Nos paços de Azzahrat, o magnifico alcaçar dos kalifas de Cordova, ha muitas horas que cessou o estrepito de uma grande festa. O luar de noite serena d’abril bate pelos jardins que se dilatam desde o alcaçar até o Guad-al-kébir, e alveja tremulo pelas fitas cinzentas dos caminbos tortuosos, em que parecem enredados os bosquesinhos de arbustos, os macissos de arvores silvestres, as veigas de flores, os vergeis embalsamados, onde a larangeira, o limoeiro, e as demais arvores fructiferas, trazidas da Persia, da Syria e do Cathay, espalham os aromas variados das suas flores. Lá ao longe Cordova, a capital da Hespanha mussulmana, repousa da lida diurna, porque sabe que Abdur-rahman III, o illustre kalifa, véla pela segurança do imperio. A vasta cidade repousa profundamente; e o ruído mal distincto que parece revoar por cima della, é apenas o respiro lento dos seus largos pulmões, o bater regular das suas robustas arterias. Das almadenas de seiscentas mesquitas não soa uma unica voz de almuhaden, e os sinos das igrejas mosarabes guardam tambem silencio. As ruas, as praças, os azokes, ou mercados, estão desertos. Sómente o murmurio das novecentas fontes ou banhos publicos, destinados ás abluções dos crentes, ajuda o zumbido nocturno da sumptuosa rival de Bagdad.

Que festa fôra essa que expirára algumas horas antes de nascer a lua, e de tingir com a brancura pallida de sua luz aquelles dois vultos enormes de Azzahrat e de Cordova, que olhavam um para o outro, a cinco milhas de distancia, como dois phantasmas gigantes involtos em largos sudarios? Na manhan do dia que findára, Al-hakem, o filho mais velho de Abdu-r-rahman, fôra associado ao throno. Os walis, wasires e khatehs da monarchia dos Beni-Umeyyas tinham vindo reconhece-lo Wali-al-ahdi; isto é, futuro kalifa do Andalús e do Moghreb. Era uma idéa affagada longamente pelo velho principe dos crentes que se realisára, e o jubilo de Abdu-r-rahman se havia espraiado n’uma dessas festas, por assim dizer fabulosas, que só sabia dar no seculo decimo a côrte mais polida da Europa, e talvez do mundo, a do soberano sarraceno de Hespanha.

O palacio Merwan, juncto dos muros de Cordova, distingue-se á claridade duvidosa da noite pelas suas fórmas macissas e rectangulares, e a sua côr tisnada, bafo dos seculos que entristece e sanctifica os monumentos, contrasta com a das cupulas aereas e douradas dos edificios, com a das almadenas esguias e leves das mesquitas, e com a dos campanarios christãos, cuja tez docemente pallida suavisa ainda mais o brando raio de luar que se quebra naquelles estreitos pannos de pedra branca, d’onde não se reflecte, mas cabe na terra preguiçoso e dormente. Como Azzahrat e como Cordova, calado e apparentemente tranquillo, o palacio Merwan, a antiga morada dos primeiros kalifas, suscita idéas sinistras, emquanto o aspecto da cidade e da villa imperial unicamente inspiram um sentimento de quietação e paz. Não é só a negridão das suas vastas muralhas a que produz essa apertura do coração que experimenta quem o considera assim solitario e carrancudo; é tambem o clarão avermelhado que resumbra da mais alta das raras frestas abertas na face exterior da sua torre albarran, a maior de todas as que o cercam, a que atalaia a campanha. Aquella luz, no ponto mais elevado do grande e escuro vulto da torre, é como um olho de demonio, que contempla colerico a paz profunda do imperio, e que espera ancioso o dia em que renasçam as luctas e as devastações de que por mais de dois seculos fôra theatro o solo ensanguentado de Hespanha.

Alguem véla, talvez, no paço de Merwan. No de Azzahrat, posto que nenhuma luz bruxulêe nos centenares de varandas, de miradouros, de porticos, de balcões, que lhe arrendam o immenso circuito, alguem véla por certo.

A sala denominada do Kalifa, a mais espaçosa entre tantos aposentos quantos encerra aquelle rei dos edificios, devêra a estas horas mortas estar deserta, e não o está. Dois lampadarios de muitos lumes pendem dos artesões primorosamente lavrados, que, cruzando-se em angulos rectos, servem de moldura ao almofadado de azul e ouro, que reveste as paredes e o tecto. A agua de fonte perenne murmura cahindo n’um tanque de marmore construido no centro do aposento, e no topo da sala ergue-se o throno de Abdu-r-rahman, alcatifado dos mais ricos tapetes do paiz de Fars. Abdu-r-rahman está ahi sósinho. O kalifa passeia de um para outro lado, com olhar inquieto, e de instante a instante pára e escuta, como se esperasse ouvir um ruído longinquo. No seu gesto e meneios pinta-se a mais viva anciedade; porque o unico ruído que lhe fere os ouvidos é o dos proprios passos sobre o xadrez variegado, que fórma o pavimento da immensa quadra. Passado algum tempo, uma porta, escondida entre os brocados que forram os lados do throno, abre-se lentamente, e um novo personagem apparece. No rosto de Abdu-r-rahman, que o vê aproximar, pinta-se uma inquietação ainda mais viva.

O recem-chegado offerecia notavel contraste no seu gesto e vestiduras com as pompas do logar em que se introduzia, e com o aspecto magestoso de Abdu-r-rahman, ainda bello apesar dos annos e das cans que começavam a misturar-se-lhe na longa e espessa barba negra. Os pés do que entrára apenas faziam um rumor sumido no chão de marmore. Vinha descalço. A sua aljarabia ou tunica era de lan grosseiramente tecida, o cincto uma corda de esparto. Divisava-se-lhe, porém, no despejo do andar e na firmeza dos movimentos que nenhum espanto produzia nelle aquella magnificencia. Não era velho; e todavia a sua tez tostada pelas injurias do tempo estava sulcada de rugas, e uma orla vermelha circulava-lhe os olhos, negros, encovados e reluzentes. Chegando ao pé do kalifa, que ficára immovel, cruzou os braços e poz-se a contempla-lo calado. Abdu-r-rahman foi o primeiro em romper o silencio:

“Tardaste muito, e foste menos pontual do que costumas, quando annuncias a tua vinda a hora fixa, Al-muulin! Uma visita tua é sempre triste como o teu nome. Nunca entraste a occultas em Azzahrat senão para me saciares de amargura; mas apesar disso eu não deixarei de abençoar a tua presença, porque Algafir—­dizem-no todos e eu o creio—­é um homem de Deus. Que vens annunciar-me, ou que pretendes de mim?”

“Amir-al-muminin, [1] que póde pretender de ti um homem cujos dias se passam á sombra dos tumulos pelos cemiterios, e a cujas noites de oração basta por abrigo o portico de um templo; cujos olhos tem queimado o chôro, e que não esquece um instante que tudo neste desterro, a dôr e o goso, a morte e a vida, está escripto lá em cima? Que venho annunciar-te?!... O mal; porque só mal ha na terra para o homem, que vive como tu, como eu, como todos, entre o appetite e o rancor; entre o mundo e Eblis; isto é, entre os seus eternos e implacaveis inimigos!”

“Vens, pois, annunciar-me uma desventura?!... Cumpra-se a vontade de Deus. Tenho reinado perto de quarenta annos, sempre poderoso, vencedor e respeitado; todas as minhas ambições tem sido satisfeitas, todos os meus desejos preenchidos; e todavia nesta longa carreira de gloria e prosperidade só fui inteiramente feliz quatorze dias da minha vida. [2] Pensava que este fosse o decimo quinto. Devo acaso apaga-lo do registo em que conservo a memoria delles, e em que já o tinha escripto?”

“Pódes apaga-lo:—­replicou o rude fakih—­pódes, até, rasgar todas as folhas brancas que restam no livro. Kalifa! vês estas faces sulcadas pelas lagrymas? vês estas palpebras requeimadas por ellas? Duro é o teu coração, mais que o meu, se em breve as tuas palpebras e as tuas faces não estão semelhantes ás minhas.”

O sangue tingiu o rosto alvo e suavemente pallido de Abdu-r-rahman: os seus olhos serenos como o ceu, que imitavam na côr, tomaram a terrivel expressão que elle costumava dar-lhes no revolver dos combates, olhar esse que só por si fazia recuar os inimigos. O fakih não se moveu, e poz-se a olhar também para elle fito.

“Al-muulin, o herdeiro dos Beni-Umeyyas póde chorar arrependido de seus erros diante de Deus; mas quem disser que ha neste mundo desventura capaz de lhe arrancar uma lagryma, diz-lhe elle que mentiu!”

Os cantos da bôca de Al-gafir encresparam-se com um quasi imperceptivel sorriso. Houve um largo espaço de silencio. Abdu-r-rahman não o interrompeu: o fakih proseguiu:

“Amir-al-muminin, qual de teus dous filhos amas tu mais? Al-hakem, o successor do throno, o bom e generoso Al-hakem, ou Abdallah, o sabio e guerreiro Abdallah, o idolo do povo de Korthoba?”

“Oh,—­replicou o kalifa sorrindo—­já sei o que me queres dizer. Devias prever que a nova viria tarde, e que eu havia de sabe-lo... Os christãos passaram a um tempo as fronteiras do norte e do oriente. Meu velho tio Al-mod-dhafer já depoz a espada victoriosa, e crês necessario expôr a vida de um delles aos golpes dos infiéis. Vens prophetisar-me a morte do que partir. Não é isto? Fakih, creio em ti, que és acceito ao Senhor; mas ainda creio mais na estrella dos Beni-Umeyyas. Se eu amasse um mais do que outro não hesitaria na escolha: fôra esse que eu mandára, não á morte, mas ao triumpho. Se, porém, essas são as tuas previsões, e ellas tem de realisar-se, Deus é grande! Que melhor leito de morte posso eu desejar a meus filhos do que um campo de batalha em al-djihed [3] contra os infiéis?”

Al-gafir escutou Abdu-r-rahman sem o menor signal d’impaciencia. Quando elle acabou de falar repetiu tranquillamente a pergunta:

“Kalifa, qual amas tu mais dos teus dous filhos?”

“Quando a imagem pura e sancta do meu bom Al-hakem se me representa no espirito, amo mais Al-hakem: quando com os olhos da alma vejo o nobre e altivo gesto, a fronte vasta e intelligente do meu Abdallah, amo-o mais a elle. Como te posso eu, pois, responder, fakih?”

“E todavia é necessário que escolhas, hoje mesmo, neste momento, entre um e outro. Um delles deve morrer na próxima noite, obscuramente, nestes paços, aqui mesmo talvez, sem gloria, debaixo do cutello do algoz, ou do punhal do assassino.”

Abdu-r-rahman recuára ao ouvir estas palavras: o suor começou a descer-lhe em bagas da fronte. Bem que tivesse mostrado uma firmeza fingida, sentíra apertar-se-lhe o coração desde que o fakih começára a falar. A reputação d’illuminado de que gosava Al-muulin, o caracter supersticioso do kalifa, e mais que tudo o haverem-se verificado todas as negras prophecias que n’um longo decurso de annos elle lhe fizera, tudo contribuia para atterrar o principe dos crentes. Com voz trémula replicou:

“Deus é grande e justo. Que lhe fiz eu para me condemnar no fim da vida a perpetua afflicção, a ver correr o sangue de meus filhos queridos ás mãos da deshonra ou da perfidia?”

“Deus é grande e justo,—­interrompeu o fakih.—­Acaso nunca fizeste correr injustamente o sangue? Nunca por odio brutal despedaçaste de dôr nenhum coração de pae, de irmão, de amigo?”

Al-muulin tinha carregado na palavra irmão com um accento singular. Abdu-r-rahman, possuido de mal refreiado susto, não attentou por isso.

“Posso eu acreditar uma tão estranha, direi antes tão incrivel prophecía—­exclamou elle por fim—­sem que me expliques o modo por que se deve realisar esse terrivel successo; e como ha-de o ferro do assassino ou do algoz vir dentro dos muros de Azzahrat verter o sangue de um dos filhos do kalifa de Korthoba, cujo nome, seja-me licito dize-lo, é o terror dos christãos, e a gloria do islamismo?”

Al-muulin tomou um ar imperioso e solemne, estendeu a mão para o throno, e disse:

“Assenta-te, kalifa, no teu throno, e escuta-me, porque em nome da futura sorte do Andalus, da paz e da prosperidade do imperio, e das vidas e do repouso dos mussulmanos eu venho denunciar-te um grande crime. Que punas, que perdoes, esse crime tem de custar-te um filho. Successor do propheta, iman [4] da divina religião do Koran, escuta-me, porque é obrigação tua ouvir-me.”

O tom inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o negro mysterio que encerravam as palavras do fakih tinham subjugado a alma profundamente religiosa de Abdu-r-rahman. Machinalmenlte subiu ao throno, encruzou-se em cima da pilha de coxins em que elle rematava, e encostando ao punho o rosto demudado, disse com voz presa:—­“Pódes falar, Suleyman-ibn-Abd-al-gafir!”

Tomando então uma postura humilde, e cruzando os braços sobre o peito, Al-gafir o triste começou da seguinte maneira a sua narrativa.


  1. Principe dos crentes, titulo correspondente ao de kalifa.
  2. Historico
  3. Guerra-sancta
  4. Pontifice. Os kalifas reuniam em si o summo imperio, e o summo pontificado.