A sorte das armas e a vingança de Dom Bibas tinham resolvido os futuros destinos de Portugal. Não foi esta a primeira vez, nem será a última, em que uma batalha ou um caturra influam na existência ou não-existência, no modo de ser ou de não-ser destes corpos morais chamados nações, que apesar da sua individualidade, em rigor ideal e abstracta não deixam de parecer corpos físicos, pela falta de vontade e de inteligência.

Brava batalha se pelejara no campo de S. Mamede, junto de Guimarães, onde a hoste do infante se travara com a de sua mãe e do conde de Trava. Depois de largo conflito, Afonso Henriques triunfara, e D. Teresa se vira obrigada a fugir com o soberbo estrangeiro, indo encerrar-se no Castelo de Lanhoso, distante duas léguas do lugar do recontro.

Mas porque não procuraram os vencidos amparar-se dentro dos fortes muros e torres do Castelo de Guimarães? É o que não nos diz a história. Pouco importa: di-lo-emos nós. A história não conheceu Dom Bibas, e Dom Bibas, muito em segredo o revelamos aqui aos leitores, nos oferece a chave deste mistério. O bobo tornara impossível semelhante arbítrio, e porventura ajudara a descer do céu a bênção que cobriu as armas de Afonso Henriques.

Este não se esquecera do modo por que e do caminho por onde o esforçado senhor da Maia escapara às garras do nobre tigre de Galiza. A lança de Gonçalo Mendes não reluzira enristada ao sol da peleja. Quando, porém, esta andava mais acesa e travada, vários besteiros, que se viam ao longe guarnecendo os adarves e eirados das muralhas e torres do temeroso castelo, começaram a vacilar e correr de um para outro lado, e daí a pouco alguns deles, tombando por entre as ameias, fizeram espadanar as águas encharcadas e verde-negras do fosso. Os habitantes do burgo, correndo a indagar a causa do terrível espectáculo que presenciavam, sentiram misturarem-se lá no alto as aclamações ao infante com os gritos e gemidos dos que morriam. A ponte levadiça ergueu-se entretanto, e os burgueses olhando de novo para os muros viramnos povoados de homens de armas, em vez de besteiros, e hasteada na torre de menagem a signa de Afonso Henriques. O silêncio tinha lá em cima substituído os gritos de contentamento e de agonia. Então um som estranho lhes chamou a atenção. Olharam. Em uma das troneiras do cárcere do alcaide o truão do paço, com os braços estendidos fora das grades, batia as palmas, e viam-se-lhe reluzir os olhos e alvejar os dentes no meio de gargalhadas estrondosas. Por baixo da troneira um dos atalaias precipitados das ameias, atravessado de golpes, lutava nas ânsias da morte e se revolvia na água lodacenta da cárcova, a qual tingia com o próprio sangue. O bobo olhava para o besteiro com a voluptuosidade sangrenta de uma besta-fera. Era o cavalariço do conde que o havia açoutado.

Daí a pouco Dom Bibas calou-se retirando-se da troneira subitamente; mas não tardou a aparecer de novo correndo pelos adarves e debruçando-se pelos eirados, donde fazia visagens insolentes aos burgueses que olhavam para lá admirados. Os poucos que entre estes eram parciais do conde boa vontade tiveram de lhe enviar alguns tiros de besta: um caso, porém, inesperado veio divertir-lhes a atenção. As portas da Igreja de S. Salvador abriram-se de par em par e dentro ouviu-se o som do melodioso órgão, enlevo das damas da corte da bela infanta, e o canto dos monges, que entoavam as orações do ritual antigo para chamar a bênção do céu sobre a cabeça do príncipe que devia voltar vencedor dos seus inimigos.

A revolta começava no burgo pela liturgia monástica. Não havia dúvida de que Fr. Hilarião tornara ao mosteiro, porque a voz fraca e trémula do velho abade entoara as palavras do salmo Deus se compadece de nós - e os quíries dos outros monges haviam após isso reboado no templo e sido interrompidos novamente por Fr. Hilarião, que cantava: Levanta-te, oh Senhor - ao que os seus confrades respondiam na toada solene do canto gregoriano. Depois de várias orações, durante as quais muitos burgueses tinham sucessivamente entrado na igreja, seguia-se uma em que era necessário proferir o nome do príncipe para quem se invocava a protecção divina. Ousadamente o bom do abade garganteou:

— Oh Deus, a cujos pés está o universo, e a quem obedece tudo sob o império do teu servidor fiel o príncipe D. Afonso!, concede-lhe tempos pacíficos, e piedoso afasta dele esta bárbara guerra, para que, regedor do teu povo, guiado por ti, Senhor, obtenha paz no meio das gentes[1].

Ao acabar esta oração um leve ruído de aplauso sussurrou pelas naves, mas logo morreu em atento silêncio. Fr. Hilarião continuou:

— Invocamos-te, Senhor, para que sejas propício às nossas preces, tu que és o rei dos reis, e o dominador dos que imperam. Volve olhos benignos para o nosso príncipe D. Afonso...

Ao repetir deste nome, proferido em voz mais alta, um brado de muitos brados retumbou pelas naves do antigo templo de D. Muma: o povo que o enchia escoou-se lentamente pelo escuro portal, e as aclamações ao infante, restrugindo no terreno contíguo, vieram reboar de novo pelas sacrossantas abóbadas.

Os homens de rua e os vilões, vendo o castelo e o mosteiro declararem-se pelo filho do conde Henrique - revoltar-se a torre de menagem e o ritual -, entenderam que o burgo, assentado aos pés dos dois símbolos da força e da inteligência, devia imitá-los. Dentro de poucos minutos pelas vielas da povoação corriam os peões armados de fundas, de bestas de ascumas, e fugiam para a campanha os besteiros do conde, que guardavam os valos e os cubelos da cerca exterior acompanhados de apupos dos burgueses, e de muitas pedradas e virotes disparados atrás deles. Então a ponte levadiça do castelo desceu, e alguns homens de armas saíram para o burgo. À sua frente vinha o Lidador, que se dirigia ao mosteiro, rodeado já da vilanagem, que o saudava e aclamava o infante, e que o senhor da Maia fazia afastar, para poder seguir avante, com boas contoadas de lança, segundo era direito e costume tratar peões em semelhantes autos. Dom Bibas montado em um ginete do conde de Trava e ataviado com as suas louçainhas de bufão seguia de perto o cavaleiro, rindo e fazendo visagens e momos, sem se esquecer de distribuir golpes de palheta à direita e à esquerda com toda a munificência de um truão real.

Entretanto na hoste de D. Teresa se espalhara a notícia de que o inexpugnável alcácer de Guimarães sucumbira à traição e que os inimigos tinham aparecido subitamente no seu recinto como surgindo de sob a terra. Esta nova fizera esmorecer os corações mais robustos; mas quando os homens de armas, besteiros e peonagem deixados no castelo e no burgo começaram a acolher-se fugitivos e malferidos aos pendões da hoste, e narraram os acontecimentos que os obrigaram a abandonar o seu posto, o desalento se tornou geral, e a vitória, até aí indecisa, principiou visivelmente a inclinar-se para o lado do infante. Os balções variegados dos estrangeiros abatidos pela maior parte ante os ricos-homens portugueses; as alas vacilando e retraindo-se dos golpes furiosos dos seus adversários; os almogaures ou corredores, simulando voltearem para cometimento inesperado, mas realmente fugindo, davam já claros anúncios de próximo desbarato. Debalde o conde de Trava com a voz e com o exemplo tentava reanimar os brios dos seus cavaleiros; debalde se atirava como desesperado ao meio dos maiores perigos; a hora derradeira do seu domínio em Portugal tinha soado; e D. Teresa, que, observando o combate de um outeiro onde estava assentado o pavilhão real, tremera a princípio pela sorte do filho, conheceu enfim que negro para ela e para o conde devia ser este dia fatal. Terrível momento foi para a bela infanta aquele em que as lanças de Fernando Peres e de Afonso Henriques se enristaram frente a frente. Fechou involuntariamente os olhos horrorizada. Ao descerrá-los de novo, descortinou o vulto agigantado do moço príncipe que sobrelevava aos mais corpulentos cavaleiros [2] já muito longe dali, abrindo sulcos por entre as mesnadas ou companhias dos nobres homens de Galiza. Os dois émulos do império tinham ferido em soslaio, e as ondas dos cavaleiros os haviam separado.

Nesta mesma ocasião dois guerreiros também rivais, mas rivais por um afecto mais violento ainda que a ambição, haviam visto enfim satisfeito o seu ódio encontrando-se. Ao pé deles nesse momento só combatiam peões. Egas, com a tenacidade de um demónio, com a prudência tranquila de um rancor implacável, se esquivara a todos os grandes riscos da batalha, espiando o instante em que Garcia Bermudes, arrastado pela ebriedade do combate, se afastasse dos cavaleiros aragoneses que o seguiam. Este instante chegou: o alferes-mor correra ao meio de uma ala de besteiros que recuava diante dos fundibulários da beetria de Gontingem. Alguns

golpes do seu montante deviam bastar para afastarem aquela nuvem de peões desordenados. Um cavaleiro, porém, semelhante ao nebri que se arroja sobre a preia, se dirigia para ele a todo o correr do cavalo. Parando, o esforçado Garcia esperou-o a pé firme. Sem saber porquê, o coração batia-lhe apressado.

Era Egas. A pouca distância do alferes-mor o guerreiro sofreou o ginete, como se aspirasse o cheiro do sangue que ia correr, como sorrindo à ideia de que naquele lugar a morte teria uma nobre vítima. Ele ou Garcia? Que lhe importava? Um ou outro. Para o que perecesse como para o que triunfasse, o dia seguinte tinha de ser um dia de repouso e de paz.

Entre os dois proferiram-se algumas palavras. Eram baixas e rápidas: ninguém as ouviu; mas deviam ser atrozes. Quase a um tempo o montante de Garcia faiscou batendo no elmo do seu adversário, e a acha de armas de Egas esmigalhou o escudo do aragonês; depois por longo tempo não soou ali senão o restrugir do ferro no ferro, o ranger de dentes, e um rir sumido mas infernal. Riam porque o sangue lhes começava a rever das armaduras rotas e aboladas. Os cavalos arquejavam sob as suas redes de malha, e sob os pesados arneses de seus donos, que em pé nos estribos e apertando-os entre as duras joelheiras de ferro os faziam bater de peitos um no outro, e misturarem a escuma ensanguentada que lhes cobria os freios e salpicava as crinas. Os pobres animais meneavam-se já a custo, e as forças e o ânimo feroz dos cavaleiros não quebravam, antes pareciam crescer. Quase ao mesmo tempo os ginetes ajoelharam e caíram; mas de um salto os dois adversários ficaram em pé com a espada na mão. Os besteiros e fundeiros que os cercavam tinham cessado de combater, e consideravam com terror aquele espectáculo, como se uma voz de cima lhes houvera dito que esse combate era um repto de morte. Dava-lho, porém, a conhecer um tremendo sinal: ambos destros no pelejar, nenhum curava de resguardar-se dos golpes do seu adversário, atento só a feri-lo. Naquelas almas repassadas de furor, dos dois pensamentos de vida e de morte, não cabia senão um, e era ao segundo que ambos exclusivamente se abandonavam.

Por fim o cavaleiro de Riba de Douro começou a levar visivelmente a melhoria ao generoso alferes-mor. Este não previra o recontro que o aguardava: o ódio de Egas havia, porém, calculado placidamente tudo. Assim, pela primeira vez ele deixara de comba-

ter ao lado do infante, vendo-o cercado de inimigos. Como a luz do astro da noite se desvanece ao subir no oriente o Sol, do mesmo modo o ardente fogo da amizade amortece e se apaga quando se acende ou fulge o facho das duas mais ardentes paixões humanas: a vingança e o amor.

Depois de largo pelejar o braço de Garcia deixou de responder à sua vontade enérgica. A espada não lhe escapou, porque lha prendia ao braçal uma cadeia de ferro; mas a mão não podia apertá-la. O bom cavaleiro sentiu as asas da morte roçarem-lhe frias pela fronte e gelarem as bagas de suor que lha banhavam: vergaram-lhe os joelhos, e no lume baço dos olhos centelharam-lhe como duas fachas trémulas e rápidas de fogo vivo; vacilou e caiu: caiu para nunca mais se erguer. "Dulce!", foi o seu último murmúrio; o último som que ouviu, um rugido de tigre; a última luz que viu, o lampejar de um punhal, que lhe descia entre o camal e o saio. Não fez um movimento, um gesto de súplica; não esperou nem quis piedade. Não a queria vencido; não a teria vencedor; não podia esperá-la.

Ao arrancar o ferro fumegante do coração do aragonês, Egas sentiu os gritos de desalento e temor dos peões inimigos, que fugiam aterrados vendo o termo daquele duelo fatal, enquanto os vilões de Gontingem lhes despediam uma nuvem de setas e pedras, acompanhadas de injúrias e ameaças. Com um sorriso doloroso o trovador olhou largo tempo para o cadáver do seu rival. Depois chamando alguns besteiros lhes disse:

— Fazei umas andas de troncos de árvores, e transportai este cadáver ao Mosteiro de Guimarães. Lá deveis encontrar quando aí chegardes o abade Fr. Hilarião. Dizei-lhe que Egas Moniz o moço lhe pede uma tumba e uma sepultura honrada para tão nobre e valente cavaleiro. Dizei-lhe, também, que a minha promessa desta noite há-de cumprir-se, e que ainda hoje nos veremos!

— Ver-nos-emos! ver-nos-emos! - repetiu ele em voz baixa enquanto os soldados começavam a executar o que lhes ordenara. - Após o cadáver do que dorme o último sono, o daquele que respira e parece viver: também eu terei o meu moimento!

E apesar de malferido e com o arnês despedaçado montou no cavalo que lhe ofereceu um almoçadém de peões, e partiu à rédea solta para onde entre nuvens de pó se viam ao longe fulgurar as espadas dos pelejadores.

Mas não era peleja. Era um encalço, uma carnificina de vencidos. Atodas as novas aterradoras vindas de Guimarães acrescera a da morte de Garcia Bermudes, que os besteiros fugitivos tinham espalhado. O conde de Trava retirava-se combatendo ainda, socorrido por alguns cavaleiros mais esforçados, mas os comuns dos homens de armas fugiam desordenadamente. A sorte do alferes-mor quebrou enfim os brios até dos mais destemidos.

Quando se conheceu claramente para que lado se inclinava a vitória, D. Teresa esqueceu-se de que era mãe, esqueceu-se da altivez e dureza de Fernando Peres, para se lembrar só de que era amante e rainha, e de que mais de uma vez o som da sua voz tinha bastado a infundir ousadia invencível no ânimo dos seus guerreiros. Montou num palafrém e acompanhada unicamente de um pajem e de dois escudeiros desceu ao campo, deixando na tenda as suas damas e donzelas, que choravam e rezavam cheias de medo, e horrorizadas das cenas de extermínio que passavam na planície.

E as duas hostes, travadas, enredadas, envoltas no pó, rolavam como uma nuvem tempestuosa afastando-se para longe do outeiro, onde estava alevantado o pavilhão da bela infanta. O Sol inclinava-se para o ocidente e o poderio da filha de Afonso VI ia fenecendo como ia fenecendo o dia.

Subitamente do meio daquele turbilhão de homens armados, saiu rápido como a seta um vulto, galgando pela encosta e encaminhando a carreira do cavalo para o lado da tenda real: o vigia que velava à entrada chamou os demais guardas, que eram apenas alguns velhos cavaleiros pousados e um troço de besteiros do burgo.

O vulto era um homem de armas. Parou a certa distância da tenda e bradou aos vigias:

— Dizei à ilustre prestameira de Bravais, à nobre esposa do alferes-mor de Portugal, que seu marido e senhor lhe ordena se dirija ao Mosteiro de Guimarães, onde ao anoitecer o achará esperando. Sem réplica e sem tardança deve cumpri-lo, porque a lide perdeu-se e só desse modo se poderá salvar.

Ditas estas palavras o homem de armas desceu com a mesma rapidez o outeiro para o outro lado.

Dulce, que entre as demais damas de D. Teresa era a única tranquila, porque para ela já não havia na Terra temor nem esperança, ouviu o bradar do mensageiro. Pareceu-lhe conhecer a voz que bradava; mas logo reflectiu que era ilusão. Essa voz não podia

chegar até àquele lugar, porque a abóbada de um cárcere a abafava, e porque semelhante mensagem repetida por tal boca seria monstruosidade impossível.

Entretanto, o cadáver de Garcia Bermudes fora colocado entre duas renques de brandões acesos no meio da nave principal do templo de S. Salvador. Além das grades, que segundo o antigo costume separavam a capela-mor do corpo da igreja, os frades salmeavam as orações da tarde. Subitamente um cavaleiro com as armas rotas e cobertas de pó entrou, e seguindo por uma das naves laterais foi encostar-se à última coluna junto ao cruzeiro. Apenas o divisou, Fr. Hilarião, descendo da sua cadeira onde presidia ao coro, fez sinal para que se abrissem as cancelas de ferro, e encaminhou-se para o recém-chegado.

Falaram a sós largo espaço. O que disseram nenhum monge pôde perceber; mas notaram que o abade ao retirar-se trazia os olhos arrasados de lágrimas. O cavaleiro con servava-se encostado à coluna sem movimento, semelhante ao cadáver que jazia no féretro colocado no meio do templo.

Passou uma hora. A noite tinha descido. A luz variegada das vidraças não se repintava já nas alvas lajens do pavimento. Fr. Hilarião, acabadas as orações, chamara para junto de si os monges, a quem ordenou o que quer que fosse. Alguns saíram mas não tardaram a voltar, os outros tornaram aos seus estalos ou sedes, onde assentados cabisbaixos e de braços cruzados pareciam, no volver de quando em quando a cabeça para o cruzeiro, esperar algum acontecimento extraordinário.

No âmbito da igreja silenciosa ouvia-se apenas o respirar constrangido e violento do recém-vindo, e às vezes o crepitar das tochas que ardiam ao redor da tumba.

Este silêncio, porém, quebrou-o um tropear lento de cavalos soando do lado da galilé ou alpendrada que rodeava exteriormente o edifício, e que segundo o costume da época servia de cemitério ao mosteiro. O ruído aproximava-se cada vez mais, até que finalmente parou junto das portas abertas ainda de par em par.

Uma dona com a cabeça coberta de um véu branco, seguida de um pajem que trajava as cores do alferes-mor Garcia Bermudes, entrou, e chegando ao meio da nave principal correu com os olhos aquelas arcarias: a igreja parecia deserta, e apenas o habitador do féretro que ela via perto de si esperava solitário o instante em que o deitassem no seu leito de pedra. Uma lâmpada baça pendente sobre o altar-mor dava uma claridade moribunda, que se perdia no ambiente, e não deixava enxergar através dos cancelos os monges, vestidos de cogulas negras, que se conservavam assentados nos seus estalos em completa imobilidade.

Inútil é dizer ao leitor quem era a dona que entrara: ele o adivinhou já. Dulce obedecera à mensagem de seu marido e senhor sem alegria e sem mágoa, sem confiança e sem receio, sem querer recordar-se do passado, sem pensar no futuro. A sua alma tinha-se abstraído da vida: as suas acções eram uma espécie de sonambulismo, ou antes os movimentos involuntários de um cadáver galvanizado. A solidão da igreja, os medos da noite, a presença de um morto não acharam já naquele coração triturado um sentimento de terror que despertassem. Voltou-se para o pajem e com voz sossegada disse-lhe:

— Meu senhor ainda não veio. Ide esperá-lo lá fora, e quando chegar dizei-lhe que Dulce cumpriu à risca, sem réplica e sem tardança, a sua mensagem. Ele foi quem tão-somente se demorou.

E o pajem saiu; e Dulce ficou em pé, com os braços pendentes e os olhos fitos na tumba: os seus joelhos não se dobravam, porque o orar não lhe traria a consolação. Nas desditas comuns da existência o espírito busca a Deus; mas a suma desventura é ímpia e incrédula, mais que a plena felicidade.

Também ser-lhe-ia impossível orar. Ouviu uns passos que davam nas lajens um som metálico. O recém-vindo encaminhava-se para ali vagarosamente. Dulce não mostrou um só indício de susto: despregou os olhos do féretro e cravou-os no desconhecido, com semblante sereno.

O cavaleiro chegou ao pé da nobre dama. Ela sentiu a sua luva de ferro segurar-lhe o braço; mas a mão que o segurava não sentiu esse braço tremer. Conduziu-a até à borda da tumba, e parando apontou para esta.

— Dorme o sono do verdadeiro repouso - disse Dulce sorrindo. - Quem me dera dormi-lo também! Mas para que me trazeis aqui? Quem sois vós que vos atreveis a pôr mãos na mulher do alferes-mor de Portugal, que espera no lugar por ele aprazado a vinda de seu marido?

— Eterno que fosse o teu esperar seria inútil - respondeu o cavaleiro. - Ele te precedeu aqui. Fui eu que o guiei; eu que em nome dele chamei sua mulher; eu que os quero ver unidos. Eis quem eu sou; eis onde ele está.

E, puxando com força o pano negro da tumba, o cadáver de Garcia Bermudes com a sobreveste ainda ensanguentada, e com os olhos baços ferozmente abertos, apareceu diante de Dulce.

A desgraçada contemplou-o por alguns instantes; depois fitou a vista no cavaleiro: duas lágrimas caíam-lhe em fio pelas faces. Insensivelmente ajoelhou com a cabeça encostada ao féretro, e o murmúrio que sussurrava nos seus lábios era semelhante ao ciciar de ténue aragem passando na seara madura. Orava enfim: o sentimento de piedoso dever sobrevivia ainda naquele coração, aparentemente morto para todos os afectos. No gesto demudado do cavaleiro lampejou furor infernal ao ver Dulce naquela postura, ao ouvir as orações que murmurava. Segurou-lhe de novo o braço tentando erguê-la, mas Dulce alçou de novo os olhos para ele, e disse-lhe com voz branda e meiga:

— Egas, porque não rezais também por Garcia Bermudes? Era um nobre e generoso cavaleiro aquele que o destino quis fosse meu senhor e marido. Morreu defendendo sua rainha: Deus há-de amercear-se dele, se vós lhe perdoardes como eu lhe perdoo o mal que involuntariamente nos fez, a desventura de que teceu os dias da nossa vida.

— Nem eu lhe perdoo, nem Deus se amerceará dele - atalhou o cavaleiro com um sorriso atroz. - Não! Para ele não há céu nem esperança. Morreu impenitente e maldito. Digo-to eu que o matei. Ouves, mulher de Garcia? Fui eu que o matei! Era uma lide medonha! medonha! Jogávamos alma e corpo. Quando um golpe me rompia as armas, eu sentia o seu ódio implacável viver ainda no gume do ferro que me sulcava os membros: ele devia sentir viver-me ódio nos fios da minha acha de armas. Teu marido, mulher do estrangeiro, perdeu o lanço: vacilou e caiu. Não me peças que ajoelhe agora: ajoelhei então sobre o peito dele que arquejava... Foi para o assassinar! Era um ajuste entre nós... ajuste feito sem palavras; porque de palavras não se precisava aí. Viúva do aragonês, amaldiçoa o assassino de teu marido, e não rezes pelo condenado: as portas do inferno não se abrem com orações. Trocou o leito do noivado pelo dos tormentos eternos aquele a quem te prostituíste: deixa-o lá repousar, e não mistures um pensamento do céu na abominação da nossa existência.

O respirar de Dulce era agitado, e o rubor febril tingiu-lhe as faces enquanto o cavaleiro falou; depois empalideceu pouco a pouco, e em tom quase imperceptível respondeu:

— Deus te recompense, Egas, pelo bem que me fizeste com essas palavras! A tua imagem estava gravada na minha alma pura, santa, formosa: era um laço indissolúvel, o último laço que a prendia ao meu negro viver. Debaixo da lousa não podia vê-la e adorá-la, porque lá o dormir não tem sonhos. Turbaste essa imagem com o lodo de um assassínio; com a tua primeira covardia. Posso agora morrer. Só te peço que te afastes para te eu não ouvir nem ver... Deixa-me expirar abraçada com a memória do passado, com a lembrança do nosso amor inocente; deixa-me até ao fim amar o meu Egas; deixa-me esquecer de ti, que não és já ele! Egas, meu querido Egas... afasta daqui este homem vil e perverso, que ousa dar à tua Dulce o nome de mulher perdida!... Vem... oh, vem... meu Egas!

E a mal-aventurada, delirante já, estendia os braços para a imagem de Egas, que ela via diferente do que tinha ante si. Era o seu anjo-da-guarda que se librava nas asas de fogo para guiar aquele espírito tão belo e meigo a refrigerar-se de tantos martírios no oceano das consolações eternas.

— Oh, tu amas-me ainda! - bradou o cavaleiro com alegria frenética e selvagem. - Bem! Levantar-se-á uma barreira de bronze entre mim e ti, que aniquile o derradeiro clarão da esperança, se me conheces tão mal, que ainda na alma te possa restar um vestígio de esperança. Morrer! Tens razão! Aminha amante poluída não pode ficar na Terra. O sepulcro é o crisol que te há-de tornar pura. Morre, que eu te seguirei em breve.

Estas últimas palavras restrugiram como um dobre nos ouvidos de Dulce. O cavaleiro afastou-se rapidamente, e chegando ao cruzeiro gritou:

— Eis-me aqui, meus irmãos!

O altar-mor iluminou-se de súbito: os monges saíram dos seus estalos onde pareciam adormecidos. Aquelas duas fitas negras ondearam movendo-se para os cancelos abertos de par em par. O cavaleiro entrou e, por meio das duas fileiras de frades, aproximou-se do altar, junto do qual o velho abade rezava as orações marcadas no ritual beneditino para uma profissão monástica.

Acabadas estas, o órgão rompeu umas toadas tristes, e os coros de monges rezaram sucessivamente os sete salmos penitenciais.

Depois seguiram-se mais orações murmuradas com voz débil por Fr. Hilarião sobre a cabeça de Egas curvado ao pé do altar.

E no fim delas um monge tomou da credência uma cogula, enquanto o abade arrancava ao cavaleiro a sobreveste branca franjada de ouro, enodoada ainda do sangue dele e do sangue de Garcia Bermudes. Anegra cogula a substituiu então caindo como um sudário sobre a cabeça do noviço. O som do órgão havia cessado.

Mas um grito agudo e rápido e um pequeno baque no pavimento da igreja soaram como duas notas mais tardias daquelas tristíssimas toadas. O anjo-da-guarda de Dulce voava para o céu através das solidões do espaço: uma alma o acompanhava.

No outro dia sepultavam-se em duas sepulturas diversas na galilé do Mosteiro de D. Muma o alferes-mor da rainha D. Teresa e sua nobre esposa a herdeira dos Bravais, que expirara de dor, segundo se dizia, ao pé do féretro de seu ilustre e valente marido, morto na batalha do campo de S. Mamede.

Gonçalo Mendes da Maia, tenente por Afonso Henriques do Castelo de Guimarães, e o abade de S. Salvador assim o haviam ordenado, separando na morte aqueles que a bênção do sacerdote tinha unido para sempre na vida.

Foi um pequeno escândalo em que as beatas do burgo falaram muito, com variados comentários.

Um noviço do mosteiro, que ninguém conhecia, apareceu morto ao romper da alva do terceiro dia sobre a lousa da sepultura de Dulce. Na face da pedra tinha escrito duas compridas trovas, que um monge curioso copiou num pergaminho que guardou no cartulário do mosteiro, onde ainda no décimo sexto século se conservava. Quem as quiser ler procure-as na Miscelânea de Miguel Leitão de Andrade.

Foi caso em que todos cismaram.

Provavelmente o leitor deseja saber o que foi feito de Dom Bibas, e das mais personagens desta importantíssima e mui verdadeira história. Dir-lho-emos em breves palavras.

A rainha e Fernando Peres, do Castelo de Lanhoso, aonde se haviam acolhido, se deram a partido ao infante, que aí os tinha cercado. D. Teresa apenas sobreviveu dois anos, e o conde regressou a Galiza ao solar de Trava, que herdara de seu pai.

Dom Bibas reconquistou a paz de espírito com o gosto da vingança; e ainda por muitos anos alegrou os saraus de seu senhor D. Afonso. Morreu velho, deixando o importante cargo que exercitava aos dois célebres truões de D. Sancho I, Bonamis e Acompaniado.

Gonçalo Mendes tornou-se cada vez mais famoso por inauditas façanhas contra a mourisma, até que expirou às mãos dos Sarracenos no recontro de Beja, como já de outra vez vos havemos contado [3].

O reverendo Martim Eicha voltou para a Sé de Lamego, porque ninguém fez mais caso dele na corte, nem para bem, nem para mal. Lá comeu, bebeu, dormiu, rezou - umas vezes pelo Alcorão, outras pelo breviário.

O bom de Fr. Hilarião foi apagando como pôde, nos lautos banquetes de Afonso Henriques, as saudades de Egas; mas as diligências que fazia para esquecer a sua mágoa custaram-lhe a vida. Morreu de uma indigestão de dobrada, como alguns anos antes morrera o gordo bispo de Santiago, o venerável Hermegildo.

Deus se lembre de suas almas.

Notas editar

  1. Em todas as circumstancias d’esta cerimonia religiosa seguimos rigorosa e textualmente o ritual de Silos de 1050, publicado por Berganza.
  2. Em 1852 o tumulo de D. Affonso I em Santa Cruz de Coimbra foi aberto, e pessoa que assistiu a esse acto, ou pelo menos ainda pôde examinar a ossada do nosso primeiro rei, me asseverou que esses ossos eram de dimensão extraordinaria.
  3. A morte do LidadorLendas e narrativas, T. 2.