Era noite. Em uma das salas mouriscas dos nobres paços de Coimbra havia grande sarau. Donas e donzellas, assentadas ao redor do aposento, ouviam os trovadores repetindo ao som da viola e em tom monotono suas magoadas endechas, ou folgavam e riam com os arremedilhos satyricos dos truões e farcistas. Os cavalleiros em pé, ou falavam de aventuras amorosas, de justas e de bofordos, ou de fossados e lides por terras de mouros fronteiros. Para um dos lados, porém, entre um labyrintho de columnas, que davam saída para uma galeria exterior, quatro personagens pareciam entretidas em negocio mais grave do que os prazeres de noite de folguedo o permittiam. Eram estas personagens Affonso Henriques, Gonçalo Mendes da Maia, Lourenço Viegas, e Gonçalo de Sousa o Bom. Os gestos dos quatro cavalleiros davam mostras de que elles estavam vivamente agitados.

"É o que affirma, senhor, o mensageiro — dizia Gonçalo de Sousa — que me enviou o abbade do mosteiro de Tibães, onde o cardeal dormiu uma noite para não entrar em Braga. Dizem que o papa o envia a vós, porque vos suppõe hereje. Em todas as partes por onde o legado passou, em França e em Hespanha, vinham a lhe beijar a mão reis, principes e senhores: a eleição de D. Çolleima não póde por certo ir ávante..."

"Irá, irá! — respondeu o principe em voz tão alta que as suas palavras reboaram pelas abobadas do vasto aposento. — Que o legado tenha tento em si! Não sei eu se haveria ahi cardeal, ou apostolico[1] que me estendesse a mão para eu lh'a beijar, que pelo cotovello lh'a não cortasse fóra a minha boa espada. Que me importam a mim vilezas dos outros reis e senhores? Vilezas, não as farei eu!"

Isto foi o que se ouviu daquella conversação: os tres cavalleiros falaram com o principe ainda por muito tempo: mas em voz tão baixa, que ninguem percebeu mais nada.

  1. Papa.