Tudo esqueceria na edificação de um castelo do século XI ou XII menos um bom e sólido cárcere, com troneiras bem estreitas e engradadas de grossas barras de ferro. Às vezes os aposentos eram mal reparados contra as injúrias das estações e os muros débeis e pouco vigiados; mas a masmorra sumida debaixo de torre maciça, escassamente alumiada, com seus alçapões de grosso carvalho, suas entradas ocultas, por onde em muitas ocasiões os nobres alcaides e senhores iam, não sentidos, praticar as atrocidades que se lêem nas memórias daquela época, e a que ordinariamente dava origem a vingança ou a cobiça; esse aposento de angústia, dizemos, nunca deixava de ser construído com primor. O cárcere do castelo era quase sempre uma propriedade mais valiosa e produtiva que todas as terras, vilas, herdades e direitos anexos àqueles ninhos de pequenos tiranos: era uma espécie de laboratório de alquimia verdadeira, onde a pobreza de judeu, jurada e tresjurada pela toura, se convertia em chuva áurea; os argais ou trouxas dos bufarinheiros ingleses ou italianos se derretiam como se fossem de cera, e aquelas abóbadas, frias e húmidas, fossem de metal candente e até os alforges do devoto monge ou do venerável clérigo se convertiam em escarcela bem provida de gastador prestameiro. As prisões dos lugares afortalezados que coroavam diferentes cabeços de Galiza e Portugal eram uma espécie de providência que, em casos apertados, acudia milagrosamente aos donos ou tenentes desses lugares, quando os concelhos vizinhos sabiam defender as suas tulhas e adegas, ou os acostados do fidalgo casteleiro murmuravam por falta das soldadas, ameaçando abandoná-lo indefenso à revindicta dos outros nobres com quem trazia guerra de homizio.
Devemos crer, ao menos piamente, que o conde Henrique, na época em que alevantou o Castelo de Guimarães, não lançou nos fundamentos do seu edifício soberbo um cárcere seguro e vasto com os intuitos de rapina que guiavam o comum dos senhores nestas tristes edificações. Ainda que algum documentinho de má morte provasse o contrário cumpria-nos pô-lo no escuro, ou contestar-lhe francamente a autenticidade, porque o conde foi o fundador da monarquia, e a monarquia desfunda-se uma vez que tal cousa se admita. Assim é que se há-de escrever a história, e quem não o fizer por este gosto, evidente é que pode tratar de outro ofício.
Fossem, porém, quais fossem os motivos do conde, o certo é que não lhe esquecera o construir nas raízes daquelas torres e muralhas uma forte masmorra, cujo pavimento ficava inferior ao fundo do fosso lançado entre as barbacãs e as quadrelas do muro. Este lugar húmido e malsão apenas recebia a ténue claridade de duas troneiras que davam para a cárcova. Dentro, uma escada de pedra fechada no alto com um alçapão chapeado de ferro conduzia à escada superior da torre. Ao lado via-se um potro, do qual estavam pendurados alguns tagantes ou açoutes de couro cru, cordas e mais aparelhos de tratos. Defronte uma polé pendente de grossa argola cravada na abóbada, e distante apenas da parede dois ou três palmos, oscilava quase imperceptivelmente com os golpes de vento que murmuravam pelas altas frestas ou troneiras. De um pilar grosseiramente afeiçoado, que sustinha ao meio da quadra o fecho da abóbada, saíam alguns grilhões ferrugentos, chumbados na pedra. Estes grilhões eram, como uma sangria em caso de apoplexia fulminante o é na medicina, um luxo de ciência de carcereiro, ou antes um pleonasmo mais intolerável que todos aqueles que costumam votar à execração pública os gramáticos e retóricos. Cadeias em tão seguro cárcere eram absolutamente inúteis, e de feito bem se mostrava que ali tinham sido postas como simples adereço e casquilharia de terror.
Um largo poial encostado ao pilar e coberto de uma pouca de palha meia podre formava, com os instrumentos de martírio, todo o adorno da masmorra. Deviam contentar-se desse escabelo para se assentarem, desse leito para dormirem, os habitantes desta melancólica morada. E com razão: onde o exercício dos membros só podia ser feito nas dores e angústias dos tratos, era leito de repouso a lajem fria do poial, e a palha já fétida, que o cobria, fofo almadraque de penas.
Um cavaleiro, cuja qualidade se conhecia pelas esporas douradas, que ainda conservava afiveladas sobre os balegões, e pelo cinto de prata que lhe apertava o brial, estava aí assentado. Parecia cogitar profundamente. Quedo, com os cotovelos firmados sobre os joelhos e as faces entre os punhos, o vento, que redemoinhava pela espaçosa quadra, ondeando-lhe os cabelos desordenados lhe fazia cair sobre o rosto algumas madeixas que lho encobriam. Um soluçar comprimido era o único sinal de vida que se lhe percebia: no mais, a sua imobilidade assemelhava-se à de um cadáver.
O Sol inclinava-se para o poente. Os seus raios dourados roçando pela borda do fosso vinham, através de uma das troneiras, pintar um pequeno círculo avermelhado no pavimento da masmorra aos pés do preso, em cujo rosto batia a claridade pálida refrangida da lajem branca. A luz do dia, ao desaparecer, como que se dobrava para afagar e beijar o desgraçado, que talvez não a tornaria a ver. Dir-se-ia que os raios do Sol se prendiam aos cabelos louros do mancebo onde folgavam cintilando trémulos, e que pediam àqueles olhos mortais e meio cerrados o último olhar de saudade com que o homem costuma despedir-se do astro esplêndido, quando ele se vai mergulhando na extremidade do horizonte.
E parecia que esta linguagem misteriosa achava no coração do cavaleiro uma dessas harmonias inexplicáveis que Deus estabeleceu entre a natureza e o homem no grande concerto do universo. Afastou os cabelos da fronte: depois pôs os olhos no sol, e um sorriso quase imperceptível lhe fulgurou através do véu de melancolia profunda que se lhe estendia sobre as faces, como através do sudário delgado unido a um corpo morto parece às vezes haver um rápido movimento de vida, que cessa no mesmo instante em que a vista pretende fixar essa ilusão passageira.
O mancebo alevantou-se, cruzou os braços e ficou por algum tempo com os olhos fitos na troneira iluminada. Finalmente levou a mão à fronte, e os seus passos vagarosos soaram de um para o outro lado do calabouço. Pouco a pouco os lábios agitaram-se-lhe como a superfície do mar que se encrespa aos primeiros sopros da procela. A tempestade acumulada naquela alma rebentou por fim dolorosa e terrível:
— Oh! - exclamou ele - como a vida é rápida e ao mesmo tempo eterna para o que sabe que vai morrer! Eternidade pelo infinito dos pensamentos que passam tumultuosos no espírito do condenado; rapidez pela ligeireza com que para ele se encaminha a hora tremenda! E que importa? Aqui entre injúrias, como um vil criminoso; no Oriente, misturando o sangue com a terra que bebeu o do Salvador, lá fora dessas muralhas, em nobre lide de cavaleiros; tudo é morrer! Que importa?... - E depois com um brado de agonia como respondendo a si mesmo: - Muito, muito! porque amo; porque a vida é doce para mim por ela! porque a morte ignominiosa é ignomínia para a amante do homem que expirou em suplício infame. Um cavalo e uma espada! Que me dêem um cavalo e uma espada, e depois dez, vinte, cem guerreiros que me acometam, que me despedacem ferindo-me a um tempo! Cairei com honra! Dirão dela: "Eis a que amava um cavaleiro de esforço que bem soube morrer!..." Ao menos assassinai-me aqui!... nos tratos... como vos aprouver... mas não mancheis de opróbrio a minha hora derradeira!... Infante de Portugal, infante de Portugal! vem salvar-me! olha que querem cobrir de infâmia o teu Egas!
E Egas, porque era ele, parecia aspirar o ruído longínquo dos ginetes de Afonso Henriques precipitando-se para os muros de Guimarães; mas nos seus ouvidos apenas sussurrava aquele zumbido duvidoso que se crê escutar no meio de completo silêncio. Então atirou consigo de novo ao poial, e alevantou os punhos cerrados para o céu com um gesto indizível de desesperação. Depois os braços descaíram-lhe, a fronte pendeu-lhe sobre o peito, e as lágrimas que revia o seu coração, queimadas pelo fogo que lhe lavrava lá dentro, secaram de todo. Uma lembrança suave de amor convertera a agitação da amargura na triste e ainda mais dolorosa tranquilidade do desalento.
— Dulce, Dulce, nunca mais te verei! - murmurou o mancebo. - Se ao menos pudesse dizer-te que te amei leal e puro até o meu último dia, e que este amanheceu porque viu cumprir, como cumpri todas, a minha derradeira promessa! Se eu pudesse antes de deixar a Terra antever o céu a teus pés!... Mas entre ti e mim estão estas pesadas abóbadas, que me esmagam o coração; e a minha voz não as pode romper para te chamar, para te repetir mil vezes que morro porque te amava como mulher nenhuma foi amada! Dulce, Dulce, nunca mais te verei!
E o desditoso, caindo de bruços sobre a palha imunda e fétida do calabouço, arquejava violentamente.
Naquela postura, exaustas as forças da alma, o trovador se conservou horas largas. À vista dos homens, ele saberia esconder o seu delírio e morrer com firmeza, mas, na solidão, a saudade de uma existência cheia de amor e de esperanças, a vergonha de suplício afrontoso, e o temor da morte lhe não consentiam velar-se diante de si próprio com a máscara que a vaidade e o orgulho põem na face humana ainda nas mais terríveis situações, para que a vida seja uma contínua farsa, da qual o coração é o actor mentiroso desde o berço até ao sepulcro.
Tinha anoitecido, e o silêncio continuava profundo: a frouxa claridade das estrelas não penetrava no cárcere cujas trevas eram densas, cuja atmosfera era grossa e húmida no meio da secura de um ardente mês de Junho. Cevando-se na amargura, o senso íntimo de Egas reconcentrara na dor toda a sua energia, e este devorar-se a si próprio era ajudado pelo repouso dos sentidos externos, inúteis para o pobre preso na sua imobilidade e no silêncio e escuridão que o rodeava.
Daí a pouco, porém, uma toada longínqua de harpas, doçainas e saltérios sussurrou a espaços trazida nas lufadas do vento. Insensivelmente o trovador pôs-se a escutá-la, e sentiu correr-lhe nas veias, que pulsavam ardentes, um frescor que refrigerava. A melodia que se ouve ao longe na solidão nocturna é como bênção de Deus para o infeliz, porque é consoladora e santa. Quando aqueles sons vibravam mais distintos, Egas sentia dentro da alma uma certa voluptuosidade na dor, e a imaginação lhe pintava a imagem de Dulce como visão aérea que descia ao horrível calabouço, trajando alvas roupas, cingida a fronte de cecéns virginais, e que apertando-o ao seio o arrebatava no meio de hinos dos anjos para as delícias eternas da pátria do verdadeiro repouso. Era um sonho febril o seu; mas havia nele um êxtase indizível que lhe apagava da memória a situação em que viera lançar-se. Enfim, a toada cessou, e o cavaleiro caiu de chofre na realidade. Esse tombar repentino do céu no abismo fez-lhe manar sangue de todas as feridas do coração. O vento sussurrava ainda; porém o seu agreste sibilar só lhe fazia lembrar o ruído do verme que no cemitério devia lentamente devorar os membros do justiçado.
E então ele despedaçava entre as mãos confrangidas os punhados daquela palha húmida do seu leito de pedra; e os dentes rangiam-lhe em longo espasmo, que terminava por suor frio manando-lhe em bagas da fronte.
Quantas vezes ele na sua desesperação acusaria a Providência por o haver tornado o maior dos infelizes! E contudo uma agonia que valera por todas as outras ainda não viera roer-lhe o coração. As toadas que haviam alegrado por algum tempo a noite da sua alma partiam das salas iluminadas dos paços, onde em banquete esplêndido o conde e a rainha celebravam as bodas da real pupila e herdeira dos Bravais com Garcia Bermudes, o nobre alferes-mor de Portugal. E ele não o sabia!
O som dos instrumentos começara a ouvir-se de novo, quando por cima daquelas melodias vibraram brados agudos mas longínquos, que pareciam o grito de alarma de esculcas que se punham sucessivamente de sobreaviso. Estes brados aproximavam-se cada vez mais, até que restrugiram nas barbacãs, depois nos andaimos das quadrelas, depois nos eirados das torres. Repetidos por muitas vozes, conglobados numa grita confusa e indistinta, formavam um ruído medonho, mas, para o cavaleiro que maquinalmente se pusera a escutá-los, ininteligível.
Para alguém, todavia, a significação deste bradar fora bem clara e distinta. Uma almenara se acendeu subitamente no cimo da torre alvarrã, e pouco tardou que as outras torres lhe correspondessem acendendo as suas. O trovador não as via; mas a luz avermelhada dos fachos resinosos, jorrando do alto, caiu obliquamente no fundo encharcado do fosso e reflectiu-se pelas troneiras na abóbada da masmorra. Do meio das trevas, recalcadas por essa claridade frouxa para o pavimento da quadra, Egas distinguia a argola brilhante da polé, semelhante ao olho reluzente de um demónio, que mirava atento o pobre cativo como se lidasse por enxergá-lo nas trevas.
De repente uma estrupida de cavalos, um tinir de espadas roçando por armaduras, a princípio de poucos, depois de mais, depois de muitos, veio distrair a atenção do trovador que, fascinado por aquele olhar maldito da polé, não despregava dela a vista. Este novo ruído soava da banda do portal do castelo, e à luz triste das almenaras Egas viu passar como sombras além do fosso um fio de cavaleiros, que despegando ao que parecia da ponte levadiça se dirigiam ao burgo. Era uma cena rápida e fantástica o coriscar contínuo e fugitivo dos capelos de ferro e das lanças aprumadas, e o desaparecer dos meios corpos dos homens de armas, que a aresta da cárcova apenas deixava descortinar. Aquela linha de vultos negros e lampejantes precipitava-se para as barbacãs.
Uma esperança duvidosa alumiou então a alma do cavaleiro. O bradar das atalaias, o repentino arrojo dos homens de guerra anunciavam um perigo iminente; e que outro seria este perigo que não fosse a aproximação do infante?... Pela mente de Egas passou uma ideia refrigerante de liberdade e de vida. Alevantou as mãos ao céu, e as lágrimas lhe borbulharam dos olhos, até aí enxutos, ao murmurarem seus lábios: "Meu Deus, tu podes salvar-me! Salva-me, se não da morte, ao menos da ignomínia."
Mas quando se lembrou de que a noite correria sem combate, enquanto talvez não passasse sem que o desejo de vingança atroz se realizasse; quando reflectiu que o receio dos esculcas porventura fora vão, e que até mil outros sucessos podiam dar motivo àquela revolta, a ideia de salvação desfez-se de novo no espírito do prisioneiro, que um momento vacilara na certeza do suplício.
Encostando-se outra vez na sua dura jazida, Egas sentiu alongar-se a estrupida dos cavaleiros e voltar tudo gradualmente ao anterior silêncio, no meio do qual a claridade das altas almenaras, refrangida nas guardas da cárcova, penetrava no calabouço, como em igreja deserta os raios da luz das tochas penetram pelas juntas mal unidas do ataúde à roda do qual ardem os brandões gigantes. Às vezes dentro do ataúde há ainda vida, como a havia no negro calabouço; mas o que aí faltava, como na tumba da igreja, era um raio de esperança.
Passara mais de uma hora. A calada da noite fora apenas interrompida por algum raro correr de ginete atravessando a ponte levadiça, e pelo sussurro do falar e mover de muitos homens para o lado do burgo; sussurro quase imperceptível, mas que às vezes estrepitava como um trovejar ao longe. Então o cavaleiro escutava aquele som confuso como o enfermo que se revolve em seu leito e crê achar alívio nessa mudança de situação.
Foi numa destas ocasiões, em que o remoto ruído suão era mais perceptível, que uma pequena porta sumida em um canto obscuro do cárcere começou a abrir-se mansamente, e deu passagem a alguém que descia para aquele tenebroso aposento.
Era um vulto de mulher. Alvejavam-lhe as roupas flutuantes à luz de uma tocha que trazia na mão, e os seus passos, posto que rápidos, pareciam vacilar descendo àquela espécie de voragem. Cingia-lhe a cabeça uma grinalda de flores e trajava as galas todas de uma noite de sarau; mas as suas faces eram pálidas como as da virgem morta que, também engrinaldada a fronte, deitam no seu ataúde.
Já tinha dado alguns passos na vasta quadra, quando o trovador, cujo olhar fora atraído pelo clarão da tocha, bradou com um grito de alegria e pasmo impossível de descrever:
— Dulce!
Era ela de feito.
O prisioneiro correu para a donzela e exclamou com voz afogada:
— Oh minha Dulce!... Deus ouviu-me... quis que ainda uma vez te visse na Terra... quis suavizar-me este longo morrer!
— Não morrerás! - interrompeu Dulce. - Estás livre! O infante avizinha-se: cavaleiros, besteiros e peões cobrem os andaimos das barbacãs; e a rainha quer salvar-te. A porta oculta deste horrível cárcere está para ti aberta. As minhas lágrimas obtiveram dela a chave, que morrendo lhe entregou o conde D. Henrique. Só de mim ela fiara o segredo de que existia este caminho secreto. Fernando Peres o ignora. Ele já saiu para o burgo, e a rainha o seguirá em breve, porque o conde a arrasta consigo para testemunha do sangue que amanhã deve correr. No meio do tumulto poderás sair de Guimarães: o teu pajem também já livre te espera com um ginete... Parte... oh, parte, sem demora.
— Partiremos ambos - replicou o cavaleiro. - Não esquecerias um palafrém para ti, uma espada para mim. Eu e tu temos de cumprir nosso juramento.
— Egas - respondeu a donzela tristemente e redobrando-se-lhe a palidez -, o que exiges é impossível... impossível, porque o Sol que breve há-de romper alumiará um campo de batalha. Podes tu recordar-te de nossos juramentos quando diante de nós está um lago de sangue?
— E que importa? Além desse mar de sangue que dizes haverá paz para ti, e por entre inimigos e amigos eu te farei passar além dele. Então basta-me uma hora, e saldarei todas as minhas dívidas.
— O que exiges, repito, é impossível! - tornou Dulce com a energia tranquila de profunda desesperação. - Nestes paços eu ficarei segura... Depois... Se tu soubesses... oh, nada!... absolutamente nada... Sou eu que não sei o que digo... Por Deus, que partas!... Um instante pode perder-nos.
— Partirei, e já - acudiu o cavaleiro dando alguns passos e fitando os olhos em Dulce, que se assemelhava a uma estátua de mármore -, mas tu partirás comigo, porque eu jurei salvar-te, e tu juraste seguir-me.
— Tem piedade de mim, Egas! - murmurou a donzela erguendo as mãos.
— Vem! - foi a resposta que ele proferiu com o tom de uma resolução inabalável, segurando o braço de Dulce e pondo o pé no primeiro degrau da escada secreta.
De repente a palidez da donzela converteu-se em vivo rubor. A timidez desapareceu dos seus olhos, que brilharam febris, e, soltando-se da mão de Egas, lhe disse em tom dolorosamente severo:
— Afasta-te! Vedado te é o tocar-me.
O cavaleiro recuou espantado, cruzou os braços, e contemplou-a por alguns instantes em silêncio.
— Entendo-te! - exclamou ele com um acento em que se misturavam mil afectos opostos. - Não queres pôr à prova a lealdade de um homem que tudo arriscou por ti, que por ti só vivia, que por ti ia morrer em suplício infame!... Que era, pois, o teu amor, donzela? Passatempo e engano! Alguém mentia ainda há pouco, dizendo que hoje me seguiria, alguém escarnecia o meu amor, porque vendera sua inocência ao estrangeiro, e talvez me vendeu a mim! Dulce, quem disse ao conde de Trava que ontem estive aqui?
— Bárbaro, que afrontas a desventura! - replicou Dulce, cujas faces de novo haviam descorado. - Saberás tudo, já que assim Deus o quis... Poucos dias me restam; mas esses não os quero viver caluniada e desprezada por ti... Foi no meio de um banquete de noivado, quando as taças cintilavam erguidas, e as suspeitas carregavam o semblante do cavaleiro que devia estar mais alegre, e o coração da mulher que as outras invejavam estalava de dor; foi então que se ouviu correr pelas torres e atalaias o grito de "inimigos!"; foi ao soar das trombetas, e ao desaparecerem os cavaleiros como relâmpagos, que a mulher, cujo coração estalava de dor, se achou só... Era a noiva: o esposo também partira. Então a desgraçada correu a lançar-se aos pés da rainha e obteve a tua liberdade... Sabes quem era esta noiva?... Adivinhaste-o já. Tive de escolher entre a tua morte e ser mulher de Garcia. Não hesitei. E, todavia, eu era burlada: e tu devias morrer... Agora aqui estou... Vem, se queres... Fugirás com uma adúltera!... com uma adúltera... Será esse o nome que o mundo escreverá na fronte daquela que tanto amaste!
Egas ficou imóvel olhando para ela desorientado. Depois estendendo as mãos e recuando ainda mais, bradou com um gesto de horror:
— Perdição eterna para mim! Perdição para ti, que me assassinaste!
Dulce considerou calada por um momento aquele horrível delírio. Trémula e cheia de terror caiu por terra murmurando entre lágrimas:
— Egas, perdoa-me o ter-te salvado! Por tua mãe, pelo nosso amor, que foi tão puro, oh, não me odeies. Quem sabe?!... ante nós está a mocidade e o futuro... Foge... salva-te, que ainda é tempo!
O cavaleiro, porém, conservando os braços estendidos e hirtos, voltou a face e respondeu furioso:
— Arreda-te, mulher do estrangeiro! Que pretendes de um condenado? Deixa-me descer ao inferno sem me perseguir até lá!... Fugir! oh, eu fugir?!
E ria com rir medonho.
Dulce arrastou-se para ele soluçando.
— Vai-te - prosseguiu o trovador; e afastando-se até ao primeiro degrau da escada que dava para o alçapão ferrado da masmorra, e levantando a voz: - Carcereiros, levem esta mulher sem pudor, que vem tentar um moribundo na hora solene do passamento!
— Tudo por ti, menos a infâmia - interrompeu Dulce, com resolução sobre-humana, pegando na tocha que ardia no chão e retirando-se para a porta oculta. - Morrerás... mas eu não tardarei após ti... Num mundo melhor tu me farás justiça!...
Não pôde dizer mais nada, e desapareceu no vão escuro da porta, que se fechou atrás dela. Um grito doloroso foi o que então se ouviu; e depois profundo silêncio. Os joelhos de Egas curvaram-se debaixo dele, e encostou-se arquejando sobre os degraus da escada. Tinha acabado tudo para o desgraçado. Daria a alma aos demónios para ver diante de si Garcia Bermudes naquele momento, porque sentia devorá-lo a raiva de um tigre. O sangue do seu rival fora um refrigério para a febre que o consumia. A sua existência era um pesadelo monstruoso, um caos de dor e desesperação. Com os punhos cerrados, ameaçando o céu, bradou:
— Providência... mentira! Então, como aterrado da blasfémia, cobriu o rosto com as mãos e murmurou: - Perdão, meu Deus! - As lágrimas rompiam-lhe violentas. Um instante mais que elas tardassem aquele coração teria deixado de bater para sempre.
Poucos minutos, porém, haviam passado quando um ruído de cadeias, acompanhado de ranger de quícios, soou por cima da cabeça do cavaleiro. Maquinalmente ele alçou a cabeça: o pesado alçapão de carvalho chapeado de ferro alevantava-se lentamente e, quando rodou de todo, a luz brilhante de dois fachos jorrou pela escada e alumiou parte da masmorra. Dois homens de armas estavam no alto da escada com os fachos nas mãos, e um monge negro, que aparecia no meio deles, começou a descer a escada. O trovador pôs-se em pé e, estremecendo involuntariamente, recuou. O monge com o rosto sumido no capuz, e movendo-se compassadamente, era uma aparição sinistra.
Apenas este pôs os pés no pavimento do cárcere, fez sinal aos dois homens de armas que se retirassem, e dirigiu-se ao preso. Cruzando as mãos sobre o peito e curvando a cabeça, disse com uma voz grossa e contrafeita:
— Dom inus salvationem nostratibus et caetera.
— Quem sois vós? Que me quereis? - perguntou o preso, que se afastara sumindo-se na escuridão do cárcere, onde não batia a luz dos fachos.
— O nobre conde de Trava mandou chamar ao Mosteiro de S. Salvador um sacerdote que absolvesse um homem que devia morrer breve. Recebi eu a mensagem e vim exercitar essa obra de caridade. Creio que sois vós que figurareis no auto. Ouvirei vossa confissão quando vos aprouver, meu irmão!
Isto disse o monge com tom solene e em voz alta, de modo que fosse ouvido dos dois homens de armas que se iam retirando. Aproximou-se ao mesmo tempo do cavaleiro e segurando-lhe o braço o conduziu para ao pé de uma das troneiras, por onde entrava o clarão baço das almenaras. A luz dos fachos tinha desapare cido.
O frade recuou o capuz e, mudando repentinamente o metal de voz grossa em aflautada, prosseguiu:
— Não me conheces, Egas? Não te lembras de Dom Bibas, do jogral galiardo, com quem brincavas na tua infância? Ingrato, que te esqueceste de mim.
— Chocarreiro, para que vens aparecer-me neste transe tremendo? - interrompeu o trovador. - Porque vens misturar a risada do maninelo com os derradeiros arrancos do moribundo?
— Venho salvar-te, homem! - replicou o bobo. - Rir-me?! O rir já não é para mim!
— Nem tu o podes, nem eu o quero - respondeu o cavaleiro. - Tens acaso força de quebrar estes ferros? Tenho eu que fazer da vida? O meu futuro acabou.
— Cavaleiro namorado, bem sei que tua dama é já de outrem! - insistiu o bobo. - Mas não achas uma ideia grande de que te alimentes ainda? Um destino a satisfazer? Um nobre feito a prosseguir? Também para mim, nesta vida risonha e folgada de bufão, houve uma hora de agonia e desesperação como a tua, e vivi! Vivi para vingar-me: para a vingança deves tu viver, se és um homem. Mal sabes que prazer é o responder com a injúria à injúria, com o martírio ao martírio! Olha: amanhã há um topar em cheio de escudos e lanças, há uma festa de sangue e matança, e o cavaleiro esforçado poderá pôr um joelho sobre os peitos do seu inimigo derrubado, e gritar-lhe aos ouvidos, apontando-lhe o punhal à garganta: "Sou eu que te mando aos infernos!" Oh, como será bom e consolador! Quisera ser forte e ser cavaleiro... Mas tu o és: tu, o abandonado, podes abrir a vala dos mortos entre o altar e o leito do noivado; converter em escárnio e mentira as bênçãos do sacerdote; ver a teus pés estorcendo-se moribundo o que assassinou a tua alma, e cuspir-lhe nas faces demudadas, e rir... desesperá-lo com o teu rir... É tudo isto o que há para ti na vida, se fugires. Se ficares, ao romper de alva subirás a uma das torres deste castelo para aí assistires mudo e quedo às façanhas do teu rival; mudo e quedo pendurado de uma corda do alto das ameias, como um judeu vil, como um feiticeiro maldito...
— Oh, não digas mais! - interrompeu o cavaleiro como embriagado e frenético pelo horror e pela vingança que respiravam as palavras, o gesto, o olhar de Dom Bibas. - Não digas mais! Tens razão, o vingar-se é o prazer supremo de um réprobo! Não aceitei dela a liberdade: aceitá-la-ei de ti... Depois... depois, Deus se compadeça de mim.
— Não há tempo a perder - prosseguiu o bobo começando a despir a cogula que trazia vestida. - Toma este hábito e sai, curvado e escondendo o rosto: os guardas não te conhecerão. Dirige-te ao pátio principal do castelo: junto à torre da esquerda é a pocilga do truão; a porta estará aberta: lá dentro, por detrás da minha pobre enxerga, é a entrada de um caminho subterrâneo, segue-o: irás sair bem perto do sítio aonde dizem que chegam os corredores do infante. O resto pertence-te a ti.
— Mas qual será a tua sorte quando na hora fatal os algozes, buscando a sua vítima, só te encontrarem a ti?! - disse o cavaleiro hesitando.
— Pensas tu que, se a cabeça me corresse algum risco, eu a exporia para te salvar? Oh que não! Também tenho a minha vingança e quero folgar depois de a ver satisfeita. Deixar-me-ão aqui: porque o conde de Trava não voltará esta noite e amanhã... oh, amanhã!... Gonçalo Mendes da Maia virá soltar-me... Sei certo que há-de vir.
E apontando para a escada, repetiu:
— Não há um momento a perder.
O cavaleiro calou-se e carregando o capuz sobre os olhos subiu a escada, e atravessando por entre os guardas, que mal olharam para ele atentos a fechar o alçapão da masmorra, saiu da torre e encaminhou-se para o sítio que o truão lhe indicara. Os terríveis pensamentos que o agitavam produziam nele uma desusada energia.
Quando o bobo se achou só, semelhante a tigre raivoso, galgou de um pulo às grades de uma das troneiras: mirou o céu por alguns momentos, e depois, deixando-se cair em pé no pavimento, bateu as palmas bradando:
— Aragonês, aí te envio o meu vingador! Conde de Trava, não tarda Gonçalo Mendes! Um castelo por vinte açoutes! O truão é mais generoso que tu. Oh, oh!...
E desatara a rir.