O S. JOÃO [1]


O dia que amanhecera era um belo dia de Junho, véspera de S. João. Entre o burgo e o castelo, ou para melhor dizer, entre este e o Mosteiro de D. Muma, junto do qual o burgo estava apinhado, estendia-se um campo que em leve ladeira ia morrer nas barbacãs, e que ficava agora vedado para a campanha pelo lanço da couraça. O aspecto deste campo parecia dizer que a povoação estava longe de pensar nas calamidades da guerra. Desde o romper do Sol viam-se espalhados por aquele vasto recinto grupos de burgueses, de cavaleiros, de colonos servos das honras e coutos vizinhos, e de herdadores das terras reguengas, espécie de classe média rural, como os burgueses ou homens de rua eram uma espécie de classe média urbana. Os servos mais humildes, cujo trajo simplicíssimo se reduzia a um saio de burel que lhes descia apenas abaixo do joelho, misturavam-se ali com os infanções, que constituíam a verdadeira aristocracia de linhagem, e com os cavaleiros de uma lança ou homens de mesnada, que formavam o segundo grau dessa nobreza guerreira e que não raro, talvez na maior parte, pertenciam a família de burgueses ou de herdadores. Esses representantes das diversas camadas sociais, numa época principalmente caracterizada pelo espírito de jerarquia, perpassavam rápidos ou lentos, apinhavam-se, disputavam, irritavam-se, riam, dispersavam-se. Todos eles pareciam vivamente preocupados pela esperança de alguma cena ou espectáculo singular de que ia ser teatro o vasto rossio interposto entre o castelo e o burgo.

De feito, encostado a uma das duas torres, que ladeavam a porta principal do castelo e como que estreitavam entre si a ponte levadiça, via-se levantado uma espécie de vasto estrado construído da véspera, coberto de alfombras mouriscas, e sobre o qual se acabavam de colocar dois ricos escanos, espécie de assento destinado em actos públicos às pessoas de mais elevada jerarquia, e que se assemelhava muito na forma aos modernos sofás, salvo na menor elegância e comodidade do encosto. Para um e outro lado enfileiravam-se algumas dezenas de assentos rasos ou tamboretes cobertos de estofos roçagantes, que pareciam destinados a personagens de vulto, posto que inferiores àquelas que deviam ocupar os escanos. O que, porém, melhor denunciava a natureza festiva do espectáculo que se ia dar no agitado terreiro era ver os dois alcaides ou juízes municipais do burgo, que segundo as ideias de então, talvez mais sensatas que as nossas, acumulavam as funções judiciais e administrativas dos concelhos, azafamados a fazer juncar as imediações do estrado, a dirigir a feitura de uma espécie de arco triunfal de ramos de carvalho à entrada do castro, e a demarcar, por meio de postes cravados no chão e ligados entre si por grossas cordas de cânhamo tecidas numa espécie de engradamento, uma liça ou recinto vedado às multidões contíguo à barbacã, o qual, através de um passadiço lançado por cima desta, tinha comunicação com um postigo, como que escondido no ângulo reentrante de uma das torres que defendiam a entrada principal do castro, e se estendia ao longo da barbacã na forma de paralelogramo, em cujo topo ficava o grande estrado que aí haviam feito alevantar os juízes do burgo. Era à vilanagem que por direito consuetudinário, recordação do estado servil de que começava a sair o povo, incumbia executar gratuitamente esses trabalhos nas festas e recepções dos príncipes. Dirigiam-nos, debaixo da inspecção dos alcaides, os cavaleiros vilãos, espécie de aristocracia plebeia análoga aos curiais romanos; e com os fustes ou varas que traziam espertavam de quando em quando, de um modo demasiado expressivo, o zelo e actividade dos peões chamados a pôr por obra as concepções artísticas dos magistrados municipais.

No vaguear e rumorejar incerto da turba que, ora mais densa, ora mais rara, discorria pelo amplo terreiro, havia-se escoado a manhã. O sino do Mosteiro de D. Muma tocara a sexta, e o salmear dos monges, ecoando pelas abóbadas da igreja, reverberara longamente através das frestas e portadas normandas do santo edifício, e havia enfim adormecido em silêncio profundo. A este silêncio correspondia o do terreiro, que pouco e pouco se tornara deserto desde que o som da campa monástica, chamando a comunidade à oração, avisara os filhos do século de que era chegada a hora da refeição meridiana.

Não havia, porém, ainda três horas que o rossio entre o castro e o burgo voltara à sua quase solidão ordinária, quando as vagas de povo começaram de novo a invadi-lo. A infanta, rodeada das suas damas e dos seus ricos-homens, saíra do castro e, subindo ao estrado, viera assentar-se no escano da direita enquanto um cavaleiro, que mostrava no aspecto achar-se na quadra da vida em que se passa da idade de mancebo para a de homem feito, se assentava no da esquerda, e vários ricos-homens, poucos infanções, e alguns prelados, o que tudo constituía a escola ou corte, tomavam para si os tamboretes enfileirados de um e outro lado. Os prenúncios inequívocos de um espectáculo, de uma festa pública preparada para aquela tarde, iam enfim realizar-se. Era que, segundo dissemos no princípio deste capítulo, o dia que amanhecera fora o da véspera de S. João, e a véspera de S. João, por uma usança meia pagã, meia religiosa que se perdia na noite dos tempos, era já, como é ainda hoje, um dia de diurnos e nocturnos folgares.

Pelo passadiço lançado entre o postigo e o recinto vedado não tardou a entrar uma turba de cavaleiros vestidos simplesmente de briais, espécie de túnicas cingidas por uma faixa de lã, e armados só de lanças curtas, chamadas ascumas. Após eles dez ou doze cavalariços faziam entrar na liça outros tantos mastins corpulentos, cujos olhos afogueados estavam revelando a nativa ferocidade, e cujos pulos rompentes faziam vacilar os cavalariços, que a muito custo os retinham pelas trelas. No meio do murmúrio do povo, que se agitava no grande terreiro e que corria para a forte rede que demarcava a liça, ouvia-se a espaços um mugir e urrar longínquo, que parecia vir do interior do castro e que sobrelevava ao ruído da multidão.

Os cavaleiros das ascumas foram assentar-se num anfiteatro de paus grosseiramente acepilhados, que se alteava no topo do paralelogramo oposto ao do estrado da infanta. Na mais alta bancada do anfiteatro viam-se repotreados os magistrados municipais, e à sua direita os oficiais públicos da infanta que não exerciam cargos palatinos e que não pertenciam à classe dos ricos-homens e infanções. Eram estes o mordomo-maior do distrito, o juiz-do-livro e o alcaide-menor de Guimarães. Aautoridade dos dois primeiros estendia-se a toda a terra ou circunscrição administrativa em que o burgo vimaranense estava situado: a do mordomo-maior como agente principal do fisco; a do juiz-do-livro como magistrado judicial de todo aquele território, e cuja denominação provinha de julgar os casos ocorrentes pelo código visigótico, então vulgarmente conhecido pelo nome de Livro dos juízes. O alcaide-menor era o substituto ou vice-gerente do alcaide-maior, delegado militar do poder supremo em cada concelho, personagem que, sendo por via de regra um infanção ou cavaleiro nobre de mesnada, se fazia representar por um cavaleiro vilão ou por um homem de rua, o qual usava do título de alcaide-menor ou simplesmente do de alcaide. Os magistrados municipais eram os dois juízes ou alcaides do burgo, entidades que cumulavam, como já advertimos, as funções dos juízes ordinários e dos vereadores de tempos mais modernos, mas que no exercício da judicatura tinham por assessores um certo número de burgueses mais notáveis, chamados homens-bons, que constituíam uma espécie de júri permanente. Como magistrados administrativos resolviam os negócios ordinários do burgo, recorrendo aliás aos comícios populares quando havia a deliberar sobre graves interesses do município. O almotacé, tradição do antigo edil romano e a quem incumbia a polícia material do burgo, e o andador ou porteiro, oficial menor dos alcaides, completavam o grupo da governança de Guimarães. Tanto estes como os ministros oficiais da comarca ou terra, cumpre confessá-lo aqui, da altura do seu olimpo improvisado davam todos os indícios de estarem profundamente possuídos do grave papel que representavam naquele esplêndido auto. Cônscios da própria dignidade, nenhum dos nobres cavaleiros dos briais e ascumas lhes mereceu sequer um olhar oblíquo. Também não parecia que eles fizessem grande caso disso, indo assentar-se de roldão na bancada imediata com grandes assobios e descompostas risadas, indiferentes à solene gravidade da magistratura real e municipal.

Poucos momentos eram passados quando o postigo do castro se abriu de novo e vomitou de si, através do passadiço que assoberbava a barbacã, um touro furioso. Num relance o touro achou-se no meio da extensa liça, parou e olhou em roda bufando e escarvando a terra que lançava para o dorso. Depois de hesitar algum tempo na escolha das vítimas, galgou para os cavalariços, os quais sustinham a custo os mastins que haviam saudado a fera com um tremendo ladro. Quando o possante animal chegou a meia distância do espaço que o separava dos seus naturais inimigos, as trelas tinham caído no chão e os irritados molossos precipitavam-se a encontrá-lo. O valente animal soltou um longo mugido e abaixou a fronte, como se tentasse escondê-la na nuvem de pó que os cães, estacando, tinham tornado mais densa. Do meio do turbilhão viu-se de repente subir ao ar um vulto enovelado que foi cair a curta distância. Era o cadáver de um dos mastins. A cabeça do touro tinha surgido dentre o pó: o sangue tingia-lhe uma das pontas, gotejava-lhe sobre as roscas do rosto negro, e vinha listrar-lhe a escuma dos beiços trementes. Um clamor uníssono de aplausos rompeu dos dois estrados e dentre a turbamulta apinhada em volta da teia.

Como que excitados pelo entusiasmo dos espectadores, os cães, que por um instinto natural de conservação haviam recuado, arremessaram-se ao vencedor, o qual abaixando de novo as terríveis armas, recomeçou a escarvar a terra. A rápida cena que tinha suscitado aqueles estrondosos aplausos repetiu-se então com rapidez ainda maior. Segundo mastim foi cair semimorto na arena; mas os mugidos do touro haviam-se convertido em urros de desesperação. Rompendo do lugar onde repelira imóvel a agressão dos seus adversários, tentava erguer novamente a fronte ameaçadora. Debalde. Um dos mais corpulentos mastins cravara-lhe os dentes numa das orelhas felpudas enquanto outro lhe cruzava as presas no beiço superior unindo-as como um aro de ferro. O sangue do bruto enraivecido misturava-se com o das suas vítimas, e o peso dos corpulentos molossos curvava-lhe para o chão a cabeça. Arqueando o dorso, o touro galgou então para diante arrastando os mastins que, sem desaferrar, se rojavam no pó. De roda dele, pendurados da cauda, do ventre, filados aos curvilhões, assemelhavam-se a um tropel de demónios. A irritação do bruto possante parecia ter-se convertido na demência da desesperação.

Neste momento os cavaleiros dos briais puseram-se em pé, e os cavalariços dirigiramse para os cães, que o touro arrastava enovelados após si e que aos silvos e gritos dos cavalariços começaram a soltar-se do seu adversário. Muitos deles desconjuntados, esmagados, semimortos arquejavam na arena. O combate chegara a termos em que parecia que a morte, mais cedo ou mais tarde, deixaria todos os contendores estendidos no campo. Os cavalariços agarrando-se às caudas dos cães, fustigando-os com as trelas, repetindo de contínuo os gritos e os silvos, e deixando-se arrastar por aquele turbilhão informe, conseguiram afinal pôr termo à refrega. Rasgados os membros, coberto de sangue e de pó, o touro fugiu urrando para o lado oposto da arena, e os cavalariços aproveitaram aqueles curtos momentos para pôr a salvo os mastins que sobreviviam, galgando com eles por cima da teia que os separava do anfiteatro.

Já a este tempo os cavaleiros haviam descido à liça. Por alguns instantes falaram entre si em voz baixa. Um, finalmente, saiu correndo do meio do grupo e dirigiu-se para o outro lado do paralelogramo. Brandindo a ascuma provocava o nobre animal, em cujo aspecto o sangue que lhe tingia a fronte e a febre da raiva que lhe coava nas veias redobravam os indícios da ferocidade. O touro precipitou-se para ele. O cavaleiro vibrou o dardo que passou como um raio roçando pelo ventre da alimária, a qual estacou, fechando os olhos e abaixando as pontas para arrojar aos ares o provocador, se este não esquivasse a pancada pulando para o lado. No mesmo instante uma nova ascuma voou das mãos de outro cavaleiro para o bruto e cravou-se-lhe na espádua. Gritos estrepitosos prorromperam de toda a parte. A dor da profunda ferida só serviu, porém, de aumentar ainda mais, se era possível, a desesperação do animal, que rompeu furioso para os novos adversários; mas a cada salto um novo dardo vinha ou cravar-se nele ou passar-lhe ao lado, e os aplausos ou os apupos dos circunstantes recompensavam a perícia dos cavaleiros, ou castigavam a sua pouca destreza. Os ferros de duas ascumas embeberam-se afinal quase simultaneamente por entre as roscas do pescoço do bruto, que parou, vacilou algum tempo e caiu. Três ou quatro lanças que ainda passaram sibilando por cima dele foram cair inúteis no chão da liça. O touro tinha expirado.

Tal era a forma primitiva e singela de um espectáculo de eras bárbaras que a civilização desenvolvendo-se gradualmente por alguns séculos ainda não pôde desterrar da Península, e que nos conserva na fronte o estigma de bárbaros, embora tenhamos procurado esconder esse estigma debaixo dos ouropéis e pompas da arte moderna, e pleitear a nossa vergonhosa causa perante o tribunal da opinião da Europa com sofismas pueris e ineptos.

Quando a alegria frenética excitada entre os espectadores por aquela cena repugnante acalmou um pouco, e o cadáver do generoso animal foi arrastado para fora da liça, muitos malados peões e servos moçárabes e mouros tinham já começado a transportar para o ponto mais central do vasto terreiro grande soma de peças de madeira de diversos feitios. Aquelas peças, artificiosamente adaptadas umas às outras, não tardaram a converter-se num tablado quadrangular, que se elevava apenas a três palmos do chão, e em cujos cantos bojavam quatro torres de sobrada altura mas de diminuto âmbito. As tábuas que formavam as faces exteriores da alterosa máquina eram pintadas de modo que fingiam uma silharia de pedra, a qual, partindo das ameias que figuravam o circuito dos eirados, descia até à base das torres e prolongava-se forrando todos os quatro lados daquela espécie de base comum. No alto dos eirados, encostadas às ameias exteriores, erguiam-se algumas tábuas brancas em cujos topos superiores se viam alvos circulares em preto, onde tinham de bater, vibrando a lança e correndo à rédea solta, os cavaleiros que lançassem a tavolado, na frase daquela época. As tábuas só podiam ser derribadas quando a lança ferisse o respectivo alvo. Vários motivos tinham tido os magistrados do concelho para reservarem o aparecimento dessa nova visualidade para tal conjuntura. O inesperado do espectáculo, a rapidez da edificação, o artístico do desenho, tudo era para eles título de legítima glória. Além disso, a obstrução da liça por tamanha máquina durante a primeira parte do festejo daquela tarde podia ter obstado à perfeição do combate, inconveniente que eles tinham sabido remover com sumo tino, e como varões afeitos a ponderar as conveniências do Estado. Mas que espectáculo era esse a que sem dúvida pertenciam como actores mudos os simulacros das quatro torres? Era o famoso jogo sem o qual quase não se podia conceber regozijo público, o jogo do tavolado, conhecido além dos Pirenéus pela denominação de tabula rotunda, que, remontando pela origem às tradições de Carlos Magno e do rei Artur, transportado para a Península se alterara profundamente, sem deixar por isso de ser um exercício de destreza e de força.

Apenas os peões e servos, concluída a sua obra que os alvazis tinham descido a examinar e a aprovar, saíram da liça, entraram nela vinte cavaleiros montados em cavalos de batalha e armados como para combate. Traziam lanças de infanções ou apendoadas, isto é, ornadas à curta distância do ferro de bandeirolas de cores, distintivo que nas mesnadas só era permitido usar aos nobres de linhagem. Debaixo das sobrevestes brancas vestiam a armadura daquele tempo, em que ainda não existiam ou eram demasiado raros os arneses lisos, tão elegantes, tão esplêndidos de brilho e de cores, que se tornaram comuns nos séculos XIV e XV. A armadura de então era o longo saio de malha de ferro e a cervilheira do mesmo tecido, que cobria o pescoço e que vinha ligar-se nos ombros com o saio e na cabeça com o capelo de ferro, espécie de elmo cuja visagem ou viseira ainda não era móvel, o que dava ao homem de guerra, visto a certa distância e sem a sobreveste, o aspecto de um jacaré erguido sobre a cauda. Uma cobertura de sirgo ou seda caía pelas ancas, peitos e pescoços dos cavalos terminando em franjas orladas de guizos e cascavéis. Os escudos, ovados, quase iguais no comprimento à estatura do cavaleiro, e geralmente lisos e escuros, ofereciam no centro uma como pequena pirâmide de ferro azerado que na peleja também servia de arma ofensiva quando o homem de armas, posto a pé por qualquer acidente, podia bater com o escudo no saio ou na cervilheira do adversário. Uma espada curta, larga e direita, sem guardamão, cingida ao peito e inclinada para trás por cima do quadril, a lança, e um punhal delgado e comprido, chamado misericórdia, eram as armas que não largava nunca o homem de guerra nobre; porque as mais pesadas, que serviam nos casos extremos, tais como a acha de armas ou o montante, trazia-lhas de ordinário o pajem ou escudeiro, cuja denominação provinha de conduzir o escudo do amo metido num envoltório ou saco, chamado funda, prestes sempre a ajudar-lhe a embraçá-lo antes de começar qualquer recontro ou peleja.

Naquele dia, porém, as lanças e as espadas dos vinte cavaleiros eram botas. A liça de Guimarães fora destinada para representar cenas de guerra sem os seus horrores: para facultar aos moços guerreiros o ensejo de darem provas de força e destreza sem os perigos extremos das batalhas. Entre as donzelas da infanta mais de um coração teria de bater apressado no meio da eminente luta; mas bateria só ansioso pela glória daquele por quem esse coração fazia votos, e não pelo temor de uma cena de morte. O torneio que ia começar não dispensava, todavia, a audácia e a ciência dos combates, nem o jogo do tavolado, última prova da perícia dos vencedores na luta, era jogo para os apoucados em forças ou menos hábeis nos exercícios equestres.

Os cavaleiros tinham-se dirigido para o vasto espaço que ficava entre as torres improvisadas e o tablado ou cadafalso donde a infanta viera presenciar esses folguedos próprios de eras bárbaras. Depois de passarem enfileirados e lentamente por diante da corte, dividiram-se em dois grupos iguais. Um postou-se junto da teia contígua ao estrado da infanta-rainha e o outro foi colocar-se em frente do primeiro ao pé das torres de madeira. Como por encanto, o rebuliço da multidão, que, por fora da teia, seguira para aquela parte da liça os recém-chegados, foi esmorecendo até cair em fundo silêncio. Havia instantes que este reinava, quando se viu caminhar para a borda do estrado um pajem dos muitos que estavam por detrás do escano de Fernando Peres. Trazia pendurada a tiracolo uma pequena buzina. A um aceno do conde, de quem não despregava os olhos, pô-la à boca e tirou um som lento e triste. Os cavaleiros abaixaram as lanças, curvando-se para a cabeça dos cavalos e cobrindo-se com os escudos. A um segundo aceno, o pajem repetiu o som da buzina com igual lentidão. Quando acabou, os cavaleiros precipitaram-se uns para os outros. Eram valentes homens de guerra não só do condado de Portugal e Coimbra, mas também de Galiza e de Aragão. Os dez do lado das torres eram dos primeiros; os da parte da corte eram dos segundos. Quando toparam uns nos outros, os rolos de pó alevantado debaixo dos pés dos cavalos toldavam o ambiente e mal deixavam enxergar aquela mó de homens e ginetes como envoltos numa nuvem. Quando a cena aclarou e os vencedores recuaram para não pisarem os vencidos, viram-se estendidos no chão sem sentidos, ou tentando erguer-se, nove cavaleiros. Dos portugueses apenas quatro tinham deixado de ser derribados. O desastre, porém, não fora para o seu bando tão grande como parecia: a um caíra o cavalo com a força do encontro; três tinham sido precipitados com as selas entre as pernas. Estas circunstâncias reputavam-se, e com razão, como um notável desconto na glória e nos desaires dos torneios. Todavia o murmúrio de descontentamento, que sussurrou entre as turbas apinhadas, e os aplausos, que partiram de alguns dos personagens que rodeavam a infanta-rainha e o conde de Trava, mostravam bem que decisiva fora no primeiro recontro a vantagem dos aragoneses e galegos contra os cavaleiros portugueses.

Mas os quatro dentre o bando vencido que haviam ficado firmes na sela tinham imediatamente posto pé em terra e desembainhado as espadas. Quatro do lado oposto desceram a recebê-los, mas os portugueses abaixaram as espadas.

— Todos, todos! - bradou com voz trémula de cólera o que dentre eles mais rapidamente pusera o pé em terra.

A multidão acolheu este brado com um dilúvio de palmas.

Aquele dia tinha de ser um dia de grande glória para os alvazis de Guimarães. Havia nos antigos torneios, bem como nos desafios judiciais, chamados juízos de Deus, dois juízes do campo destinados a dirimir as contendas e dúvidas que se alevantavam acerca das fases da luta. Nas lides judiciais dos concelhos os alvazis ou alcaides cumulavam essas funções com as do julgamento dos pleitos cíveis. Mas juízes do campo em torneio de nobres era honraria, que ultrapassava a meta das mais desvairadas ambições de um cavaleiro vilão. E todavia a graciosa rainha-infanta e o seu valido e primeiro rico-homem de Portugal, Fernando Peres, tinham resolvido que naquele dia os privilégios dos filhos-d'algo cedessem ante os privilégios dos magistrados do seu bom e leal burgo de Guimarães, que pagava as despesas da festa.

Como modernamente, já naqueles tempos não esquecia nunca aos príncipes adicionar o epíteto de leal a qualquer povoação onde se manifestavam sintomas de iminente rebelião.

Os aplausos com que foi acolhido o desigual repto lançado pelo bando vencido ao vencedor eram mais um desses sintomas que o burgo de Guimarães dava, havia muito, da sua malevolência contra uma corte de estrangeiros, onde um estrangeiro fazia na aparência o segundo papel e na realidade o primeiro.

Os juízes desceram do seu trono burguês, atravessaram pausadamente a liça e aproximaram-se dos combatentes.

— Todos, todos! - repetiu, rangendo os dentes de cólera, o cavaleiro do bando vencido que parecia dominar inteiramente os seus companheiros. Nem sequer olharam, os descorteses, para os dignos magistrados que se interpunham entre eles e os seus contrários, e que começavam a provar-lhes a incongruência da sua pretensão.

O outro bando parecia hesitar.

— Covardes! - gritaram ao mesmo tempo dois dos cavaleiros portugueses vencidos na justa, que recobrados os brios tinham vindo unir-se aos seus companheiros.

Os provocados não puderam conter-se mais. De um pulo ficaram de pé, ao passo que dentre a multidão rompia o estrondo infernal das manifestações de entusiasmo popular.

Era um acórdão do supremo tribunal caindo de chofre a revogar a sentença de uma relação.

Os contendores precipitaram-se uns para os outros com as espadas em punho.

Os alvazis retiraram-se apressadamente do meio daqueles furiosos, ao som das risadas da plebe. Tinham a peito manter a dignidade e, sobretudo, a inviolabilidade, a integridade do poder municipal.

As funções judiciais eram na Idade Média frequentemente sujeitas a semelhantes eclipses.

Apesar de serem botas as espadas; apesar de estarem os pelejadores de um e de outro lado completamente arnesados, não era difícil pressagiar um desfecho sério à luta. A força muscular dos rudes homens de armas daquele tempo triplicada pela ira supria até certo ponto os fios do aço bem temperado; o elmo e o perponto não se cortavam, mas podiam abolar-se. Guerreiros havia que nos combates com os sarracenos preferiam a maça à espada.

À vozeria sucedera o silêncio. No estrado da corte é que murmurava um leve sussurro: os barões disputavam fogosamente entre si. A infanta e o conde conservavam-se imóveis, mas tinha-se-lhes demudado um pouco o gesto. Por cima do silêncio do povo, por cima do murmúrio dos cortesãos, soava o ruído confuso e discorde da espada que ora retinia na espada, ora tirava um ruído cavo batendo no capelo de ferro, ora dava um som baço amortecendo no perponto flexível de malha.

Dos seis cavaleiros portugueses derribados no primeiro encontro apenas dois tinham ousado envolver-se no torneio de pé, e apenas um dos contrários pudera imitá-los. Os efeitos de uma queda violenta naquela época em que o cavaleiro batia no chão, não só levando o impulso do embate, mas também o que lhe imprimia o peso da própria armadura, eram não raro de extrema gravidade. Havia exemplos de se ter seguido a morte sem que as armas houvessem sido falsadas, e frequentemente essa queda inutilizava-os por muito tempo para prosseguir no combate.

Se a luta era desigual na aparência, não menos o era na realidade, mas em sentido contrário. De um lado estavam seis cavaleiros, oito do outro, e contudo a superioridade residia no bando menos numeroso, porque havia aí um homem que supria sobejamente a inferioridade numérica dos seus companheiros.

Era o que tinha provocado a lide geral. A sua fronte orgulhosa, que subia acima das de todos os combatentes, como que resfolegava pelas vistas do elmo a altivez e a cólera. Aos primeiros golpes daquela espada dois nomes correram de boca em boca entre o povo. Golpes tais só havia dois braços de homens que os vibrassem: ou o de Lourenço Viegas de Ribadouro, ou o de Gonçalo Mendes da Maia. A agigantada estatura do cavaleiro e a ausência de Lourenço Viegas traíam o senhor da Maia, cuja força e esforço lhe tinham feito adquirir o apelido de Lidador.

Quase como o passar de relâmpago, dois desses golpes tremendos tinham caído em cheio um sobre a cervilheira outro sobre o guante ferrado de dois cavaleiros galegos que, incapazes por isso de menear a espada, foram obrigados a abandonar o torneio.

Passaram alguns instantes e mais dois cavaleiros do lado da corte tinham deixado de combater; mas para eles a sorte das armas fora dobradamente severa. Com pequeno intervalo caíra um e depois outro. A espada fatal do Lidador ferira sucessivamente nos seus capelos de ferro. Pendendo a cabeça e vacilando como embriagados, via-se-lhes gotejar o sangue por baixo da baveira, peça que defendia o queixo inferior, e deslizar-lhes pelo gorjal e pelo perponto até pingar na areia. Desatinados, depois de darem algumas passadas vagas, quase ao mesmo tempo, erguendo os braços, como duas árvores que cedem à derradeira machadada, bateram hirtos em terra.

Os golpes e estocadas seguiam-se cada vez com mais fúria. Se o Lidador surgia no meio dos seus como o pinheiro secular no meio da mata de robles, do outro lado distinguia-se um cavaleiro que mais destro e robusto parecia exercer uma espécie de supremacia entre os seus. Já duas vezes no meio da revolta a espada ardente do Lidador lhe tinha passado faiscando pelo arnês, uma abolando-lhe o elmo outra desfazendo-lhe as malhas do saio, sem que ele mostrasse ter sentido o mínimo abalo. Duas estocadas dirigidas ao peito do senhor da Maia, e habilmente varridas por este, haviam respondido às duas cutiladas. Depois os duros guerreiros tinham-se afastado um do outro para se interporem onde viam fraquejar algum do seu lado.

Um português caiu por fim. Havia-o derribado o chefe contrário. No alto do estrado, de pé, imóvel, com os olhos revendo ira e sulcados de raios de sangue, o senhor de Trava, o nobre conde de Portugal e de Coimbra, contemplava fito aquele turbilhão que se agitava na arena, torcendo a espaços a boca para alcançar com os dentes os longos bigodes que mordia. Quando o cavaleiro português caiu o contraste de súbita alegria com a irritação mal reprimida arrancou-lhe um grito rouco e abafado:

— Bem, Bermudo, bem!

Todos os olhos dos cortesãos se cravaram no conde, que imprudentemente revelava o nome do cavaleiro. Mas uma nova circunstância veio distrair a atenção dos espectadores. O combate equilibrava-se. Dos quatro companheiros do Lidador que com ele mantinham o torneio contra os contendores adversos, um arredou-se de súbito e encostou-se à espada, curvado sobre ela. A visagem ou viseira tinha-lhe caído, quebrados os loros que a prendiam ao capelo de ferro; mas o rosto pisado e sanguento não permitia reconhecê-lo. A estocada que desarmando-o lhe transfigurara o gesto fora mais discreta do que o conde de Trava.

A infanta erguera-se: estava um pouco pálida mas risonha. Estendeu a mão para a arena lançando ao conde um olhar rápido. Fernando Peres acenou ao pajem da trombeta que imediatamente tirou dela um som prolongado, e, adiantando-se para a borda do cadafalso, gritou com voz infantil:

— Sua excelência a rainha dos Portugueses ordena que cesse o torneio e comece o tavolado.

Ao soar o nome da rainha, os combatentes pararam abaixando as espadas.

D. Teresa previra o final desenlace do torneio: reconhecera o terrível Lidador. Sob certo aspecto os do bando de Gonçalo Mendes levavam já a melhoria num combate de seis contra oito; mas, por outro lado, não tinham ainda naquele momento, em que as forças pareciam equilibrar-se, decisiva vantagem.

Não havia propriamente vencedores: nenhum dos oito cavaleiros que restavam tinha sido arrancado do campo; a todos, portanto, cabia igual direito de experimentarem fortuna no jogo do tavolado, visto que sua excelência a rainha dos Portugueses fizera cessar o torneio.

Tal foi o veredictum dos juízes do campo, os honrados alcaides do burgo, que, de pé com o alcaide-menor à frente, o proclamaram pela boca deste do alto da sua bancada.

Um lio ou feixe de grossas lanças, que os mais robustos homens de hoje mal poderiam sopesar, foram trazidas então para dentro da liça. Apendoadas como as lanças de guerra de todos os cavaleiros nobres, cada uma tinha o pendão e a haste de cor diversa dos pendões e hastes das outras. Oito agigantados corcéis de batalha, conduzidos de rédea por cavalariços de sobrevestes brancas, entraram após os homens que traziam aos ombros o lio das lanças. Desliadas estas, cada cavaleiro empunhou uma delas e cavalgou ligeiramente num dos cavalos. Ninguém diria, ao vê-los assim ágeis e desenvoltos, que tinham saído pouco antes de uma violenta refrega.

Num momento os oito do torneio retrocederam para os quatro ângulos da liça: os leoneses e galegos do lado da corte; os portugueses do lado dos venerandos magistrados do burgo.

Fez-se um grande silêncio, que não tardou a ser interrompido por uma nota prolongada da trombeta do pajem.

Quatro cavaleiros, partindo um de cada ângulo da liça, lançaram-se à rédea solta contra o tavolado com as lanças erguidas sobre a cabeça. A curta distância das torres as lanças sibilaram partindo das mãos dos cavaleiros e dando um som cavo nas torres, ao mesmo tempo que os cavalos perpassavam como relâmpagos uns pelos outros. Um dos quatro ferros ficou cravado quase na orla de um dos alvos, e a távola oscilou levemente: das outras três lanças duas entalaram-se entre as falsas ameias, e a terceira, depois de bater no tavolado, caiu no eirado da torre.

Sem esperar a repetição do sinal, os quatro cavaleiros restantes, entre os quais surgia o vulto agigantado do Lidador, deram de rédea aos impacientes corcéis que partiram a todo o galope. Zumbiram de novo as lanças despedidas com grande ímpeto. A do Lidador bateu em cheio no alvo de um dos tavolados, que desabou com grande ruído; a de Bermudo Peres, que era um dos quatro, cravou-se também no alvo, que oscilou violentamente, mas não veio ao chão. Das outras duas lanças a do companheiro de Bermudo Peres tinha-se desviado um pouco e passara roçando pela aresta do tavolado, na altura do alvo, ao mesmo tempo que a do companheiro do Lidador batia ao meio da tábua, mas algumas polegadas abaixo do alvo a que atirara.

Os juízes do campo proclamaram vencedor o cavaleiro da cor verde. Era a cor da haste e do pendão da lança que o senhor da Maia tomara.

Escudeiros, burgueses, cavaleiros vilãos, peões, colonos servos, que apinhados rodeavam a liça, prorromperam em aplausos. Na verdade Gonçalo Mendes era o mais benquisto rico-homem de além-Douro, e, embora coberto de armas e calada a viseira, o povo tinha-o conhecido. Aquela vozeria tempestuosa não era, porém, tanto demonstração de afecto como manifestação de ódio. A multidão aplaudia menos a vitória do infanção português do que a humilhação dos nobres cavaleiros de Galiza.

O conde de Trava, com uma perna cruzada sobre a outra, o cotovelo firmado no joelho, e a barba sobre o punho cerrado, contemplava imóvel a agitação popular, e nos olhos irritados lia-se-lhe que alcançava bem a significação daquele entusiasmo frenético.

Segundo o costume, o vencedor nestes jogos guerreiros tinha de receber um prémio das mãos da principal personagem que assistia a eles. Com o sorriso benévolo, debaixo do qual escondia habitualmente, ou as intenções do seu ânimo astucioso, ou as paixões de temor, de ódio, ou de cólera, quando os acontecimentos lhe vinham excitar qualquer delas, D. Teresa alevantou-se do escano, e tomando uma copa ou taça de prata das mãos de um pajem, que lha apresentara sobre uma almofada de pano tiraz, a mais rica tela que então se conhecia, deu alguns passos para Gonçalo Mendes que, conduzido pela mão do mordomo da cúria, subia ao tablado.

O rico-homem da Maia, fazendo rodar a viseira sobre o eixo que a segurava ao capelo de ferro, descobriu o rosto onde ainda se manifestavam os últimos sulcos das contracções de um grande furor, como ainda depois de aquietada a procela se agitam as últimas carneiradas do oceano revolto. Pôs depois um joelho no chão e beijou a mão da infanta, em cujos lábios vagava o costumado sorriso. A infanta, pegando então na taça, entregou-a ao cavaleiro.

— Como sempre, nobre senhor da Maia - disse ela, ao passo que Gonçalo entregava a dádiva da rainha ao seu escudeiro, que viera colocar-se atrás dele ao sopé do escano real. - Como nas batalhas do conde Henrique: Deus tenha sua alma. Como nas batalhas com os agarenos e ismaelitas, em que sempre vos vi combater por mim e pela terra de Portugal. Sempre a primeira lança; sempre a primeira espada.

— Enquanto o braço que as meneia não adormecer na morte, podeis, senhora, contar com essa lança e com essa espada para a defesa da livre terra portugalense, não só contra os infiéis agarenos, mas também contra qualquer estrangeiro que quiser avassalá-la.

Na voz do rico-homem havia um singular tremor ao proferir estas palavras. No rosto de D. Teresa continuava a deslizar o habitual sorriso. O conde de Trava mordia com mais força a guia do longo bigode que lhe sombreava os lábios.

Porém as últimas palavras do Lidador mal se ouviram. Uma alarida de brados, de silvos, de risadas estrondosas, conglobados num estrépido semelhante ao de procela desfeita, levantando-se dentre as multidões apinhadas além da teia, começara a atroar os ares. A turbamulta remoinhava e (...)

Notas editar

  1. Este capitulo, que não podemos intercallar no logar respectivo por lhe faltarem as scenas finaes necessarias para o ligar com o immediato, devia entrar a pag. 36, em substituição do terceiro primitivo, que, depois de levemente modificado, passaria a ser o quarto, e assim os seguintes. A letra e o aspecto geral do manuscripto indicam ter sido composto ha muito mais tempo do que a introducção, que neste volume substitue a antiga, e que parece ser um dos ultimos trabalhos do Auctor; talvez começo da revisão geral do romance, para a promettida edição largamente melhorada.