CAPÍTULO XVII

RECEIOS E CONSEQUENCIAS. — CONCLUSÃO

A história do mundo, e especialmente a dos Estados desta União, mostra do modo o mais concludente que a prosperidade pública está sempre em uma proporção quase matemática para o grau de liberdade de que gozam todos os habitantes do Estado. [1]

Admitida a urgência da abolição para todos os que não se contentam com o ideal de Java da América sonhado para o Brasil, e provada a necessidade dessa operação tanto quanto pode provar-se em cirurgia a necessidade de amputar a extremidade gangrenada para salvar o corpo, devemos considerar os receios e as predições dos adversários da reforma.

Em primeiro lugar, porém, é preciso examinar se há no país forças capazes de lutar com a escravidão e de vencê-la. Vemos como ela possui o solo e por esse meio tem ao seu serviço a população do interior, que se compõe de moradores proletários, tolerados em terras alheias; sabemos que ela está senhora do capital disponível, tem à sua mercê o comércio das cidades, do seu lado a propriedade toda do país, e, por fim, às suas ordens uma clientela formidável de todas as profissões, advogados, médicos, engenheiros, clérigos, professores, empregados públicos; além disso, a maior parte das forças sociais constituídas, e seguramente dessas todas as que são resistentes e livres, sustentam-na quanto podem.

Por outro lado, é sabido que a escravidão, assim defendida, com esse grande exército alistado sob a sua bandeira, não está disposta a capitular; não está mesmo sitiada, senão por forças morais, isto é, por forças que para atuarem precisam ter um ponto de apoio dentro dela mesma, em sua própria consciência. Pelo contrário, é certo que a escravidão se oporá com a maior tenacidade – e resolvida a não perder um palmo de terreno por lei – a qualquer tentativa do Estado para beneficiar os escravos.

Palavras vagas, promessas mentirosas, declarações inofensivas, tudo isso ela admite: desde, porém, que se trate de fazer uma lei de pequeno ou grande alcance direto para aqueles, o chacal há de mostrar as presas a quem penetrar no seu ossário.

Infelizmente para a escravidão, ao enervar o país todo, ela enervou-se também; ao corromper, corrompeu-se. Esse exército é uma multidão indisciplinada, heterogênea, ansiosa por voltar-lhe as costas; essa clientela tem vergonha de viver das suas migalhas, ou de depender do seu favor; a população que vive nômade em terras de outrem, no dia em que se lhe abra uma perspectiva de possuir legitimamente a terra em que se lhe consente viver como párias, abandonará a sua presente condição de servos; quanto às diversas forças sociais, o servilismo as tornou tão fracas, tímidas e irresolutas que ela serão as primeiras a aplaudir qualquer renovação que as destrua, para reconstruí-las com outros elementos. Senhora de tudo e de todos, a escravidão não poderia levantar em parte alguma do país um bando de guerrilhas que um batalhão de linha não bastasse para dispersar. Habituada ao chicote, ela não pensa em servir-se da espingarda e, assim como está resolvida a empregar todos os seus meios de 1871 – os Clubes da Lavoura, as cartas anônimas, a difamação pela imprensa, os insultos no Parlamento, as perseguições individuais – que dão a medida da sua energia potencial, está também decidida de antemão a resignar-se à derrota. O que há de mais certo em semelhante campanha é que dez anos depois, como aconteceu com a de 1871, os que nela tomarem parte contra a liberdade hão de ter vergonha da distinção que adquiriram e se hão de pôr a mendigar o voto daqueles a quem quiseram fazer o maior mal que um homem pode infligir a outro: o de afundá-lo na escravidão, a ele ou aos seus filhos, quando um braço generoso luta para salvá-los.

Por tudo isso o poder da escravidão, como ela própria, é uma sombra. Ela, porém, conseguiu produzir outra sombra mais forte, resultado, como vimos, da abdicação geral da função cívica por parte do nosso povo: o governo. O que seja essa força, não se o pode melhor definir do que o fez, na frase já uma vez citada, o eloquente homem de Estado que mediu pessoalmente com o seu olhar de águia o vasto horizonte desse pico – “o Poder é o Poder”. Isso diz tudo. Do alto dessa fantasmagoria colossal, dessa evaporação da fraqueza e do entorpecimento do país, dessa miragem da própria escravidão no deserto que ela criou, a casa da fazenda vale tanto quanto a senzala do escravo. Sem dúvida alguma, o Parlamento no novo regime eleitoral está impondo a vontade dos seus pequenos corrilhos, sobre os quais a lavoura exerce a maior coação: mas ainda assim o governo paira acima das Câmaras e, quando seja preciso repetir o fenômeno de 1871, as Câmaras hão de se sujeitar como então fizeram.

Essa é a força capaz de destruir a escravidão, da qual, aliás, dimana, ainda que talvez venham a morrer juntas. Essa força neste momento está avassalada pelo poder territorial, mas todos veem que um dia entrará em luta com ele, e que a luta será desesperada, quer este peça a abolição imediata, quer peça medidas indiretas, quer queira suprimir a escravidão de um jato ou somente fechar o mercado de escravos.

A opinião pública, tal qual se está formando, tem influência e ação sobre o governo. Ele representa o país perante o mundo, concentra em suas mãos a direção de um vasto todo político, que estaria pronto para receber sem abalo a notícia da emancipação, se não fossem os distritos de café nas províncias de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, e assim é sempre impedido pela consciência nacional a afastar-se cada vez mais da órbita que a escravidão lhe traçou.

Por maior que seja o poder desta, o seu crédito nos bancos, o valor da sua propriedade hipotecada, ela está como o erro dogmático para a verdade demonstrada. Uma onça de ciência vale, por fim, mais do que uma tonelada de fé: assim também o mínimo dos sentimentos nobres da humanidade acaba por destruir o maior de todos os monopólios dirigido contra ele. Sem atribuir força alguma metafísica aos princípios quando não há quem os imponha, ou quando a massa humana, a que nós queremos aplicá-los, lhes é refratária, não desconto alto demais o caráter, os impulsos, as aspirações da nação brasileira dizendo que todas as suas simpatias, desprezados os interesses, são pela liberdade contra a escravidão.

Todavia, é forçoso reconhecê-lo: a atitude relutante da única força capaz de destruir esta última, isto é, o governo, a medida insignificante ainda em que ele é acessível à opinião, e o progresso lento desta, não nos deixam esperar que se realize tão cedo o divórcio. Se não existisse a pressão abolicionista, todavia, ele seria ainda mais demorado. O nosso esforço consiste, pois, em estimular a opinião, em apelar para a ação que deve exercer entre todas as classes a crença de que a escravidão não avilta somente o nosso país: arruína-o materialmente. O agente está aí, é conhecido, é o Poder. O meio de produzi-lo é também conhecido: é a opinião pública. O que resta é inspirar a esta a energia precisa, tirá-la do torpor que a inutiliza, mostrar-lhe como a inércia prolongada é o suicídio.

Vejamos agora os receios que a reforma inspira. Teme-se que a abolição seja a morte da lavoura, mas a verdade é que não há outro modo de aviventá-la. Há noventa anos Noah Webster escreveu num opúsculo acerca dos efeitos da escravidão sobre a moral e a indústria o seguinte:

A um cidadão da América parece estranho e admira-lhe que no século VIII [e a nós brasileiros quase cem anos depois?] tal questão seja objeto de dúvida em qualquer parte da Europa; e mais ainda assunto de discussão séria [a questão: “Se é mais vantajoso para um Estado que o camponês possua terra ou outros quaisquer bens, e até que limite deve ser admitida essa propriedade no interesse público?” posta em concurso pela Sociedade Econômica de São Petersburgo]. Entretanto, não somente na Rússia e grande parte da Polônia, mas também na Alemanha e Itália, onde há muito a luz da ciência dissipou a noite da ignorância gótica, os barões se ofenderiam com a simples ideia de dar liberdade aos seus camponeses. Essa repugnância deve nascer da suposição de que, se os libertassem, os seus estabelecimentos sofreriam materialmente; porque o orgulho só não seria obstáculo ao interesse. Mas isso é um engano fatalíssimo, e americanos não deveriam ser os últimos a convencer-se de que o é; homens livres não só produzem mais, como gastam menos do que escravos; não só são mais trabalhadores, são mais providos também, e não há um proprietário de escravos na Europa ou América que não possa dobrar em poucos anos o valor do seu estabelecimento agrícola, alforriando os seus escravos e ajudando-os no manejo das suas culturas.[2]

As palavras finais que eu grifei são tão exatas e verdadeiras hoje como eram quando foram escritas; tão exatas então como seriam, no fundo, ao tempo em que a Sicília romana estava coberta de ergástulos e os escravos viviam a mendigar ou a roubar.

A esse respeito a prova mais completa possível é a transformação material e econômica da lavoura nos Estados do Sul depois da guerra: a agricultura é hoje ali muitas vezes mais rica, próspera e florescente do que no tempo em que a colheita do algodão representava os salários sonegados à raça negra, e as lágrimas e misérias do regime bárbaro que se dizia necessário àquele produto. Não é mais rica somente por produzir maior colheita e dar maior renda; é mais rica porque a estabilidade é outra, porque as indústrias estão afluindo, as máquinas multiplicando-se, e a população vai crescendo, em desenvolvimento moral, intelectual e social desimpedido.

Em data de 1º de setembro de 1882 escrevia o correspondente do Times em Filadélfia:”

“No fim da guerra”, disse enfaticamente um dos representantes do sul na recente Convenção dos Banqueiros em Saratoga, “o sul ficou apenas com terras e dívidas.” Contudo, o povo começou a trabalhar para desenvolver as primeiras e libertar-se das segundas, e, depois de alguns anos de inteligente dedicação a esses grandes deveres, ele conseguiu resultados que o surpreendem tanto, como ao resto do mundo. Assim, a abolição da escravidão com a queda dos sistemas de agricultura que ela sustentava foi da maior vantagem para o sul. Nenhum país do globo passou por uma revolução social mais completa – e, todavia, comparativamente pacífica e quase desapercebida – do que os Estados do Sul desde 1865. O fim da rebelião encontrou o sul privado de tudo menos a terra, e carregado de uma imensa dívida individual – fora a dos Estados -, dívida contraída principalmente pelo crédito fundado no valor da propriedade escrava. No maior estado do sul – a Geórgia – esse valor subia a $30,000,000 (60 mil contos). A abolição destruiu a garantia, mas deixou de pé a dívida, e, quando cessaram as hostilidades, o sul estava exaurido, meio faminto e falido, nacionalmente e individualmente, com os libertos feitos senhores, e induzidos a toda a sorte de excessos políticos pelos brancos sem escrúpulos que se puseram à frente deles.

Depois da restauração da paz, o alto preço do algodão incitou os lavradores a cultivá-lo quanto possível, e como a nova condição do negro impedia o seu antigo senhor de dispor do trabalho dele, tornou-se a princípio costume quase invariável dos proprietários arrendarem as plantações aos libertos e procurarem tirar delas o mesmo rendimento que antes da rebelião, e isso sem trabalho pessoal. Muitos dos agricultores mudaram-se para as cidades, deixando a administração das suas terras aos libertos, e uma vez que lhes fosse paga a renda do algodão, não se importavam com os métodos empregados. Os negros, livres de toda fiscalização, lavravam imensas áreas, remexendo a flor da terra com pequenos arados, não empregando adubo, nunca deixando o solo descansar, e seguindo do modo o mais fácil os métodos de cultura que aprenderam quando escravos. Dessa forma, cedo as plantações ficaram exaustas na superfície do solo, e os libertos não puderam mais conseguir colheita bastante, nem para pagar a renda, nem para o seu próprio sustento. Os proprietários, que viviam na ociosidade, acharam-se assim com os seus rendimentos suspensos e as suas terras estragadas, ao passo que, estando o país cheio de estabelecimentos nas mesmas condições, a venda era quase impossível a qualquer preço. A necessidade então forçou-os a voltar às suas plantações, de modo que por administração pessoal elas pudessem ser restauradas na sua força produtiva anterior; mas esses processos negligentes e atrasados mantiveram o sul por diversos anos em uma condição extremamente precária.

Durante a última década, os agricultores convenceram-se de que tal sistema não devia continuar indefinidamente; que o estilo de lavoura lhes estava arruinando as terras; que os fabricantes e os banqueiros, com juros altos, lucros enormes e dispondo, incontestavelmente, das colheitas eram os únicos a colher benefícios; e que, por falta de capital bastante para dirigirem os seus negócios, pelo sistema de pagamento à vista, eles se conservavam pobres e trabalhavam as suas plantações com desvantagem sempre crescente. Isso determinou mudanças que foram todas para o bem duradouro do sul. As plantações estão sendo cortadas em pequenos sítios, e a classe mais inteligente está cultivando menor número de jeiras, alternado as safras, descansando a terra, adaptando um melhor sistema de lavrar e fazendo uso em grande escala de estrumes. Eles agora conseguem, em muitos casos onde este sistema adiantado está há anos em prática, um fardo de algodão por jeira onde antes eram precisos cinco ou seis jeiras para produzir um fardo de qualidade inferior. Eles estão também plantando mais trigo e aveia, produzindo mais carne para os trabalhadores e mais forragem de diversas espécies para os animais. A grande colheita é sempre o algodão – que dá uma safra maior proporcionalmente à superfície do que anos atrás –, mas o algodão não é já tão rei absoluto como antes foi. O sul pode hoje sustentar-se por si em quase toda a parte, no que concerne à alimentação. Os mantimentos e o trigo do norte e do oeste não encontram mais ali o mesmo mercado de antes da guerra. Trabalhando por sistemas sensatos, os plantadores estão tirando muito melhores resultados; em geral livraram-se das dívidas e sentem-se em condição mais vantajosa, ao passo que o trabalho no sul está tão contente que não se tem ouvido falar dele este verão. Essa é a grande revolução pacífica – social e industrial – que teve lugar nesta década, todavia, de modo tão quieto a surpreender a todos quando as publicações do recenseamento a revelaram.

O mesmo correspondente em data de 1º de abril de 1880 havia transmitido algumas observações de Jefferson Davis, o presidente da Confederação, sobre os resultados da medida que emancipou os escravos:

As suas opiniões, ele o confessou, mudaram inteiramente com referência à cultura do algodão e do açúcar. Essas mercadorias principais do sul podem ser produzidas em maior abundância e com mais economia pagando-se o trabalho do que por escravos. Isso, disse ele, está demonstrado e serve para mostrar como foi vantajosa para os brancos a abolição da escravidão. O sul depende menos do norte do que antes da guerra. Ao passo que ele continua a exportar os seus grandes produtos (o algodão e o açúcar), o povo está produzindo maior variedade de colheitas para uso próprio e há de eventualmente competir com o norte em manufaturas e nas artes mecânicas. [3]

Ambas essas citações encerram, com a autoridade da experiência, e da história elaborada debaixo de nossas vistas, grandes avisos aos nossos agricultores, assim como a maior animação para o nosso país. Não há dúvida de que o trabalho livre é mais econômico, mais inteligente, mais útil à terra, benéfico ao distrito onde ela está encravada, mais próprio para gerar indústrias, civilizar o país e elevar o nível de todo o povo. Para a agricultura o trabalho livre é uma vida nova, fecunda, estável e duradoura. Buarque de Macedo entreviu a pequena lavoura dos atuais escravos em torno dos engenhos centrais de açúcar e deu testemunho disso para despertar a energia individual. A todos os respeitos, o trabalho livre é mais vantajoso do que o escravo. Não é a agricultura que há de sofrer por ele.

Sofrerão, porém, os atuais proprietários, e se sofrerem terão o direito de queixar-se do Estado? Acabamos de ler que a Guerra Civil americana só deixou em mãos dos antigos senhores terras e dívidas. Mas entre nós não se dá o mesmo que nos Estados Unidos. Ali a emancipação veio depois de uma rebelião, à qual nenhuma outra pode ser comparada; depois de um bloqueio ruinoso, e muito mais cedo do que os abolicionistas mais esperançosos de Boston ou Nova York podiam esperar. No Brasil, fez-se há doze anos uma lei que para os atuais possuidores não podia senão significar que a nação estava desejosa de pôr termo à escravidão, que tinha vergonha de ser um país de escravos, e só não decretava em vez da alforria dos nascituros a dos próprios escravos para não prejudicar os interesses dos senhores. O Brasil, em outras palavras, para não ferir de leve a propriedade de uma classe de indivíduos, muitos deles estrangeiros, filhos de países onde a escravidão não existe e nos quais a proibição de possuir escravos, qualquer que seja a latitude, já devera ser parte do estatuto pessoal da nacionalidade, assentiu a continuar responsável por um crime.

O argumento dos proprietários de escravos é com efeito este: “O meu escravo vale um conto de réis, empregado nele de boa-fé, ou possuído legalmente pelo princípio da acessão do fruto. Se tendes um conto de réis para dar-me por ele, tendes o direito de libertá-lo. Mas, se não tendes essa quantia, ele continuará a ser meu escravo.” Eu admito este argumento, o qual significa isto: desde que uma geração consentiu ou tolerou um crime qualquer, seja a pirataria, seja a escravidão, outra geração não pode suprimir esse crime sem indenizar os que cessarem de ganhar por ele; isto é, enquanto não tiver o capital que esse crime representa, não poderá, por mais que a sua consciência se revolte e ela queira viver honestamente, desprender-se da responsabilidade de cobri-lo com a sua bandeira e de prestar-lhe o auxílio das suas tropas, em caso de necessidade. À vista dessa teoria nenhum país pode subir um degrau na escada da civilização e da consciência moral se não tiver com que desapropriar a sua imoralidade e o seu atraso. Adoto, entretanto, esse ponto de vista para simplificar a questão e conceder o princípio de que o Estado deva entrar em acordo para indenizar a propriedade escrava, legalmente possuída.

Em 1871, porém, a nação brasileira deu o primeiro aviso à escravidão de que a consciência a vexava, e ela estava ansiosa por liquidar esse triste passado e começar vida nova. Pode alguém, que tenha adquirido escravos depois dessa data, queixar-se de não ter sido informado de que a reação do brio e do pudor começava a tingir as faces da nação? O preço dos escravos subiu depois da lei; chegou em São Paulo a três contos de réis, como subira depois de acabado o tráfico, sendo o efeito de cada lei humanitária que restringe a propriedade humana aumentar-lhe o valor como o de qualquer outra mercadoria, cuja produção diminui quando a procura continua ser a mesma. Mas tem o Estado que responder pelo incremento de valor do escravo, sátira pungente de cada medida de moralidade social, e que mostra como o comércio da carne humana gira todo fora da ação do patriotismo? Não é só do que a lei proíbe que o cidadão cioso do nome do seu país deve abster-se conscienciosamente: mas de tudo quanto ele sabe que a lei só não proíbe porque não pode, e que envergonha a lei, sobretudo depois que a nação lhe dá um aviso de que é preciso acabar quanto antes com esse abuso, cada brasileiro ajudando o Estado a fazê-lo. Haverá entre nós quem desconheça que a Constituição teve vergonha da escravidão e que a Lei de 28 de setembro de 1871 foi um solene aviso nacional, um apelo ao patriotismo?

Durante cinquenta anos a grande maioria da propriedade escrava foi possuída ilegalmente: nada seria mais difícil aos senhores tomados coletivamente do que justificar perante um tribunal escrupuloso a legalidade daquela propriedade, tomada também em massa. Doze anos, porém, depois da Lei de 28 de setembro, como fundariam eles quaisquer acusações de má-fé, espoliação e outras, contra o Estado por transações efetuadas sobre escravos?

Ninguém infelizmente espera que a escravidão acabe de todo no Brasil antes de 1890; não há poder atualmente conhecido que nos deixe esperar uma duração menor, e uma lei que hoje lhe marcasse esse prazo aplacaria de repente as ondas agitadas. Pois bem, não há escravo que dentro de cinco anos não tenha pago o seu valor, sendo os seus serviços inteligentemente aproveitados. Pense, entretanto, a lavoura, faça cada agricultor a conta dos seus escravos: do que eles efetivamente lhe custaram e do que lhe renderam, das crias que produziram – descontando os africanos importados depois de 1831 e seus filhos conhecidos, pelos quais seria um ultraje reclamarem uma indenização pública – e vejam se o país, depois de grandes e solenes avisos para que descontinuassem essa indústria cruel, não tem o direito de extingui-la de chofre sem ser acusado de os sacrificar.

Se eles não conseguem reunir as suas hipotecas, pagar as suas dívidas, a culpa não é dos pobres escravos que os ajudam quanto podem, e não devem responder pelo que o sistema da escravidão tem de mau e de contrário aos interesses do agricultor. Dê cada senhor hoje uma papeleta a cada um dos seus escravos, inscrevendo na primeira página não já o que ele lhe custou – somente esse processo eliminaria metade da escravatura legal –, mas o que cada um vale no mercado, e lance ao crédito desse escravo cada serviço que ele preste; dentro de pouco tempo a dívida estará amortizada. Se alguma coisa o escravo lhe ficar restando, ele mesmo fará honra à sua firma, servindo-o depois de livre: tudo o que não for isso é usura e a pior de todas, a de Shylock, levantada sobre a carne humana, e, pior do que a de Shilock, executada pelo próprio usurário.

Se a agricultura hoje não dá rendimento para a amortização da dívida hipotecária, e não há probabilidade de que em tempo algum a lavoura com o presente sistema possa libertar os seus escravos sem prejuízo, não há vantagem alguma para o Estado em que a propriedade territorial continue em mãos de quem não pode fazê-la render, e isso mediante a conservação por lei de um sistema desacreditado de sequestro pessoal. Nesse caso a emancipação teria ainda a vantagem de introduzir sangue novo na agricultura, promovendo a liquidação do atual regime. A lavoura, quer a do açúcar, quer a do café, nada tem que temer do trabalho livre. Se hoje o trabalho é escasso; se uma população livre válida e desocupada, que já se calculou, em seis províncias somente, em cerca de 3 milhões de braços,[4] continua inativa; se o próprio liberto recusa trabalhar na fazenda onde cresceu, tudo isso é resultado da escravidão, que faz do trabalho ao lado do escravo um desar para o homem livre, desar que não o é para o europeu, mas que o liberto reconhece e não tem coragem de sobrepujar.

Tudo nessa transição, tão fácil havendo boa inteligência entre o país e a lavoura, como difícil resistindo esta ao fato consumado, depende dos nossos agricultores. Se a escravidão não houvesse por assim dizer esgotado os recursos do nosso crédito; se a Guerra do Paraguai, cujas origens distantes são tão desconhecidas ainda, não nos tivesse murado o futuro por uma geração toda; nada seria mais remunerador para o Estado do que ajudar por meio de seu capital a rápida reconstrução da nossa agricultura. Auxílios à lavoura para outro fim, diverso da emancipação – para mobilizar e fazer circular pela Europa, em letras hipotecárias, como o pretendia a Lei de 6 de novembro de 1875, a propriedade escrava – seria, além de um plano injusto de socorros à classe a mais favorecida à custa de todas as outras, complicar a falência da lavoura com a do Estado e arrastá-los à mesma ruína. Nem “auxílios à lavoura” pode significar, em um país democratizado como o nosso e que precisa do imposto territorial para abrir espaço à população agrícola, um subsídio à grande propriedade com desprezo dos pequenos lavradores que aspiram a possuir o solo onde são rendeiros. Mas, por outro lado, de nenhum modo poderia o Estado usar melhor do seu crédito do que para, numa contingência, facilitar à agricultura a transição do regime romano dos ergástulos ao regime moderno do salário e do contrato livre.

Não há em todo o movimento abolicionista, e no futuro que ele está preparando, senão benefício para a agricultura, como indústria nacional; e, como classe, para os agricultores solváveis, ou que saibam aproveitar as condições transformadas do país. O exemplo dos Estados do Sul deve servir-lhes de farol; cada um dos escolhos em que seria possível naufragar foram cuidadosamente iluminados. Nem rebelião contra uma consciência nacional superior, nem desconfiança dos seus antigos escravos, nem abandono completo das suas terras aos libertos, nem absenteísmo, nem a rotina da velha cultura, nem desânimo; mas, reconhecimento do fato consumado como um progresso para o país todo e, portanto, para eles mesmos que são e continuarão a ser a classe preponderante do país, a criação de novos laços de gratidão e amizade entre eles e os que os serviram como cativos e estão presos às suas terras, a elevação dessa classe pela liberdade, a melhor educação dos seus filhos, a indústria, a perseverança, a agronomia.

Nós não estamos combatendo a lavoura contra o seu próprio interesse: não só a influência política dos nossos agricultores há de aumentar quando se abaterem essas muralhas de preconceitos e suspeitas que lhes cercam as fazendas e os engenhos, como também a sua segurança individual será maior, e os seus recursos crescerão pari passu com o bem-estar, a dignidade, o valor individual da população circunvizinha. O trabalho livre, dissipando os últimos vestígios da escravidão, abrirá o nosso país à imigração europeia; será o anúncio de uma transformação viril e far-nos-á entrar no caminho do crescimento orgânico e, portanto, homogêneo. O antagonismo latente das raças – a que a escravidão é uma provocação constante, e que ela não deixa morrer, por mais que isso lhe convenha – desaparecerá de todo. Tudo isso servirá para reconstruir sobre bases sólidas o ascendente social da grande propriedade, para abrir-lhe altas e patrióticas ambições, para animá-la do espírito de liberdade, que nunca fez a desgraça de nenhum povo e de nenhuma classe. Volte a nossa lavoura resolutamente as costas à escravidão, como fez com o tráfico, e dentro de vinte anos de trabalho livre os proprietários territoriais brasileiros formarão uma classe a todos os respeitos mais rica, mais útil, mais poderosa e mais elevada na comunhão do que hoje.

Quem fala sinceramente esta linguagem só deve ser considerado inimigo da lavoura, se lavoura e escravidão são sinônimos. Mas, quando, pelo contrário, esta é a vítima daquela; quando, humilhado o escravo, a escravidão não consegue senão arruinar o senhor, entregar depois de duas gerações as suas terras à usura e atirar os seus descendentes ao hospício do Estado; quem denuncia honestamente a escravidão não denuncia a lavoura, mas trata de separá-la da influência que a entorpece, ainda que para salvá-la seja preciso descrever com toda a verdade o que a escravidão faz dela.

Foi sempre a sorte de quantos se opuseram à loucura de uma classe ou de uma nação, e procuraram convencê-las de que se sacrificaram perseverando num erro ou num crime, serem tidos por inimigos de uma ou de outra. Cobden foi considerado inimigo da agricultura inglesa porque pediu que o pobre tivesse o direito de comprar o pão barato; e Thiers foi acusado de traidor à França porque quis detê-la no caminho de Sedan. Pensem, porém, os nossos lavradores no futuro.

Dois meninos nasceram na mesma noite de 27 de setembro de 1871 nessa fazenda cujo regime se pretende conservar: um é senhor do outro. Hoje eles têm, cada um, perto de doze anos. O senhor está sendo objeto de uma educação esmerada; o escravo está crescendo na senzala. Quem há tão descrente do Brasil a ponto de supor que em 1903, quando ambos tiverem trinta e dois anos, esses dois homens estarão um para o outro na mesma relação de senhor e escravo? Quem não admite que essas duas crianças, uma educada para grandes coisas, outra embrutecida para o cativeiro, representam duas correntes sociais que já não correm paralelas – e, se corressem, uma terceira, a dos nascidos depois daquela noite, servir-lhes-ia de canal –, mas se encaminham para um ponto dado em nossa história na qual devem forçosamente confundir-se? Pois bem, o Abolicionismo o que pretende é que essas duas correntes não se movam uma para outra mecanicamente, por causa do declive que encontram; mas espontaneamente, em virtude de uma afinidade nacional consciente. Queremos que se ilumine e se esclareça toda aquela parte do espírito do senhor, que está na sombra: o sentimento de que esse, que ele chama escravo, é um ente tão livre como ele pelo direito do nosso século; e que se levante todo o caráter, edificado abaixo do nível da dignidade humana, do que chama o outro senhor, e se lhe insufle a alma do cidadão que ele há de ser; isto é, que um e outro sejam arrancados a essa fatalidade brasileira – a escravidão – que moralmente arruína ambos.



Posso dar por terminada a tarefa que empreendi ao começar este volume de propaganda, desde que não entra no meu propósito discutir as diversas medidas propostas para aperfeiçoar a Lei de 28 de setembro de 1871, como o plano de localizar a escravidão, o de transformar escravos e ingênuos em servos da gleba, o aumento do fundo de emancipação. Todas essas medidas são engendradas por espíritos que não encaram a escravidão como fator social, como um impedimento levantado no caminho do país todo, ao desenvolvimento e bem-estar de todas as classes, à educação das novas gerações. Nenhum deles compreende a significação política, moral e econômica, para uma nação qualquer mergulhada na escravidão, de um testemunho como o seguinte, dado em sua mensagem de 1881 ao Congresso pelo presidente James Garfield, sobre os efeitos da emancipação nos Estados Unidos:

A vontade da nação, falando com a voz da batalha por intermédio de uma Constituição emendada, cumpriu a grande promessa de 1767 ao proclamar a liberdade em todo o país para todos os seus habitantes. A elevação da raça negra do cativeiro à plenitude dos direitos do cidadão é a mais importante mudança política que nós conhecemos desde que foi adotada a Constituição de 1787. Nenhum homem refletido deixará de reconhecer os benéficos efeitos daquele acontecimento sobre as nossas instituições e o nosso povo. Ele livrou-nos do constante perigo da guerra e dissolução; aumentou imensamente as forças morais e industriais do nosso povo; libertou tanto o senhor como o escravo de uma relação que prejudicava e enfraquecia ambos; entregou à sua própria tutela a virilidade de mais de 5 milhões de pessoas, e abriu a cada uma delas uma carreira de liberdade e de utilidade; deu uma nova inspiração ao poder de self-help em ambas as raças, tornando o trabalho mais honroso para uma e mais necessário à outra. A influência dessa força há de crescer cada vez mais, e dar melhores frutos com o andar dos tempos.

Nós, porém, que temos certeza de que essa mesma linguagem honrosa para todos, ex- escravos e ex-senhores, poderia ser usada poucos anos depois do ato que abolisse hoje a escravidão no Brasil, não podemos querer que se sacrifiquem esses grandes interesses do país aos interesses de uma classe retardatária, que nunca se apressou a acompanhar a marcha do século e da nação, apesar dos avisos da lei e das súplicas dos brasileiros patriotas – tanto mais que tal sacrifício seria em pura perda.”

“A nossa verdadeira política”, dizia em 1854 um jornal do sul da União americana, “é olhar para o Brasil como a segunda grande potência escravocrata. Um tratado de comércio e aliança com o Brasil conferir-nos-á o domínio sobre o golfo do México e os estados que ele banha, juntamente com as ilhas; e a consequência disto colocará a escravidão africana fora do alcance do fanatismo no interior ou no estrangeiro. Esses dois grandes países de escravos devem proteger e fortificar os seus interesses comuns... Nós podemos não só preservar a escravidão doméstica, mas também desafiar o poder do mundo...” [5]

Esse sonho de união e aliança escravagista desfez-se nas sucessivas batalhas que impediram a formação de um grande e poderoso Estado americano criado para perpetuar e estender pela América toda o cativeiro das raças africanas. Mas o Brasil continua a ser aos olhos do continente o tipo da nação de escravos, o representante de uma forma social rudimentar, opressiva e antiga. Até quando será esse o nosso renome e teremos em nossos portos esse sinal de peste que afasta os imigrantes para os Estados que procuram competir conosco?

O nosso país foi visitado e estudado por homens de ciência. O maior de todos eles, Charles Darwin (mais de uma vez tenho feito uso desse exemplo), não achou outras palavras com que despedir-se de uma terra cuja admirável natureza devera ter exercido a maior atração possível sobre o seu espírito criador, senão estas: “No dia 19 de agosto deixamos por fim as praias do Brasil. Graças a Deus, nunca mais hei de visitar um país de escravos.” O espetáculo da escravidão na América, em pleno reinado da natureza, no meio das formas as mais belas, variadas e pujantes que a vida assume em nosso planeta, não podia, com efeito, inspirar outros sentimentos a sábios senão os que nos expressaram Darwin, Agassiz e, antes deles, Humboldt e José Bonifácio. Não é, porém, a mortificação, desinteressada e insuspeita, dos que amam e admiram a nossa natureza, que nos causa o maior dano: é, sim, a reputação que temos em toda a América do Sul de país de escravos, isto é, de sermos uma nação endurecida, áspera, insensível ao lado humano das coisas; é, mais ainda, essa reputação – injusta, porque o povo brasileiro não pratica a escravidão e é vítima dela – transmitida ao mundo inteiro e infiltrada no espírito da humanidade civilizada. Brasil e escravidão tornaram-se assim sinônimos: daí a ironia com que foi geralmente acolhida a legenda de que íamos fundar a liberdade no Paraguai; daí o desvio das correntes de imigração para o rio da Prata, que, se devesse ter uma política maquiavélica, invejosa e egoísta, devia desejar ao Brasil os trinta anos mais de escravidão que os advogados desse interesse reclamam. [6]

Se o Brasil só pudesse viver pela escravidão, seria melhor que ele não existisse; mas essa dúvida não é mais possível: ao lado de uma população que, entre escravos e ingênuos, não passa de 1,5 milhão de habitantes, temos uma população livre seis vezes maior. Se o resultado da emancipação fosse – o que não seria – destruir a grande cultura atual de gêneros de exportação, e o país atravessasse uma crise quanto ao rendimento nacional, mesmo isso não seria um mal relativamente ao estado presente, que se não é já a insolvabilidade encoberta ou adiada pelo crédito, está muito perto de o ser, e – se durar a escravidão – há de sê-lo. A escravidão tirou-nos o hábito de trabalhar para alimentar-nos; mas não nos tirou o instinto nem a necessidade da conservação, e esta há de criar novamente a energia atrofiada.

Se, por outro lado, a escravidão devesse forçosamente ser prolongada por todo o seu prazo atual, os brasileiros educados nos princípios liberais do século deveriam logo resignar-se a mudar de pátria. Mas, e esta é a firme crença de todos nós que a combatemos, a escravidão em vez de impelir-nos retém-nos: em vez de ser uma causa de progresso e expansão, impede o crescimento natural do país. Deixá-la dissolver-se e desaparecer insensivelmente como ela pretende é manter um foco de infecção moral permanente no meio da sociedade durante duas gerações mais, tornando por longo tempo endêmico o servilismo e a exploração do homem pelo homem, em todo o nosso território.

O que esse regime representa já o sabemos: moralmente, é a destruição de todos os princípios e fundamentos da moralidade religiosa ou positiva – a família, a propriedade, a solidariedade social, a aspiração humanitária: politicamente, é o servilismo, a degradação do povo, a doença do funcionalismo, o enfraquecimento do amor da pátria, a divisão do interior em feudos, cada um com o seu regime penal, o seu sistema de provas, a sua inviolabilidade perante a polícia e a justiça; economicamente, socialmente, é o bem-estar transitório de uma classe única, e essa decadente e sempre renovada; a eliminação do capital produzido, pela compra de escravos; a paralisação de cada energia individual para o trabalho na população nacional; o fechamento dos nossos portos aos imigrantes que buscam a América do Sul; a importância social do dinheiro seja como for adquirido; o desprezo por todos os que por escrúpulos se inutilizam ou atrasam numa luta de ambições materiais; a venda dos títulos de nobreza; a desmoralização da autoridade desde a mais alta até a mais baixa; a impossibilidade de surgirem individualidades dignas de dirigir o país para melhores destinos, porque o povo não sustenta os que o defendem, não é leal aos que se sacrificam por ele, e o país, no meio de todo esse rebaixamento do caráter, do trabalho honrado, das virtudes obscuras, da pobreza que procura elevar-se honestamente, está, como se disse dos Estados do Sul, “apaixonado pela sua própria vergonha”.[7]

Tudo, por certo, neste triste negócio da escravidão, não é assim desanimador. Nós vemos hoje, felizmente, por toda a parte sinais de que a manumissão de escravos se entranhou no patriotismo brasileiro, e forma a solenidade principal das festas de família e públicas. Desde 1873 até hoje foram inscritas em nossos registros oficiais 87.005 manumissões, e, apesar de ser impossível calcular o capital que esse número representa, não se conhecem as idades nem as condições individuais dos alforriados, aqueles algarismos são um elevado expoente da generosidade de caráter dos brasileiros. Tanto mais assim quanto são as cidades, onde a propriedade escrava se acha muito subdividida entre numerosas famílias pobres, que se destacam proeminentemente na lista, e não o campo onde há as grandes fábricas das fazendas. Na Corte, por exemplo, com uma população escrava neste decênio de 54.167 indivíduos, ao passo que a morte eliminou 8 mil, a liberalidade pública e particular manumitiu 10 mil; enquanto na província do Rio de Janeiro, com uma população escrava no mesmo período de 332.949 indivíduos, a morte deu baixa na matrícula a 51.269 escravos e foram alforriados 12.849. Em outros termos, na capital do país a generosidade nacional segue as pisadas da morte; na província esta ceifa quatro vezes mais depressa.

Por mais que nos desvaneçamos de ter registrado em dez anos 87.005 manumissões, devemos não esquecer que, no mesmo período só na província do Rio de Janeiro houve um movimento de importação e exportação entre os seus diversos municípios de 124 mil escravos. Isso quer dizer que o mercado de escravos, as transações de compra e venda sobre a propriedade humana deixam na sombra o valor das alforrias concedidas. Também, em todo o país, ao passo que foram alforriados de 1873 a 1882 70.183 escravos, morreram em cativeiro 132.777, ou cerca do dobro. Mas, quando a morte, que é uma força inerte e inconsciente, elimina dois, e a nação elimina um, esta faz dez ou vinte vezes menos do que aquela, que não tem interesse, nem dever de honra, no problema que está fatidicamente resolvendo.

Pensem os brasileiros, antes de tudo, nessa imensa população escrava que excede 1,2 milhão, e nos senhores desses homens; pensem nos que morrem, e nos que nascem, ou para serem criados como escravos, ou para serem educados como senhores; e vejam se esses 2 milhões de unidades nacionais devem ser ainda entregues à escravidão para que ela torture umas até a morte, corrompa as outras desde a infância, e se os outros milhões de brasileiros restantes devem continuar a ser os clientes ou servos de um interesse que lhes repugna e a viver sob o regime universal e obrigatório da escravidão tornada um Imperium in Imperio.

Assim foi em toda parte.

Como os rios brilham com cores diferentes, mas a cloaca é sempre a mesma [escreve Mommsen estudando a invariável pintura da escravidão antiga], assim a Itália da época ciceroniana parece-nos essencialmente com a Hélade de Políbio e mais ainda com a Cartago do tempo de Aníbal, onde exatamente do mesmo modo o regime onipotente do capital arruinou a classe média, elevou o negócio e a cultura ao maior grau de florescimento, e por fim produziu a corrupção moral e política da nação.

É essa mesmíssima instituição, carregada com as culpas da história toda, que, eliminada da Ásia e da Europa, esmagada na América, proscrita pela consciência humana e em vésperas de ser tratada por ela como pirataria, se refugia no Brasil e nos suplica que a deixemos morrer naturalmente, isto é, devorando para alimentar-se, o último milhão e meio de vítimas humanas que lhe restam no mundo civilizado.

O que devemos fazer? O que aconselham ao país – que até hoje tem sido a criatura daquele espírito infernal, mas que já começa a repudiar essa desonrosa tutela – os que adquiriram o direito de dar-lhe conselhos? O que lhe aconselha a Igreja, cujos bispos estão mudos vendo os mercados de escravos abertos; a imprensa, as academias, os homens de letras, os professores de direito, os educadores da mocidade, todos os depositários da direção moral do nosso povo? O que lhe dizem os poetas, a quem Castro Alves mostrou bem que num país de escravos a missão dos poetas é combater a escravidão? A mocidade, a quem Ferreira de Meneses e Manuel Pedro – para só falar dos mortos –, podem ser apontados como exemplos do que é a frutificação do talento quando é a liberdade que o fecunda? O que lhe aconselham, por fim, dois homens que têm cada um a responsabilidade de guias do povo? Um, o Sr. Saraiva, escreveu em 1868: “Com a escravidão do homem e do voto, continuaremos a ser como somos hoje, menosprezados pelo mundo civilizado que não pode compreender se progrida tão pouco com uma natureza tão rica”, e disse em 1873: “A grande injustiça da lei é não ter cuidado das gerações atuais”. O outro é o herdeiro do nome e do sangue de José Bonifácio, a cujos ouvidos devem ecoar as últimas palavras da Representação à Constituinte, como um apelo irresistível de além-túmulo, e cuja carreira política será julgada pela história como a de um sofista eloquente, se ele não colocar ainda os sentimentos de justiça, liberdade e igualdade, que tratou de despertar em nós, acima dos interesses dos proprietários de homens de São Paulo.

A minha firme convicção é que, se não fizermos todos os dias novos e maiores esforços para tornar o nosso solo perfeitamente livre, se não tivermos sempre presente a ideia de que a escravidão é a causa principal de todos os nossos vícios, defeitos, perigos e fraquezas nacionais, o prazo que ela ainda tem de duração legal – calculadas todas as influências que lhe estão precipitando o desfecho – será assinalado por sintomas crescentes de dissolução social. Quem sabe mesmo se o historiador do futuro não terá que aplicar-nos uma destas duas frases – ou a de Ewald sobre Judá – “A destruição total do antigo reino era necessária antes que se pudesse pôr termo à escravidão que ninguém se aventurava a dar mais um passo sequer para banir”,[8] ou, pior ainda, esta de Goldwin Smith [9] sobre a União americana: “Os estados cristãos da América do Norte associaram-se com a escravidão por causa do Império e por orgulho de serem uma grande confederação; e sofreram a penalidade disso, primeiro no veneno que o domínio do senhor de escravos espalhou por todo o seu sistema político e social, e, segundo, com esta guerra terrível e desastrosa”? Uma guerra em que o Brasil entrasse contra um povo livre, com a sua bandeira ainda tisnada pela escravidão, poria instintivamente as simpatias liberais do mundo do lado contrário ao nosso; e uma nação de grande inteligência nativa, livre da praga do militarismo político e das guerras civis sul-americanas, branda e suave de coração, pacífica e generosa, seria por causa desse mercado de escravos que ninguém tem coragem de fechar considerada mais retrógrada e atrasada do que outros países que não gozam das mesmas liberdades individuais, não têm a mesma cultura intelectual, o mesmo desinteresse, nem o mesmo espírito de democracia e igualdade que ela.

Escrevi este volume pensando no Brasil, e somente no Brasil, sem ódio nem ressentimento, e sem descobrir em mim mesmo contra quem quer fosse um átomo consciente dessa inveja que Antônio Carlos disse ser “o ingrediente principal de que são amassadas nossas almas”. Ataquei abusos, vícios, práticas; denunciei um regime todo, e por isso terei ofendido os que se identificam com ele; mas não se pode combater um interesse da magnitude e da ordem da escravidão sem dizer o que ele é. Os senhores são os primeiros a qualificar, como eu próprio, a instituição com cuja sorte se entrelaçaram as suas fortunas; a diferença está somente em que eu sustento que um regime nacional, assim unanimemente condenado, não deve ser mantido, porque está arruinando cada vez mais o país, e eles querem que essa instituição continue a ser legalmente respeitada. Acabe-se com a escravidão, tenha-se a coragem de fazê-lo, e ver-se-á como os abolicionistas estão lutando no interesse mesmo da agricultura e de todos os agricultores solváveis, sendo que a escravidão não há de salvar os que não o sejam, exceto à custa da alienação das suas terras e escravos, isto é, da sua qualidade de lavradores. Continue, porém, o atual sistema a enfraquecer e corromper o país, aproximando-o da decomposição social, em vez de ser suprimido heroicamente, patrioticamente, nobremente, com o apoio de grande número de proprietários esclarecidos, e que ousam renunciar “a sua propriedade pensante”,[10] reconhecendo os direitos da natureza humana: o futuro há de infelizmente justificar o desespero, o medo patriótico, a humilhação e a dor que o adiamento da Abolição nos inspira.

Analisei detidamente algumas das inúmeras influências contrárias ao desenvolvimento orgânico do país, exercidas pela escravidão: nenhum espírito sincero contestará a filiação de um só desses efeitos, nem a importância vital do diagnóstico. A escravidão procurou por todos os meios confundir-se com o país e na imaginação de muita gente o conseguiu. Atacar a bandeira negra é ultrajar a nacional. Denunciar o regime das senzalas é infamar o Brasil todo. Por uma curiosa teoria, todos nós, brasileiros, somos responsáveis pela escravidão, e não há como lavarmos as mãos do sangue dos escravos. Não basta não possuir escravos para não se ter parte no crime; quem nasceu com esse pecado original não tem batismo que o purifique. Os brasileiros são todos responsáveis pela escravidão, segundo aquela teoria, porque a consentem. Não se mostra como o brasileiro que individualmente a repele pode destruí-la; nem como as vítimas de um sistema que as degrada para não reagirem podem ser culpadas da paralisia moral que as tocou. Os napolitanos foram assim responsáveis pelo bourbonismo, os romanos pelo poder temporal, os polacos pelo czarismo, e os cristãos novos pela inquisição. Mas, fundada ou não, essa é a crença de muitos, e a escravidão, atacada nos mais melindrosos recantos onde se refugiou, no seu entrelaçamento com tudo o que a pátria tem de mais caro a todos nós, ferida, por assim dizer, nos braços dela, levanta contra o Abolicionismo o grito de “Traição”.

“Não sei o que possa um escritor público fazer de melhor do que mostrar aos seus compatriotas os seus defeitos. Se fazer isso é ser considerado antinacional, eu não desejo furtar- me à acusação.” Eu, pela minha pare, ecoo essas palavras de Stuart Mill. O contrário é talvez um meio mais seguro de fazer caminho entre nós, devido à índole nacional que precisa da indulgência e da simpatia alheia, como as nossas florestas virgens precisam de umidade; mas nenhum escritor de consciência que deseje servir ao país, despertando os seus melhores instintos, tomará essa humilhante estrada da adulação. A superstição de que o povo não pode errar, a que a história toda é um desmentido, não é necessária para fundar a lei da democracia, a qual vem a ser: que ninguém tem o direito de acertar por ele e de impor-lhe o seu critério.

Quanto à pátria que somos acusados de mutilar, é difícil definir o que ela seja. A pátria varia em cada homem: para o alsaciano ela está no solo, nos montes pátrios et incunabula nostra; para o judeu é fundamentalmente a raça; para o muçulmano, a religião; para o polaco, a nacionalidade; para o emigrante, o bem-estar e a liberdade, assim como para o soldado confederado foi o direito de ter instituições próprias. O Brasil não é geração de hoje, nem ela pode querer deificar-se, e ser a pátria para nós, que temos outro ideal. Antônio Carlos foi acusado de haver renegado o seu país quando aconselhou à Inglaterra que cobrisse de navios as nossas águas para bloquear os ninhos de piratas do Rio e da Bahia,[11] mas quem desconhece hoje que ele, segundo a sua própria frase, passou à posteridade como o vingador da honra e da dignidade do Brasil?

Longe de eu injuriar o país, mostrando-lhe que tudo quanto há de vicioso, fraco, indeciso e rudimentar nele provém da escravidão, parece que dessa forma quis converter a instituição segregada, que tudo absorveu, em bode emissário de Israel, carregá-lo com todas as faltas do povo e fazê-lo desaparecer com elas no deserto. O orgulho nacional procura sempre ter à mão dessas vítimas expiatórias. É melhor que sejam indivíduos; mas a penitência figura-se mais completa quando são famílias e classes, ou é um regime todo.

Não me acusa, entretanto, a consciência de haver prometido um millenium para o dia em que o Brasil celebrasse um jubileu hebraico, libertando todos os servos. A escravidão é um mal que não precisa mais ter as suas fontes renovadas para atuar em nossa circulação, e que hoje dispensa a relação de senhor e escravo, porque já se diluiu no sangue. Não é, portanto, a simples emancipação dos escravos e ingênuos que há de destruir esses germens, para os quais o organismo adquiriu tal afinidade.

A meu ver a emancipação dos escravos e dos ingênuos, posso repeti-lo porque esta é a ideia fundamental deste livro, é o começo apenas da nossa obra. Quando não houver mais escravos, a escravidão poderá ser combatida por todos os que hoje nos achamos separados em dois campos, só porque há um interesse material de permeio.

Somente depois de libertados os escravos e os senhores do jugo que os inutiliza igualmente para a vida livre, poderemos empreender esse programa sério de reformas – das quais as que podem ser votadas por lei, apesar da sua imensa importância, são, todavia, insignificantes ao lado das que devem ser realizadas por nós mesmos, por meio de educação, da associação, da imprensa, da imigração espontânea, da religião purificada, de um novo ideal de Estado: reformas que não poderão ser realizadas de um jato, aos aplausos da multidão, na praça pública, mas que terão de ser executadas, para que delas resulte um povo forte, inteligente, patriota e livre, dia por dia e noite por noite, obscuramente, anonimamente, no segredo das nossas vidas, na penumbra da família, sem outro aplauso nem outra recompensa senão os da consciência avigorada, moralizada e disciplinada, ao mesmo tempo viril e humana.

Essa reforma individual, de nós mesmos, do nosso caráter, do nosso patriotismo, do nosso sentimento de responsabilidade cívica, é o único meio de suprimir efetivamente a escravidão da constituição social. A emancipação dos escravos é, portanto, apenas o começo de um Rinnovamento, do qual o Brasil está carecendo de encontrar o Gioberti e depois dele o Cavour.

Compare-se com o Brasil atual da escravidão o ideal de pátria que nós, abolicionistas, sustentamos: um país onde todos sejam livres; onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberalidade do nosso regime, a imigração europeia traga sem cessar para os trópicos uma corrente de sangue caucásio vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo, em vez dessa onda chinesa, com que a grande propriedade aspira a viciar e corromper ainda mais a nossa raça; um país que de alguma forma trabalhe originalmente para a obra da humanidade e para o adiantamento da América do Sul.

Essa é a justificação do movimento abolicionista. Entre os que têm contribuído para ele é cedo ainda para distribuir menções honrosas, e o desejo de todos deve ser que o número dos operários da undécima hora seja tal que se torne impossível mais tarde fazer distinções pessoais. Os nossos adversários precisam para combater a ideia nova de encarná-la em indivíduos, cujas qualidades nada têm que ver com o problema que eles discutem. Por isso mesmo, nós devemos combater em toda a parte tendo princípios, e não nomes, inscritos em nossa bandeira. Nenhum de nós pode aspirar à glória pessoal, porque não há glória no fim do século XIX em homens educados nas ideias e na cultura intelectual de uma época tão adiantada como a nossa pedirem a emancipação de escravos. Se alguns dentre nós tiveram o poder de tocar a imaginação e o sentimento do povo de forma a despertá-lo da sua letargia, esses devem lembrar-se de que não subiram à posição notória que ocupam senão pela escada de simpatias da mocidade, dos operários, dos escravos mesmos, e que foram impelidos pela vergonha nacional a destacarem-se, ou como oradores, ou como jornalistas, ou como libertadores, sobre o fundo negro do seu próprio país mergulhado na escravidão. Por isso eles devem desejar que essa distinção cesse de sê-lo quanto antes. O que nos torna hoje salientes é tão somente o luto da pátria: por mais talento, dedicação, entusiasmo e sacrifícios que os abolicionistas estejam atualmente consumindo, o nosso mais ardente desejo deve ser que não fique sinal de tudo isso, e que a anistia do passado elimine até mesmo a recordação da luta em que estamos empenhados.

A anistia, o esquecimento da escravidão; a reconciliação de todas as classes; a moralização de todos os interesses; a garantia da liberdade dos contratos; a ordem nascendo da cooperação voluntária de todos os membros da sociedade brasileira: essa é a base necessária para reformas que alteiem o terreno político em que esta existiu até hoje. O estrato moral que nós representamos é o remanescente de um período há muito decorrido. O povo brasileiro necessita de outro ambiente, de desenvolver-se e crescer em um meio inteiramente diverso.

Nenhuma das grandes causas nacionais que produziram como seus advogados os maiores espíritos da humanidade teve nunca melhores fundamentos do que a nossa. Torne-se cada brasileiro de coração um instrumento dela: aceitem os moços desde que entrarem na vida civil o compromisso de não negociar em carne humana; prefiram uma carreira obscura de trabalho honesto a acumular riqueza fazendo ouro dos sofrimentos inexprimíveis de outros homens; eduquem os seus filhos, eduquem-se a si mesmos, no amor da liberdade alheia, único meio de não ser a sua própria liberdade uma doação gratuita do destino, e de adquirirem a consciência do que ela vale, e coragem para defendê-la. As posições entre nós desceram abaixo do nível do caráter; a maior utilidade que pode ter hoje o brasileiro, de valor intelectual e moral, é educar a opinião (feliz do que chega a poder guiá-la), dando um exemplo de indiferença diante de honras, distinções e títulos rebaixados, de cargos sem poder efetivo. Abandonem assim os que se sentem com força, inteligência e honradez bastante para servir à pátria do modo mais útil essa mesquinha vereda da ambição política; entreguem-se de corpo e alma à tarefa de vulgarizar, por meio do jornal, do livro, da associação, da palavra, da escola, os princípios que tornam as nações modernas fortes, felizes e respeitadas; espalhem as sementes novas da liberdade por todo o nosso território coberto das sementes do dragão;[12] e logo esse passado, a cujo esboroamento assistimos, abrirá espaço a uma ordem de coisas fundadas sobre uma concepção completamente diversa dos deveres, quanto à vida, à propriedade, à família, à honra, aos direitos, dos seus semelhantes, do indivíduo para com a nação de que faz parte; e da nação, quanto à liberdade individual, à civilização, à igual proteção a todos, ao adiantamento social realizado, para com a humanidade que lhe dá interesse e participação – e de fato o entrega tacitamente à guarda de cada uma – em todo esse patrimônio da nossa espécie.

Abolicionistas são todos os que confiam num Brasil sem escravos; os que predizem os milagres do trabalho livre, os que sofrem a escravidão como uma vassalagem odiosa imposta por alguns, e no interesse de alguns, à nação toda; os que já sufocam nesse ar mefítico que escravos e senhores respiram livremente; os que não acreditam que o brasileiro, perdida a escravidão, se deite para morrer, como o romano do tempo dos césares, porque perdera a liberdade.

Isso quer dizer que nós vamos ao encontro dos supremos interesses da nossa pátria, da sua civilização, do futuro a que ela tem direito, da missão a que a chama o seu lugar na América; mas, entre nós e os que se acham atravessados no seu caminho, quem há de vencer? É esse o próprio enigma do destino nacional do Brasil. A escravidão infiltrou-lhe o fanatismo nas veias, e por isso ele nada faz para arrancar a direção daquele destino às forças cegas e indiferentes que o estão, silenciosamente encaminhando.

Notas do autor editar

  1. The Wheeling Inteligencer, parágrafo citado por Olmsted A Journey in the Back Country.
  2. Noah Webster, Jr., Effects of Slavery on Morals and Industry. Hartford (Connecticut), 1793.
  3. Em 1861 (antes da guerra) a colheita de algodão era de 3,65 milhões de fardos; em 1871 foi de 4,34 milhões de fardos e em 1881, 6,589 milhões. Em dois anos o Sul produziu 12 milhões de fardos. “O sul está também adiantando-se, diz o Times, na manufatura de instrumentos agrícolas, couro, wagons, marcenaria, sabão, amido, etc., e esses produtos, com o crescimento do comércio de algodão, açúcar, fumo, arroz, trigo e provisões para a marinha, hão de aumentar materialmente a riqueza dos diversos estados. Como corolário natural desse surpreendente progresso os lavradores se estão tornando mais ricos e mais independentes, e em alguns dos estados do sul se está fazendo um grande esforço para impedir a absorção das pequenas lavouras pelas maiores.” Por outro lado, o professor E. W. Gilliam pretende que a raça negra aumentou nos últimos dez anos à razão de 34%, enquanto a branca aumentou cerca de 29%. Ele calcula que dentro de um século haverá nos estados do sul 192 milhões de homens de cor.
  4. Tentativas centralizadoras do governo liberal, pelo senador Godoy, de São Paulo. Nesse opúsculo há o seguinte cálculo dos braços empregados na lavoura das províncias de Minas, Ceará, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro: Livres, 1.434.170; escravos, 650.540. Braços livres válidos, desocupados, de 13 a 45 anos, 2.822.583.
  5. The Southern Standard, citado na conferência sobre A condição da América, de Theodore Parker (1854).
  6. Eis um trecho da notícia em que um informante descreve no Jornal do Commercio a recepção feita ao Dr. Avellaneda, ex-presidente da República Argentina, por um dos nossos principais fazendeiros, um líder da classe, e um dos homens mais esclarecidos que ela possui, o Sr. Barão do Rio Bonito. “Entrando-se, deparava-se com um verdadeiro bosque semeado de lanternas venezianas, escudos alegóricos, com dísticos onde se liam, por exemplo: Aos promotores da indústria, salve! A fraternidade dos povos é um sorriso de Deus, etc. formou-se então uma quadrilha dentro de um círculo gigantesco formado pelos 400 escravos da fazenda, os quais ergueram entusiásticos vivas aos seus carinhosos senhores.” Com a lembrança recente dessa festa brasileira e desse contraste da fraternidade dos povos com a escravidão, o Dr. Avellaneda terá lido com dobrado orgulho de argentino os seguintes trechos da última mensagem do seu sucessor: “Em 1881 chegaram 32.817 imigrantes e em 1882 entraram em nossos portos 51.503... Esta marcha progressiva da imigração é puramente espontânea. Uma vez votados fundos que se destinem a esse objeto; realizados, como sê-lo-ão em breve, os projetos de propaganda para que concorrestes no ano passado com a vossa sanção, e desde que formos assim melhor conhecidos nesses grandes viveiros de homens da Europa; oferecida a terra em condições vantajosas, e mantida, sobretudo, a situação de paz que nos rodeia, a imigração acudirá às nossas plagas em massas compactas, que, por mais numerosas que se apresentem, encontrarão amplo espaço e generosa compensação ao seu trabalho”– Mensaje, de maio de 1883, p. 31-32. Guardando nós a escravidão, e tendo a República Argentina paz, esta será dentro de vinte anos uma nação mais forte, mais adiantada e mais próspera do que o Brasil, e o seu crescimento e a natureza do seu progresso e das suas instituições exercerá sobre as nossas províncias do sul o efeito de uma atração desagregante que talvez seja irresistível.
  7. Times de 7 de janeiro de 1861.
  8. Antiguidade de Israel, tradução de H. S. Solly.
  9. Does the Bible Sanction American Slavery?
  10. Victor Schoelcher.
  11. Cartas do solitário, carta XI.
  12. Mommsen.