“Kalifa!—­começou Al-muulin—­tu és grande; tu és poderoso. Não sabes o que é a affronta ou a injustiça cruel que esmaga o coração nobre e energico, se este não póde repelli-la, e sem demora, com o mal ou com a affronta, vinga-la á luz do sol! Tu não sabes o que então se passa na alma desse homem, que por todo o desaggravo deixa fugir alguma lagryma furtiva, e até, ás vezes, é obrigado a beijar a mão que o feriu nos seus mais sanctos affectos. Não sabes o que isto é; porque todos os teus inimigos tem cahido diante do alfange do almogaure, ou deixado tombar a cabeça de cima do cêpo do algoz. Ignoras por isso o que é o odio; o que são essas solidões tenebrosas, por onde o resentimento, que não póde vir ao gesto, se dilata e vive á espera do dia da vingança. Dir-to-hei eu. Nessa noite immensa, em que se involve o coração chagado, ha uma luz sanguinolenta que vem do inferno, e que allumia o espirito vagabundo. Ha ahi terriveis sonhos, em que o mais rude e ignorante descobre sempre um meio de desaggravo. Imagina como será facil aos altos entendimentos o encontra-lo! É por isso que a vingança, que parecia morta e esquecida, apparece ás vezes inesperada, tremenda, irresistivel, e morde-nos surgindo debaixo dos pés como a vibora, ou despedaça-nos como o leão pulando d’entre os juncaes. Que lhe importa a ella a magestade do throno, a sanctidade do templo, a paz domestica, o ouro do rico, o ferro do guerreiro? Mediu as distancias, calculou as difficuldades, meditou no silencio, e riu-se de tudo isso!”

E Al-gafir o triste desatou a rir ferozmente, Abdu-r-rahman olhava para elle espantado.

“Mas—­proseguiu o fakih—­ás vezes Deus suscita um dos seus servos, um dos seus servos de animo tenaz e forte, possuido tambem de alguma idéa occulta e profunda, que se alevante, e rompa a trama urdida nas trévas. Este homem no caso presente sou eu. Para bem? Para mal?—­Não sei; mas sou! Sou eu que, venho revelar-te como se prepara a ruina do teu throno, e a destruição da tua dynastia.”

“A ruina do meu throno?—­gritou Abdur-r-rahman pondo-se em pé e levando a mão ao punho da espada.—­Quem, a não ser algum louco, imagina que o throno dos Beni-Umeyyas póde, não digo desconjunctar-se, mas apenas vacilar debaixo dos pés de Abdu-r-rahman? Quando, porém, falarás enfim claro, Al-muulin?”

E a colera e o despeito faiscavam-lhe nos olhos. Com a sua habitual impassibilidade o fakih proseguiu:

“Esqueces-te, kalifa, da tua reputação de prudencia e longanimidade. Pelo propheta! Deixa divagar um velho tonto como eu ... Não!... Tens razão ... Basta! O raio que fulmina o cedro desce rapido do céu. Quero ser como elle ... Amanhan a estas horas o teu filho Abdallah ter-te-ha já privado da corôa para a cingir na propria fronte, e o teu successor Al-hakem terá perecido sob um punhal d’assassino. Ainda te encolerisas? Foi acaso demasiado extensa a minha narrativa?”

“Infame!—­exclamou Abdu-r-rahman—­Hypocrita, que me tens enganado! Tu ousas calumniar o meu Abdallah? Sangue! Sangue ha-de correr, mas é o teu. Crias que com essas visagens d’inspirado, com esses trajos de penitencia, com essa linguagem dos sanctos poderias quebrar a affeição mais pura, a de um pae? Enganas-te, Al-gafir! A minha reputação de prudente, verás que era bem merecida.”

Dizendo isto o kalifa ergueu as mãos como quem ia a bater as palmas. Al-muulin interrompeu-o rapidamente, mas sem mostrar o menor indicio de perturbação ou terror.

“Não chames ainda os eunuchos; porque assim é que dás provas de que não a merecias. Conheces que me seria impossivel fugir. Para matar ou morrer sempre é tempo. Escuta, pois, o infame, o hypocrita até o fim. Acreditarias tu na palavra do teu nobre e altivo Abdallah? Bem sabes que elle é incapaz de mentir a seu amado pae, a quem deseja longa vida e todas as prosperidades possiveis.”

O fakih desatára de novo n’um rir trémulo e hediondo. Metteu a mão no peitilho da aljarabia e tirou uma a uma muitas tiras de pergaminho: pô-las sobre a cabeça e entregou-as ao kalifa, que começou a lêr com avidez. A pouco e pouco Abdu-r-rahman foi empallidecendo, as pernas vergaram-lhe, e por fim deixou-se cahir sobre os coxins do throno, e cobrindo a cara com as mãos, murmurou:—­“Meu Deus! porque te mereci isto!”

Al-muulin fitára nelle um olhar de girifalte, e nos labios vagueava-lhe um riso sardonico e quasi imperceptivel.

Os pergaminhos eram varias cartas dirigidas por Abdallah aos rebeldes das fronteiras do oriente, os Beni-Hafsun, e a diversos cheiks berebéres, dos que se haviam domiciliado na Hespanha, conhecidos pelo seu pouco affecto aos Beni-Umeyyas. O mais importante, porém, de tudo era uma extensa correspondencia com Umeyya-ibn-Ishak, guerreiro celebre e antigo alcaide de Santarem, que por graves offensas passára ao serviço dos christãos de Oviedo e Asturias com muitos cavalleiros illustres da sua clientela. Esta correspondencia era completa de parte a parte. Por ella se via que Abdallah contava não só com os recursos dos mussulmanos seus parciaes, mas tambem com importantes soccorros dos infiéis por intervenção de Umeyya. A revolução devia rebentar em Cordova pela morte de Al-hakem e pela deposição de Abdu-r-rahman. Uma parte da guarda do alcaçar de Azzahrat estava comprada. Al-barr, que figurava muito nestas cartas, seria o hadjeb ou primeiro ministro do novo kalifa. Alli se liam, emfim, os nomes dos principaes personagens implicados na revolta, e todas as circumstancias desta eram explicadas ao antigo alcaide de Santarém com aquella individuação que nas suas cartas elle constantemente exigia. Al-muulin falára verdade: Abdu-r-rahman via despregar diante de si a longa teia da conspiração, escripta com letras de sangue pela mão de seu proprio filho.

Durante algum tempo o kalifa conservou-se como a estatua da dôr na postura que tomára. O fakih olhava fito para elle com uma especie de cruel complacencia. Al-muulin foi o primeiro que rompeu o silencio: o principe Beni-Umeyya, esse parecia ter perdido o sentimento da vida.

“É tarde:—­disse o fakih.—­Chegará em breve a manhan. Chama os eunuchos. Ao romper do sol a minha cabeça pregada nas portas de Azzahrat deve dar testemunho da promptidão da tua justiça. Elevei ao throno de Deus a ultima oração, e estou apparelhado para morrer, eu o hypocrita, eu o infame, que pretendia lançar sementes de odio entre ti e teu virtuoso filho. Kalifa, quando a justiça espera não são boas horas para meditar ou dormir.”

Al-gafir retomava a sua habitual linguagem sempre ironica e insolente, e ao redor dos labios vagueava-lhe de novo o riso mal reprimido.

A voz do fakih despertou Abdu-r-rahman das suas tenebrosas cogitações. Poz-se em pé. As lagrymas haviam corrido por aquellas faces, mas estavam enxutas. A procella de paixões encontradas tumultuava lá dentro; mas o gesto do principe dos crentes recobrára apparente serenidade. Descendo do throno pegou na mão mirrada de Al-muulin, e apertando-a entre as suas, disse:

“Homem que guias teus passos pelo caminho do céu; homem acceito ao propheta, perdoa as injurias de um insensato! Cria ser superior á fraqueza humana. Enganava-me! Foi um momento que passou. Possas tu esquece-lo! Agora estou tranquillo ... bem tranquillo ... Abdallah, o traidor que era meu filho, não concebeu tão atroz designio. Alguém lh’o inspirou: alguem verteu naquelle animo soberbo as vans e criminosas esperanças de subir ao throno por cima do meu cadaver e do de Al-hakem. Não desejo sabe-lo para o absolver; porque elle já não póde evitar o destino fatal que o aguarda. Morrerá; que antes de ser pae fui kalifa, e Deus confiou-me no Andalus a espada da suprema justiça. Morrerá; mas hão-de acompanha-lo todos os que o precipitaram no abysmo.”

“Ainda ha pouco te disse—­replicou Al-gafir—­o que pôde inventar o ódio que é obrigado a esconder-se debaixo do manto da indifferença, e até da submissão. Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu offendeste no seu amor proprio de poeta, e que expulsaste de Azzahrat como um homem sem engenho nem saber, quiz provar-te que ao menos possuia o talento de conspirador. Foi elle que preparou este terrivel successo. Has-de confessar que se houve com destreza. Só n’uma cousa não: em pretender associar-me aos seus designios. Associar-me? ... não digo bem ... fazer-me seu instrumento ... A mim! ... Queria que eu te apontasse ao povo como um impio pelas tuas allianças com os amires infiéis do Frandjat. Fingi estar por tudo; e chegou a confiar plenamente na minha lealdade. Tomei a meu cargo as mensagens aos rebeldes do oriente e a Umeyya-ibn-Ishak, o alliado dos christãos, o antigo kaid de Chantaryin. Foi assim que pude colligir estas provas de conspiração. Loucos! as suas esperanças eram a miragem do deserto... Dos seus alliados apenas os de Zarkosta e das montanhas de Al-kibla não foram um sonho. As cartas de Umeyya, as promessas do amir nazareno de Djalikia, [1] tudo era feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem conhece a letra de Umeyya, esse é um segredo que depois de tantas revelações, tu deixarás, kalifa, que eu guarde para mim ... Oh, os insensatos! os insensatos!”

E desatou a rir.

A noite tinha-se aproximado do seu fim. A revolução, que ameaçava trazer á Hespanha mussulmana todos os horrores da guerra civil, devia rebentar dentro de poucas horas, talvez. Era necessário afoga-la em sangue. O longo habito de reinar, juncto ao caracter energico de Abdu-r-rahman, fazia com que nestas crises elle desenvolvesse de um modo admiravel todos os recursos que o genio amestrado pela experiencia lhe suggeria. Recalcando no fundo do coração a cruel lembrança de que era um filho que ia sacrificar á paz e á segurança do império, o kalifa despediu Al-muulin, e mandando immediatamente reunir o divan deu largas instrucções ao chefe da guarda dos slavos. Ao romper da manhan todos os conspiradores que residiam em Cordova estavam presos, e muitos mensageiros tinham partido levando as ordens de Ahdu-r-rahman aos walis das provincias e aos generaes das fronteiras. Apesar das lagrymas e rogos do generoso Al-hakem, que luctou tenazmente por salvar a vida de seu irmão, o kalifa mostrou-se inflexivel. A cabeça de Abdallah cahiu aos pés do algoz na propria camara do principe no palacio Merwan. Al-barr, suicidando-se na masmorra em que o tinham lançado, evitou assim o supplicio.

O dia immediato á noite em que se passou a scena entre Abdu-r-rahman e Al-gafir, que tentamos descrever, foi um dia de sangue para Cordova, e de lucto para muitas das mais illustres famílias.


  1. Os árabes designavam os reis de Oviedo e Leão pelo titulo de reis de Galliza.