II

Por entre as victimas do terror que lutavam com as aguas do Capibaribe nas sombras da noite deslisou indifferente a canôa onde ia o Theodosio, assassino do soldado, que se atirára ao rio em busca dos delinquentes.

Theodosio, como os leitores hão de lembrar-se, viera só mas não voltava agora desacompanhado. José, taciturno e quieto, e Joaquim, rosnando como besta fera que indiscreto caçador irrita em escuso bosque, testemunhavam ao pé do cabra, sentados na pôpa do fugitivo lenho, com os bacamartes nas mãos, o espectaculo de afflicção e desespero; e, como si fizessem de caso pensado para denotarem a pouca conta em que tinham uma sociedade que elles dous unicamente acabavam de entregar em alguns minutos á perturbação e á dôr, pareciam affrontar com olhares insultuosos não sómente os homens mas tambem aquelle que ao fulgor das estrellas vê melhor do que os mortaes á luz do dia, e que das alturas, onde paira, distribue por todos a sua indefectivel justiça, tanto para premiar como para punir. Foi Deus o unico que conheceu os tres aventureiros, rompendo as aguas, o unico que em suas frontes manchadas do sangue e do opprobrio recente leu o passado que os condemnava e o futuro que por elles esperava para justiçal-os com a excessiva severidade que havemos de ver.

Os naufragos só trataram de salvar-se e fugir; qual se agarrasse aos mangues, então muito bastos e numerosos, que bordam o rio como ilhas de verdura, qual demandasse, a fim de escapar da inclemencia da corrente, os bancos de areia formados pelo fluxo e refluxo das marés. Ninguem cuidou mais no Cabelleira senão para se distanciar com horror crescente da sua sombra cruel, do seu vulto fatal e ominoso.

Achavam-se na ponte o pai e filho, não para serem soccorridos, como foram, pelo companheiro, mas para protegerem a sua fuga, caso fosse elle descoberto antes de haver concluido o roubo que assentaram de praticar em um dos armazens. A denuncia do matuto transtornára esta combinação pela fórma que o leitor conhece, não impedindo porém que no essencial viesse ella a verificar-se, porque, ouvindo o trovão do alarido e fazendo conta que o conflicto fôra provocado pelos amigos como meio de concentrar em um só ponto as geraes attenções a fim de deixal-o ao abrigo de qualquer sorpresa, tratára Theodosio de aproveitar o tempo com a promptidão e pericia que lhe eram habituaes em semelhante genero de occupação.

Na extremidade de uma vara fôra acinte atado um ferro adunco para facilitar o escalamento. Prendêlo na varanda do armazem, subir pela longa haste até a estiva, passar desta á janella, e saltar dentro fôra obra de um instante para o Theodosio. Em poucos minutos quinquilharias preciosas, armas de fogo, perfumarias, miudezas de toda sorte desceram por cordas em suas caixas ou pacotes para a canôa. As gavetas, primeiro que as vidraças foram violadas e revistadas, e o dinheiro que continham passára a povoar o bolso do atrevido roubador.

São tradicionaes os roubos que deste modo se praticaram na ponte do Recife por aquelles tempos e durante muitos annos depois. Segundo contam os antigos, elles reproduziram-se no começo deste seculo com tanta frequencia, que os armazens ao principio com razão cubiçados pelos commerciantes, perderam de valor, e ficariam de todo depreciados si a policia, por uma rigorosa vigilancia que lhe faz honra, não houvesse impedido a continuação destes attentados.

Quando não houve mais objecto de preço que baldear, Theodosio desceu. Era tempo. Ainda bem não tinha terminado o seu aereo trajecto, quando dous corpos surgiram d’entre ruidoso espumeiro produzido por violenta queda e passaram-se á embarcação. Eram Joaquim e José Gomes que se haviam atirado ao rio para escaparem á prisão, como vimos.

A escuridão que reinava no Capibaribe, as auras da noite e uns restos da enchente favoreceram a evasão dos navegantes. Mantendo-se a igual distancia das duas margens, o improvisado canoeiro, ao passo que se subtrahia a qualquer inspecção do lado da terra, era arrebatado com os hospedes pelas aguas do canal que são profundas e correm alli com impetuosidade.

Em pouco tempo, contornando o palacio do governador, e deixando á direita o forte Waerdenburch, construido em 1631 nas Salinas, hoje Santo-Amaro, pelos hollandezes que lhe deram esta denominação para honrarem o seu general Diederik van Waerdenburch, seguiu no rumo do sul, rompendo, por entre ilhas de mangues, a escuridão e as aguas.

Entre as casas de que por esse tempo se compunha a povoação dos Afogados contava-se a de um colono por nome Thimoteo, sujeito pontista, como tal conhecido das vizinhanças, e por isso mesmo buscado sempre que se tratava de realizar qualquer transacção illicita ou simplesmente equivoca.

Era uma casa de taipa como quasi todas as outras do lugar, e achava-se a pouca distancia do forte tomado pelos hollandezes sob o commando do coronel Lourenço van Rembach aos portuguezes em 1633 e denominado por estes Forte-da-Piranga e por aquelles Principe-Guilherme em honra do principe de Orange. Ficava á direita da entrada da povoação, por detraz das primeiras casas. Foi demolido em 1813, pelo intendente da marinha Siqueira, que com o respectivo material aterrou a cambôa que contornava pelo lado do rio a primeira casa, na qual morava.

Thimoteo estabelecêra alli uma vendola ou bodega aonde ia ter o assucar, a gallinha, a colher de prata, a peça de roupa ou qualquer objecto que era furtado pelos negros dos engenhos da redondeza. No exercicio desta criminosa industria comprava-lhes muitas vezes por dez réis de mel coado objectos de valor que revendia depois pela hora da morte aos boiadeiros e almocreves que acertavam de entrar na venda.

Thimoteo tivera por companheira uma mameluca de nome Chica, mulher bem apessoada, ainda moça, mettida a valentona, finalmente uma dessas mulheres que tomam satisfações a Deus e ao mundo por dá cá aquella palha. Diziam as más linguas que nos primeiros tempos da sua vida com o colono ella lhe fôra por differentes vezes ao pêllo; e que, comprehendendo elle que não podia fazer cinco montes, e renunciando á pretenção, que ao principio nutrira, de trazer sopeada a caseira, deixára esta tambem, por justa compensação de repetir o caridoso ensino com que o edificára logo depois de sua lua de mel.

Uma manhã um rapasito descorado parou á porta da bodega, saltou do cavallo abaixo e mandou medir contra-metade de aguardente.

— Olá, menino José. Muito cedo navega vossê hoje; disse Thimoteo ao recem-chegado.

— Parti de Santo-Antão na madrugada velha, tornou-lhe o hospede.

Emquanto o taverneiro aviava o matinal freguez, o cavallo que jejuava desde a vespera, pôz-se a devorar a grama do pateo, e, sem consciencia dos riscos em que se ia metter, foi cahir muito naturalmente dentro da pequena roça da mameluca e começou a destruil-a mostrando tenção de dar conta della.

Mas ainda bem o primeiro gerumú não se havia derretido entre os poderosos molares do faminto animal, quando a dona da plantação desfechou neste tamanho golpe com uma das estacas da cêrca, que o pobresito, dando ás popas pelo meio do pateo, foi atirando os saccos aqui, os caçuás acolá, a cangalha além, e desembestou por fim, pela margem afóra, em violenta fuga.

Não satisfeita com semelhante desforra, Chica em um pulo ganhou a venda, e investiu com o inoffensivo matutinho.

— Amarello de Goyanna! gritou-lhe ella ao pé do ouvido. Não sei onde estou que não te ponho molle com este páo para te ensinar a amarrares melhor a tua besta esganada de fome.

O rapaz, volvendo a vista ao volume humano que lhe acabava de fallar e cujos olhos pareciam querer saltar das orbitas, respondeu-lhe sem se alterar nem mover:

— Besta! Besta é ella.

E, senhor de si qual si estivesse gracejando com um amigo, levou o copo aos labios com o maior sangue frio que ainda se pôde mostrar na taverna, onde as paixões se acendem com a promptidão do raio.

Irritada por esta represalia que a seus olhos pareceu condensar todo o desprezo do mundo, a mameluca não teve duvida, não, e levantou a acha para o rapazito.

Tinha este deposto o copo sobre o immundo balcão quando presentiu a arremettida; pôde por isso fugir em tempo com o corpo à violenta pancada. A estaca hateu a meio no balcão, e metade della voou pelos ares em estilhaços que foram quebrar as panellas de barro e as poentas botijas com que se achavam adornadas as sujas prateleiras da possilga.

Ouviu-se então um estalo, e logo o baque de um pesado corpo. José havia desandado com tanta força uma bofetada na mameluca, que a fizera cahir redondamente no chão.

Quiz Thimoteo acudir á companheira na apertada conjunctura que se lhe desenhou aos olhos com as negras côres de um desastre, ou vergonha para o lar e bodega onde nunca soffrêra affronta igual ou que com esta se parecesse. Mas quando apercebia o animo para dar o arriscado passo, descobriu na mão de José uma faca de Pasmado que o reteve a respeitosa distancia.

Julgando-se José, á vista do aggravo que recebêra, com direito a publico e estrondoso despique, arrastou por uma perna a mameluca, ainda tonta, para o terreiro, e ahi, com uma raiz de gamelleira com que os meninos tinham brincado na vespera, começou a pôr em pratica a mais edificativa sóva de que nos dão noticia as tradições matutas.

A mameluca tentou por differentes vezes livrar-se das mãos do rapazito, espernegando como possessa. As mãos de José porém pareciam, pela dureza e pelo peso, manoplas fundidas de proposito para esmagar um gigante. Demais, José havia posto um pé no pescoço da Chica, e com elle comprimia-lhe o gasnête, tirava-lhe a respiração, afogava-a sem piedade.

A estrada estava deserta. Os moradores da povoação, de ordinario madrugadores, por infelicidade da caseira de Thimotheo dormiram mais nesse dia do que tinham por costume. Além disso, as casas mais proximas da venda ficavam ainda a distancia, sendo todas, como então eram, muito espalhadas. Esta circumstancia, tirando toda esperança de prompto soccorro, animou José a prolongar o exercicio para o qual podia dizer-se estava preparado por diuturno habito.

Depois de alguns minutos, sentiu Thimoteo subirem-lhe emfim ás faces os restos do equivoco brio e gritou, sempre de longe:

— Vossê quer matar-me a Chica, José?

— Deixe ensinar esta cabra, seu Thimoteo. Ella nunca viu homem, e por isso anda aqui feita gallinho de terreiro, ou perú de roda, mettendo medo a todos estes papa-sirís dos Afogados.

Assim dizendo, José montava-se litteralmente na mameluca, e dava-lhe com os restos da raiz da gamelleira já sem serventia. A faca, que minutos antes reluzira em uma das mãos, estava agora atravessada na boca do matuto, em quem o ignobil vendeiro parecia ver, não uma figura humana, mas uma visão infernal que o ameaçava, a elle tambem, não com igual pisa, mas com a morte, que para elle era mil vezes peior.

De repente José colheu o impeto, pôz-se de pé, e inquiriu de si para si:

— E o meu cavallo?

Correu em continente á margem e soltou um longo assobio que atroou a solidão mal desperta; a margem estava erma, e só o silencio respondeu ao seu chamamento. Tornou ao pateo onde alguns vizinhos, finalmente attrahidos pelos gritos, ao principio furiosos, depois rouquenhos, e por ultimo cansados e quasi imperceptiveis da moribunda mulher banhada em sangue, tratavam de restituil-a á casa.

— É o que te vale, cabra do diabo! disse José, olhando para o volume inanimado que mãos tardiamente piedosas arrastavam ao casebre. O que te vale é ter eu que ir em busca do meu cavallo. Si não fosse elle, nunca mais comias farinha.

Dias depois voltou José, montado no seu cavallo, trazendo uma espingarda nova na mão, uma faca de arrasto pendente da cintura, os caçuás cheios de peças de panno e outros objectos que se vendiam nas lojas da villa.

— Boa tarde, seu Thimotheo, disse elle, pondo-se em terra de um pulo e entrando sem ceremonia na tasca. Dá-me noticias da Chica?

— Vossê ainda vem fallar nisso? redarguiu o vendeiro com semblante hypocrita, mas na realidade sobresaltado.

— Porque não? Queria acabar de dar-lhe a lição que principiei na quarta feira. Mas desta feita a cousa havia de ser de outra moda. Queria ver si lhe entrava nas banhas da barriga este facão, como entra nesta melancia.

— Pois não sabe que a Chica morreu da sua tyrannia.

— Ah! fez esta bestidade? Pois então, para celebrarmos o caso, bote aguardente e bebamos.

Thimoteo encheu sem demora o cópo que apresentou a José.

— Boba primeiro; disse este.

— Não, eu não bebo; respondeu o taverneiro.

— Não bebe? Ha de beber. E não se demore que tenho pressa. Atraz de mim vem alguem em minha procura, e eu não estou disposto a fazer mais carniça por hoje.

— Que imprudencia a sua, menino! Não bebo, não quero beber, está acabado. Veja si me obriga.

A este rasgo de cobarde arrogancia que seria digna de riso si não despertasse compaixão, José retrucou, fitando os olhos no colono:

— Seu Thimoteo, vossê vai errado. Olhe que eu não posso demorar-me nem sou de graças. Beba a aguardente por quem é.

O taverneiro, sem replicar, pôz o copo na boca, e, depois de haver sorvido alguns golles que lhe souberam a quassia ou jerubéba, restituiu-o ao rapazito, que o esvasiou quasi de um trago.

Então, sem cuidar de pagar a despeza, José saltou sobre a cangalha, pôz o cavallo a todo o galope e desappareceu no caminho como desapparece um raio na atmosphera.

Com pouco uma escolta subiu a ponte e foi fazer alto na vendola de Thimoteo. Vinha na batida de José, que havia commettido um roubo consideravel na praça, tendo, para escapar-se, assassinado um caixeiro e deixado ás portas da morte, com um sem-numero de golpes, dous soldados que diligenciaram prendêl-o.

Pertencem estas ao numero das primeiras proezas do Cabelleira. Não contava elle então dezeseis annos completos. Perpetrava, entretanto, destes crimes, e com esta firmeza que daria renome aos mais habeis e audaciosos assassinos.

Não obstante o modo por que o tratára desta vez o joven Cabelleira, nunca Thimoteo ficára mal ou se arrufára sequer com elle. Quem não descobre a razão de tal segredo? O colono respeitava e temia o matuto. Por detraz, dizia áquelles de cuja fraqueza estava certo, que o José era uma oucinha que se estava criando e que era preciso, emquanto não passava de tempo, tirar do pasto; na presença do rapaz, que já lhe tinha mostrado por duas vezes de quanto era capaz, só tinha para elle attenções e baixezas que bem denotavam os quilates do seu espirito.

José cresceu, reformou, pôz-se de todo homem. Perdeu a côr terrena e pallida com que o vimos da primeira vez na taverna, e ornou-se robusto de corpo e bonito de feições. Cabellos compridos e annellados, que lhe cahiam nos hombros, substituiram a pennugem que mal lhe abrigava a cabeça nos primeiros annos.

Thimoteo fôra testemunha de todas estas transformações. O rapaz tinha escolhido para seu ponto de operações contra a villa a taverna dos Afogados. Esta taverna passára a ser um como entreposto onde elle depositava o que roubava com o pai, e mais tarde, com o Theodosio que viera associar-se-lhes nos perigos e nos proveitos. O taverneiro achára-se assim em condições de acompanhar dia por dia as differentes phases, os variadissimos successos de uma das existencias mais admiraveis que se conhecem na carreira do crime.

Por sua vez José vira o florescer e o declinar do taverneiro. Quando o livrára da companhia da Chica achava-se Thimoteo nos seus quarenta e oito annos. Agora orçava pelos cincoenta e cinco. Tornára-se-lhe o cabello branco; destendêra-se-lhe o abdomen, cahiram-lhe um pouco as faces, sumiram-se-lhe os olhos debaixo das espessas sobrancelhas, que pareciam espinhos de cardeiro.

Sem que um entrasse nos segredos do outro, os dous diziam-se amigos, e até certo ponto apoiavam-se reciprocamente, havendo a muitos respeitos entre ambos perfeito accôrdo de intenções e inteira communidade de interesses.

As barras vinham quebrando quando a canôa dirigida por Theodosio encostou na beira do Capibaribe, junto á ponte dos Afogados. Dentro em pouco a pingue mésse da noite, colhida ás custas de sustos, sangue e morte, passou para os escondrijos da taverna. Beberam em commum os quatro; celebraram todos a magistral façanha. Thimoteo applaudiu a coragem do pai e do filho, e a finura e as magicas do Theodosio.

De repente este levou a mão á testa e correu como desesperado á margem. Os companheiros metteram mãos ás armas e prepararam-se para o que désse e viesse.

Thimoteo, chegando á porta e estendendo os olhos pelo aterro dos Afogados afóra, nada descobriu na extensa solidão que pudesse justificar a inquietação do seu digno conviva.

Só o Theodosio, de pé sobre uma das mais altas ribanceiras, olhava para um e outro lado do rio, e dava mostras de querer arrancar os cabellos no auge do desespero. José dispôz-se a arrostar com o que pudesse acontecer e foi ter com o consternado amigo.

— Que diabo tens tu, Theodosio?

— O dinheiro, Cabelleira, o dinheiro!

E o pardo, com o semblante desfigurado por uma dôr profunda, apontou o rio que suavemente discorria por entre o deserto, mobilizando as aguas azuladas em que se reflectia o bello céo pernambucano que disputa a primazia ao céo de Italia.

— O dinheiro que tirei das gavetas do armazem lá se foi no camarote da canôa! disse o Theodosio, fulo de pezar que se não descreve.

— E que fim levou ella? interrogou José.

— Fugiu, desappareceu! Lá se foi tudo pela agua abaixo.

Não acabava quando, eil-a que aponta movida por dous meninos que, tendo ido encher os potes no rio, se haviam apoderado della para brincarem como costumavam sempre que davam com alguma canôa sem dono. Pobres crianças!

Tanto que os viu, Theodosio empallideceu. Cabelleira porém correu a encontral-os acceso em ira, gritando e ralhando como louco. Amedrontados, saltaram na margem os pobresinhos, e fugiram, ao passo que a canôa, ficando solta, desapparecia novamente impellida pela enchente da maré.

Fazendo conta José que os meninos se haviam assenhoreado do dinheiro, continuou a correr no encalço delles sem ter outra idéa que apanhal-os para arrancar-lhes das mãos o que considerava propriedade sua. Mas como sua colera augmentou com a fugitiva resistencia dos pequenos, atirou elle sobre o primeiro que lhe ficou ao alcance o facão com tanta certeza, que o pobresinho, cravado pelas costas, cahiu banhado em seu proprio sangue.

Não parou ahi então a fereza inaudita. José, achando limpas as mãos da victima, lançou-se com encarniçada furia atraz do camarada, o qual, tendo já ganho grande distancia, e sentindo que era perseguido tenazmente, se lembrou de trepar no primeiro coqueiro que descobriu com os olhos pavidos, crendo escapar por este modo ao terrivel assassino. Reconheceu, porém, que se havia enganado, quando deu com as vistas em José que do chão diligenciava feril-o com o facão.

— Acuda, mamãi, que o homem me quer matar — gritou o menino das alturas aonde havia subido.

— Ah, tu pões a bocca no mundo, caiporinha? observou José. Pois vou tirar-te a falla em um instante.

Um tiro cobarde, cruel, assassino atroou os ares. Sangue copioso e quente gottejou como granizo sobre a arêa, e no mesmo instante o corpo do innocentinho, crivado de bala e chumbo, caindo aos pés de Cabelleira, veiu dar-lhe novo testemunho de sua pericia na arte de atirar contra seu semelhante. [1]

Quem estivesse com os olhos em Theodosio no momento em que Cabelleira corrêra atraz dos meninos, têl-o-hia visto atirar dentro em uma mouta de mussambês e manjeriobas, que ficava perto da ribanceira, um pesado pacote que tirára do bolso. Neste pacote achava-se o dinheiro roubado ao logista pelo astucioso ladrão que agora o furtava novamente aos proprios companheiros de rapinas, depois de haver concorrido, por sua trapaça, para a morte das innocentes creaturas.

Quando se soube que Cabelleira estava na terra, e tinha sido o autor do latrocinio, a povoação horrorizada tratou unicamente de escapar a sua ferocidade.

Grande parte dos moradores fugiu para os matos e praias circumvizinhas. Outros, dos mais corajosos, fortificaram-se nas proprias habitações, contando que seriam assaltados pelos matadores.

Felizmente estes demoraram-se no lugar unicamente o tempo que lhes foi preciso para pôrem em boa especie os objectos roubados segundo usavam depois de suas depredações.

Notas do autor editar

  1. Diz a trova popular:

    Lá na minha terra,
    Lá em Santo Antão,
    Encontrei um homem,
    Feito um guaribão,
    Puz-lhe o bacamarte,
    Foi pá, pi, no chão.