca de Noé em que devia salvar-se a “grande propriedade”.

Pela Lei de 28 de setembro de 1871 a escravidão tem por limite a vida do escravo nascido na véspera da lei. Mas essas águas mesmas não estão ainda estagnadas, porque a fonte do nascimento não foi cortada, e todos os anos as mulheres escravas dão milhares de escravos por vinte e um anos aos seus senhores. Por uma ficção de direito eles nascem livres, mas, de fato, valem por lei aos oito anos de idade 600$ cada um. A escrava nascida a 27 de setembro de 1871 pode ser mãe em 1911 de um desses ingênuos, que assim ficaria em cativeiro provisório até 1932. Essa é a lei, e o período de escravidão que ela ainda permite.

O ilustre homem de Estado que a fez votar, se hoje fosse vivo, seria o primeiro a reconhecer que esse horizonte de meio século aberto ainda à propriedade escrava é um absurdo, e nunca foi o pensamento íntimo do legislador. O visconde do Rio Branco, antes de morrer, havia já recolhido como sua recompensa a melhor parte do reconhecimento dos escravos: a gratidão das mães. Esse é um hino à sua memória que a posteridade nacional há de ouvir, desprendendo-se como uma nota suave e límpida do delírio de lágrimas e soluços do vasto coro trágico. Mas, por isso mesmo que o visconde de Rio Branco foi o autor daquela lei, ele seria o primeiro a reconhecer que pela deslocação das forças sociais produzidas há treze anos e pela velocidade ultimamente adquirida, depois do torpor de um decênio, pela ideia abolicionista, a Lei de 1871 já devera ser obsoleta. O que nós fizemos em 1871 foi o que a Espanha fez em 1870; a nossa lei Rio Branco de 28 de setembro daquele ano é a lei Moret espanhola de 4 de julho deste último; mas depois disso a Espanha já teve outra lei – a de 13 de fevereiro de 1880 – que aboliu a escravidão, desde logo nominalmente, convertendo os escravos em patrocinados, mas de fato depois de oito anos decorridos, ao passo que nós estamos ainda na primeira lei.

Pela ação do nosso atual direito o que a escravatura perde por um lado adquire por outro. Ninguém tem a loucura de supor que o Brasil possa guardar a escravidão por mais 20 anos, qualquer que seja a lei; portanto, o serem os ingênuos escravos por 21 anos, e não por toda a vida, não altera o problema que temos diante de nós: a necessidade de resgatar do cativeiro um milhão e meio de pessoas.

Comentando este ano a redução pela mortalidade e pela alforria da população escrava desde 1873 escreve o Jornal do Commercio:

Dado que naquela data haviam sido matriculados em todo o Império 1,5 milhão de escravos, algarismo muito presumível, é lícito estimar que a população escrava do Brasil, assim como diminuiu de uma sexta parte no Rio de Janeiro, haja diminuído no resto do Império em proporção pelo menos igual, donde a existência presumível de 1,25 milhão de escravos. Esse número pode, entretanto, descer por estimativa a 1,2 milhão de escravos, atentas as causas que têm atuado em vários pontos do Império para maior proporcionalidade nas alforrias.

A esses é preciso somar os ingênuos, cujo número excede de 250 mil. Admitindo-se que desse milhão e meio de pessoas que hoje existem sujeitas à servidão 60 mil saiam dela anualmente, isto é, o dobro da média do decênio, a escravidão terá desaparecido, com grande remanescente de ingênuos, é certo a liquidar em 25 anos, isto é, em 1908. Admito mesmo que a escravidão desapareça de agora em diante à razão de 75 mil pessoas por ano, ou 5% da massa total, isto é, com uma velocidade 2,5 vezes maior do que a atual. Por esse cálculo a instituição ter-se-á liquidado em 1903, ou dentro de 20 anos. Esse cálculo é otimista e feito sem contar com a lei, mas por honra dos bons impulsos nacionais eu o aceito como exato.

“Por que não esperais esses vinte anos?” é a pergunta que nos fazem. [Há pessoas de má-fé que pretendem que, sem propaganda alguma, pela marcha natural das coisas, pela mortalidade e liberalidade particular uma propriedade que no mínimo excede em valor a 500 mil contos se eliminará espontaneamente da economia nacional se o Estado não intervier. Há outras pessoas também, capazes de reproduzir a multiplicação dos pães, que esperam que os escravos sejam resgatados em vinte anos pelo fundo de emancipação, cuja renda anual não chega a 2 mil contos.]

Este livro todo é uma resposta àquela pergunta. Vinte anos mais de escravidão é a morte do país. Esse período é com efeito curto na história nacional, como por sua vez a história nacional é um momento na vida da humanidade, e esta um instante na da Terra, e assim por diante; mas vinte anos de escravidão quer dizer a ruína de duas gerações mais: a que há pouco entrou na vida civil e a que for educada por essa. Isto é o adiamento por meio século da consciência livre do país.

Vinte anos de escravidão quer dizer o Brasil celebrando em 1892 o quarto centenário do descobrimento da América, com a sua bandeira coberta de crepe! A ser assim toda a atual mocidade estaria condenada a viver com a escravidão, a servi-la durante a melhor parte da vida, a manter um exército e uma magistratura para torná-la obrigatória e, pior talvez do que isso, a ver as crianças que hão de tomar os seus lugares dentro de vinte anos educadas na mesma escola que ela. Maxima debetur puero reverentia é um princípio de que a escravidão escarneceria vendo-o aplicado a simples crias; mas ele deve ter alguma influência aplicado aos próprios filhos do senhor. [1]

Vinte anos de escravidão, por outro lado, quer dizer durante todo esse tempo o nome do Brasil inquinado, unido com o da Turquia, arrastado pela lama da Europa e da América, objeto de irrisão na Ásia de tradições imemoriais e na Oceania três séculos mais jovem do que nós. Como há de uma nação, assim atada ao pelourinho do mundo, dar ao seu exército e à sua marinha, que amanhã podem talvez ser empregados em dominar uma insurreição de escravos, virtudes viris e militares, inspirar-lhes o respeito da pátria? Como pode ela igualmente competir, ao fim desse prazo de enervação, com as nações menores que estão crescendo ao seu lado, a República Argentina à razão de 40 mil imigrantes espontâneos e trabalhadores por ano, e o Chile homogeneamente pelo trabalho livre, com todo o seu organismo sadio e forte? Manter por esse período todo a escravidão como instituição nacional equivale a dar mais vinte anos para que exerça toda a sua influência mortal à crença de que o Brasil precisa da escravidão para existir; isso, quando o norte, que era considerado a parte do território que não poderia dispensar o braço escravo, está vivendo sem ele, e a escravidão floresce apenas em São Paulo, que pode pelo seu clima atrair o colono europeu e com o seu capital pagar o salário do trabalho que empregue, nacional ou estrangeiro.

Estude-se a ação sobre o caráter e a índole do povo de uma lei do alcance e da generalidade da escravidão; veja-se o que é o Estado entre nós, poder coletivo que representa apenas os interesses de uma pequena minoria e por isso envolve-se e intervém em tudo o que é da esfera individual, como a proteção à indústria, o emprego da reserva particular e, por outro lado, abstém-se de tudo o que é da sua esfera, como a proteção à vida e segurança individual, a garantia da liberdade dos contratos: por fim, prolongue-se pela imaginação por um tão longo prazo a situação atual das instituições minadas pela anarquia e apenas sustentadas pelo servilismo, com que a escravidão substitui ao liquidar-se respectivamente o espírito de liberdade e o de ordem, e diga o brasileiro que ama a sua pátria se podemos continuar por mais vinte anos com esse regime corruptor e dissolvente.

Se esperar vinte anos quisesse dizer preparar a transição por meio da educação do escravo; desenvolver o espírito de cooperação; promover indústrias; melhorar a sorte dos servos da gleba; repartir com eles a terra que cultivam na forma desse nobre testamento da condessa do Rio Novo; suspender a venda e a compra de homens; abolir os castigos corporais e a perseguição privada; fazer nascer a família, respeitada apesar da sua condição, honrada em sua pobreza; importar colonos europeus – o adiamento seria por certo um progresso; mas tudo isso é incompatível com a escravidão no seu declínio, na sua bancarrota, porque tudo isso significaria aumento de despesa, e ela só aspira a reduzir o custo das máquinas humanas de que se serve e a dobrar-lhes o trabalho.

Dar dez, quinze, vinte anos ao agricultor para preparar-se para o trabalho livre, isto é, condená-lo à previsão com tanta antecedência, encarregá-lo de elaborar uma mudança, é desconhecer a tendência nacional de deixar para o dia seguinte o que se deve fazer na véspera. Não é prolongando os dias da escravidão que se há de modificar essa aversão à previdência; mas sim destruindo-a, isto é, criando a necessidade, que é o verdadeiro molde do caráter.

Tudo o mais reduz-se a sacrificar um milhão e meio de pessoas ao interesse privado dos seus proprietários, interesse que vimos ser moralmente e fisicamente homicida, por maior que seja a inconsciência desses dois predicados por parte de quem o explora. Em outras palavras, para que alguns milhares de indivíduos não fiquem arruinados, para que essa ruína não se consume, eles precisam não somente de trabalho certo e permanente, que o salário lhes pode achar, mas também de que a sua propriedade humana continue a ser permutável, isto é, a ter valor na carteira dos bancos e desconto nas praças do comércio. Um milhão e meio de pessoas têm que ser oferecidas ao Minotauro da escravidão, e nós temos que alimentá-lo durante vinte anos mais com o sangue das nossas novas gerações. Pior ainda do que isso, 10 milhões de brasileiros, que nesse decurso de tempo talvez cheguem a ser 14, continuarão a suportar os prejuízos efetivos e os lucros cessantes que a escravidão lhes impõe, e vítimas do mesmo espírito retardatário que impede o desenvolvimento do país, a elevação das diversas classes, e conserva a população livre do interior em andrajos, e, mais triste do que isso, indiferente à sua própria condição moral e social. Que interesse ou compaixão podem inspirar ao mundo 10 milhões de homens que confessam que, em faltando-lhes o trabalho forçado e gratuito de poucas centenas de milhares de escravos agrícolas, entre eles velhos, mulheres e crianças, se deixarão morrer de fome no mais belo, rico e fértil território que até hoje nação alguma possuiu? Essa mesma atonia do instinto da conservação pessoal e da energia que ele demanda não estará mostrando a imperiosa necessidade de abolir a escravidão sem perda de um momento?

Notas do autor

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  1. “O resultado há sido este: em onze anos, o Estado não logrou manumitir senão 11 mil escravos, ou a média anual de mil, que equivale aproximadamente a 0,7% sobre o algarismo médio da população escrava existente no período de 1871 a 1882. É evidentemente obra mesquinha que não condiz à intensidade de intuito que a inspirou. Com certeza, ninguém suspeitou em 1871 que, ao cabo de tão largo período, a humanitária empresa do Estado teria obtido esse minguado fruto.”
    Jornal do Commercio, artigo editorial de 28 de setembro de 1882.