XI
Antes de se haver movido da capital o destacamento que foi estacionar em Afogados, grande confusão dominara nos espiritos dos habitantes desta localidade.
Foi o caso que pelas oito horas da noite, pouco mais ou menos, dous vultos se tinham ido collocar defronte da taberna do Thimoteo.
A alguns freguezes e frequentadores do taberneiro causou reparo o mysterioso par que ninguem se animou a ir reconhecer, não obstante a todos parecer elle equivoco e digno de receiar-se.
Não se podia confiar no tempo, principalmente nos lugares afastados da villa.
Roubos e assassinatos repetiam-se a cada canto. Na propria capital os habitantes não tinham por seguras nem sua propriedade nem sua vida. Por isso, qualquer sujeito duvidoso suscitava, com razão, desconfianças e medos nos homens pacificos que por interesse proprio se apartavam sem demora dos pontos onde taes sujeitos appareciam ou podiam apparecer.
Quem menos se inquietou com os desconhecidos foi o Thimoteo que, acostumado a tratar, de instante a instante por assim dizermos, com essa especie de gente, se considerava fóra de todo risco ainda quando este se desenhasse, como em certas occasiões, com as mais vivas e medonhas cores. A seu parecer, de individuos taes só tinha elle que esperar favor e protecção, visto que, sendo sua taberna ponto obrigado das relações da capital com o centro, quer fosse de dia quér de noite, assim de inverno como de verão, tinham elles, como elle proprio, grande interesse, sinão maior do que elle tinha, em conservar, defender, amparar esse poderoso ponto de apoio para os seus dolos, violencias e infames ciladas de que era victima o matuto simplorio, o sertanejo de boa fé, o mascate, emfim quem quer que passava por aquella infernal estancia.
Apontavam-se no lugar outras tabernas, das quaes algumas tinham á sua frente patrões mais habeis do que o Thimoteo; a do velho, porém, mestre no mister como nenhum outro, tinha fama extensa, quasi geral na provincia. Era uma taberna tradicional por ter servido muitas vezes de theatro a scenas de sangue e morte.
Pelas festas de arraial, o jogo, a crapula ahi se praticavam com prejuizo consideravel da ordem publica, da fortuna particular, do socego e honra das familias.
Estas circumstancias, este passado davam-lhe certo prestigio que attrahia para o immundo balcão, ou para a lobrega camarinha da tasca o vicioso por habito, o filho da viuva, a rapariga infeliz, os quaes iam encontrar debaixo das quatro telhas do casebre largo campo onde dar expansão a suas paixões reprovadas.
Quando algum frequentador, exaltado pela cachaça, ameaçava esfaquear o vendeiro por alguma das suas, respondia elle, abrindo a camisa, e mostrando o largo peito coberto de espessos e avermelhados pêllos:
— Pode fazer do peito do velho Thimoteo bainha da sua faca. Já bebeu a minha aguardente, não será para admirar que queira agora dar meu sangue a seu cachorro magro. Mas de uma cousa tenha vossê certeza; ainda que me mate, ainda que me esfole, não passa o gadanho no meu zimbo. Poderá comer das minhas sardinhas, chupar do meu vinho, mas de dinheiro nem ceitil ha de cahir na sua unha.
Thimoteo dizia a verdade. Elle tinha todo o seu haver amoedado em lugar só delle conhecido.
Ficára só no mundo depois da morte da Chica, e enthesourava sem destino o que illicitamente adquiria. Seus unicos companheiros de casa eram um cão, e dous gatos. Estes ultimos comiam com elle á mesa, quasi no mesmo prato, e, para bem dizermos, dormiam na mesma cama.
Por isso, quando viu os mysteriosos vultos parados defronte da taberna; quando os viu mais tarde dirigir-se para esta no momento em que elle ia fechar as portas por se haver de uma vez retirado a freguezia do dia, disse Thimoteo com a maior fleugma:
— Podem entrar sem susto, que o Thimoteo é amigo.
Os desconhecidos ganharam de um pulo a tasca, e trataram de fechar as portas.
— Fazem bem, disse-lhes o vendeiro, sem se dar por achado. O tempo não está para graças. Mas si vosmecês estão aqui de emboscada a algum tonante, será bom deixarem aberta esta janellinha da porta.
— Não estamos de emboscada a ninguem, porque quem queriamos já está seguro, disse um delles, trancando com a taramella a janellinha indicada.
— Ah! Já sei. Querem ceiar comigo. Não ponho duvida.
Os desconhecidos entre-olharam-se como si se consultassem.
— Não façam ceremonia, camaradas. Naquella mesinha, que alli vêem, muito fidalgo tem feito a sua refeição. Tirem os capotes, si querem estar a vontade; e esperem um momento, que não ha demora.
Sem esperar resposta, o velho tomou o interior do casebre, e voltou logo, trazendo pães, postas de peixe frito, e uma cuia com farinha.
— Então? Que fazem? Vão sentando-se, e toca a comer. Não esperem por mim, que sou de casa e não tenho etiquetas.
E entrou novamente, manifestando, pela promptidão com que tratava de pôr a ceia, a melhor vontade de ser agradavel aos estranhos hospedes.
Não eram estes no todo sympathicos, mas tambem não eram mal encarados.
O que representava ser mais moço era secco de corpo, tinha boa estatura, côr fula, olhos scintillantes e redondos, cabello chegado ao casco. O nariz um pouco rombo estava em desharmonia com as outras partes da cara onde se lia uma expressão de audacia, que respondia bem á agilidade do corpo.
O outro era feio de feições, baixote e roliço. A côr, o angulo facial, o cabello carapinha estavam claramente denunciando a sua proveniencia africana.
Por baixo dos capotes, já velhos, cingia-lhes os rins um cinto de couro d’onde a cada um pendia uma espada de ponta direita. Eram as espadas as unicas armas que traziam á vista.
Sentaram-se á mesa sem tirar os chapéos de palha com que estavam cobertos.
— Vinho ou cachaça? perguntou o velho, apontando, de volta, na porta, com uma penca de bananas que lhe vinham cahindo das mãos de maduras.
— Vinho, disse o mais moço.
— Traga da canna para mim, acrescentou o outro.
— Muito bem, respondeu Thimoteo. Olhem: o pão é da padaria do Zé Braga, o peixe é do Viveiro-do-Muniz, a farinha é da Muribeca, e as bananas são do meu quintal. A cachaça é do engenho do Mendonça, e o vinho é puro de Lisboa.
No fim da ceia, que as reiteradas libações prolongaram, e que correu animada, por mais de um dito, um gracejo, uma sentença licenciosa, o Thimoteo dirigiu estas palavras aos hospedes:
— Não está má esta. Dei-lhes da minha ceia sem saber quem são vosmecês. Agora, os seus semblantes, sinão me falta a memoria, não me são de todo estranhos.
— Assim deve ser, disse o cabra. Mais de uma vez tenho comprado aqui o meu vintem de aguardente.
— Isto é outro cantar; já vejo que somos conhecidos velhos.
— Tão conhecidos somos, seu Thimoteo, replicou o cabra, que tomo a liberdade de o convidar para um passeio agora mesmo por esta estrada afóra.
— Nossa-senhora-da-paz livre-me de tal, disse Thimoteo empallidecendo. Sahir a esta hora, por este tempo, deixar a minha casa á revelia, santo Deus! Nem pensem nisto, meus bons amigos.
— Não tem que receiar, meu caro. Cada um de nós traz, como vê, uma espada á cinta, e a sabe manejar.
— Bem estou vendo, disse Thimoteo. Mas sempre lhes quero dizer: o crioulo Gabriel sabia muito bem jogar a espada, e melhor a faca, mas o Cabelleira o lambeu.
— Ah! o Cabelleira? disse o negro.
— Sim, senhor; elle apparece por aqui ás vezes; eu o tenho visto fazer proezas de espantar.
— Seu Thimoteo, disse o cabra, levantando-se, fez bem em fallar no Cabelleira. Eu quero perguntar ao senhor uma cousa....
Antes que terminasse a sua oração fez-lhe um signal o negro, e elle disfarçou por este modo:
— Mas é já tarde, e nós não nos podemos demorar mais. Vem ou não vem?
— Para onde, senhor? perguntou o vendeiro, levantando-se aterrado por haver finalmente comprehendido que tinha diante dos olhos dous inimigos.
— Saberá depois. O essencial é que nos acompanhe.
— Não posso fazer tal cousa.
Thimoteo recuou instinctivamente quando ouviu as ultimas palavras do desconhecido. Este porém, em um instante o tinha segurado pelos pulsos emquanto o negro lhe passava uma corda nos braços.
— Como é que me fazem isto? perguntou Thimoteo. Querem matar-me?
— Não, senhor, disse o cabra. Vossê ha de chegar vivo, bem vivo a seu destino, ainda que o Cabelleira se metta a tiral-o das nossas unhas, o que eu duvido.
— E a minha venda?
— A sua venda fica ahi; nós não a levamos.
— Mas... roubam-me tudo, tudo.
— Não tem vossê roubado a tanta gente?
— Ora! Feche bem as portas, e avie-se, que é tempo. Si não quer ir pelos pés, irá amarrado como um porco.
Thimoteo aceitou, contra vontade, já se vê, e por não ter outro remedio, a situação que se lhe afigurou irrevogavel.
— Vista o seu gibão, que vossê vai ser apresentado a gente nobre.
— Ah! disse o vendeiro, respirando, mas não sem grande espanto, que mal disfarçou.
Pouco depois os tres convivas seguiam, a marcha batida, pela estrada de Santo-Antão. Tendo deixado a taberna, cujas chaves o Thimoteo levava comsigo por permissão dos desconhecidos, haviam estes pouco adiante entrado com elle no mato para tomarem dous cavallos que alli tinham deixado occultos. Em um delles montou o negro, e no outro montaram o cabra e o vendeiro, este passado de medo, que o caso não era para menos, aquelle guardando-o na garupa, e tendo uma faca nua na mão. Tomaram novamente a estrada, e logo desappareceram como sombras phantasticas, no fundo da escuridão.
Conforme a deliberação tomada no senado da camara pelo governador, capitães-móres e coroneis de ordenanças, a busca dos malfeitores tinha de ser dada ao mesmo tempo nas matas dos respectivos districtos.
— Estes bandidos, dissera o governador, fazem-nos maior damno do que a fome, a peste e a guerra. Matam a sangue frio, para roubarem a fazenda áquelle que pacificamente a ganhou com o suor do seu rosto. Penetram nas casas, nas lojas, nos engenhos, nos proprios templos, e, tirando dahi o fructo da economia e do trabalho honesto e esforçado da propriedade alheia, vão consumil-o nas suas orgias e delirios. A sua passagem o pobre não fica privado sómente das suas migalhas; fica tambem privado da sua honra, da honra das suas filhas; si se não atrevem a fazer hoje o mesmo aos ricos e nobres, amanhã o farão, animados por um longo passado para o qual não posso volver os olhos sinão com tristeza, porque elle me diz que aos meus predecessores faltou animo para esmagar a hydra do crime, ou que foram elles indifferentes aos males privados e publicos que resultaram da sua impunidade della. Não quero que o meu nome passe á historia d’envolta com essa impunidade; ha de passar com o lustre da autoridade que se faz respeitada por cumprir com zelo e coragem os seus deveres, entre os quaes se conta o de castigar os delinquentes. Fio que os senhores capitães-móres e coroneis hão de auxiliar a administração, que nestes intuitos, não attende sinão á gloria de sua magestade, que Deus guarde, e á paz e felicidade dos povos. A falta de tropas será supprida pela creação de milicias provisorias, e locaes para o fim unico de acabar com os coutos dos facinorosos; e a de dinheiro sel-o-ha pelo erario regio, que segundo me autorizou sua magestade por carta firmada por sua real mão, adiantará por emprestimo a quantia necessaria para a mantença dessas tropas até que de todo se tenham aniquilado os coutos. O erario será resarcido das quantias que houver adiantado, por meio de um imposto que se lançará para o dito fim sobre os povos dos districtos ruraes, ou dos que ficam distantes desta villa duas leguas, attendendo-se a que a estes o beneficio da extincção dos coutos occasiona particular proveito.
Nenhum dos convocados teve que oppôr ao pensamento e vontade do governador, conhecido como uma autoridade arbitraria. Todos, ao contrario, votaram por estas idéas, certos de que se attendia por taes meios a uma necessidade publica da maior magnitude. « José Cesar governou arbitrariamente, é verdade, diz um historiador, mas as suas arbitrariedades raras vezes deixaram de ter um fundo de justiça. Na punição dos delinquentes foi infatigavel. »
Chegando a seu districto, cada capitão-mór tratou de levantar a milicia volante, a qual foi formada dos individuos solteiros, maiores de vinte e menores de quarenta annos, com exclusão sómente daquelles que por si dessem outrem.
Não foram poucas as difficuldades que tiveram de vencer para que se formassem os contingentes, destinados a pacificar o interior.
Não sabendo o verdadeiro fim que se propunha a autoridade com a fundação desses contingentes, suspeitaram os povos uma grande leva para fóra da terra para combater o estrangeiro. Mas os capitães-móres conseguiram desvanecer as suspeitas por meio de affirmações sob palavra de honra. Naquelles tempos a palavra do homem equivalia a juridica obrigação ou a solemne tratado, e a honra era digna e efficazmente representada por um cabello da barba. Hoje, as proprias palavras dos reis tornam atraz, as convenções diplomaticas não passam de ciladas internacionaes, a honra tem-se refugiado nos retiros com medo da publicidade, que a expõe a geral pouco caso.
Temos subido muito nas sciencias, industrias e artes, sem excepção da arte de governar; mas, em ponto de honra, em virtudes civicas, em moral domestica, a nossa decadencia, impossivel de recusar, attesta que temos levado a obra da reformação além dos limites pertinentes, e prova a necessidade de transplantarmos das ruinas do passado, onde vicejam esquecidas, algumas plantas modestas, cujas flôres purificam o ar com seus perfumes, e cujos fructos formam sangue novo e são.
O capitão-mór de Santo-Antão, querendo avantajar-se aos outros, anticipou-se nos meios de pôr a mão nos malfeitores.
Sabia elle das assiduas relações do Cabelleira com o velho taberneiro, ao principio por mera suspeita, e posteriormente por informações que tomou de aggregados e ordenanças seus, alguns dos quaes, de passagem para o Recife, entravam na taberna, bebiam nella o seu grogue, e algumas vezes até alli pernoitaram. No dia fatal, em que o famigerado bandido tirara a vida aos dous meninos, passára por Afogados o capitão-mór momentos depois do dobrado delicto.
O commercio illicito do taberneiro, a sua má fama, as suas estreitas ligações com sujeitos mal vistos de todos, principalmente com o Cabelleira, deram-lhe a convicção de que qualquer diligencia, que tivesse por fim a prisão dos delinquentes, não poderia sortir effeito si não fosse precedida da prisão do taberneiro.
Duas praças de sua confiança foram por elle encarregadas de levarem o velho a sua presença sem que se soubesse para onde nem como elle fôra. Alexandre, o negro, e Valentim, o cabra que vimos ceiando com Thimoteo e que por sobremesa o prenderam foram as taes praças; e á vista do modo como se houveram, cabalmente justificaram a confiança do capitão-mór.
Ia amanhecendo quando os tres cavalleiros se apearam na porta deste.
As casas do povoado estavam ainda fechadas, e ninguem os viu entrar; o capitão-mór que levara a noite em claro, á espera dos seus commissarios, foi abrir-lhes a porta em pessoa.
Thimoteo posto em confissão, negou tudo ao principio, sahindo-se, com varias evasivas, das rêdes que lhe lançava o capitão-mór, perito em interrogar.
Quando porém viu a sua vida ameaçada; quando formalmente se lhe declarou que a sua morte seria inevitavel si não auxiliasse com lealdade a acção da justiça na busca dos criminosos; quando o Alexandre de espada desembainhada, e o Valentim de faca na mão, receberam do capitão-mór ordem para infligir-lhe a pena ultima dentro da capoeira proxima; quando se viu arrastado por elles ao theadro onde se lhe destinára o tragico fim que horroriza todo homem — a morte natural, o instincto da propria conservação retomou ao calculo e ás manhas do vendeiro os seus direitos. Confuso e abatido, Thimoteo aceitou o odioso papel que lhe foi distribuido naquella grave representação em que importantes interesses e muitas vidas iam correr imminente risco.
Thimoteo conhecia todos aquelles lugares onde tinha andado na sua mocidade em dias de feira de gado.
A secca que estava devastando a provincia tinha-lhe proporcionado occasiões de conhecel-os melhor. A escassa farinha, os poucos legumes e outros comestiveis que appareciam nas feiras geraes, eram logo comprados por atravessadores que os iam revender com usura no Recife.
Nos primeiros tempos Thimoteo resignou-se a ver passar os productos no poder dos atravessadores: mas faltando-lhe esses productos, não só para os expor na sua taverna, sinão tambem para o proprio uso, tomára o accôrdo de ir pessoalmente um sabbado por outro a Santo-Antão prover-se do necessario para a semana. Quando o Cabelleira estava na mata, Thimoteo ia ter com elle e lhe comprava por quasi nada o que muitas vezes tinha custado a vida do pobre roceiro, que deixava mulher viuva, e uma infinidade de filhos na orphandade.
Dest’arte estava elle senhor dos caminhos e carreiras que iam ter á encoberta onde entrava com familiaridade, e d’onde sahia como amigo.
Elle sabia que o Cabelleira se achava na terra por haver estado de passagem na sua taverna, conforme vimos. De tudo informado, o capitão-mór aguardou ancioso a noite seguinte, para dar começo á batida da mata. Com o fim de illudir porém a vigilancia dos assassinos, e escusar as suas suspeitas, mandou notificar as praças do contingente para que se achassem em um ponto das matas do seu engenho, ao qual cada um devia dirigir-se desacompanhado a fim de não dar na vista de quem quer que fosse.
Tanto que anoiteceu, o capitão-mór deu ordem para que Valentim, Alexandre e dez matutos experimentados se trepassem em arvores proximas das quaes pudessem observar o rumo que os malfeitores tomassem depois do escurecer. Estas sentinellas perdidas deviam dar aviso á tropa que estava no engenho, para que ella, guiada por Thimoteo, corresse a tomar as entradas, e pudesse prender os malfeitores em sua volta ao couto. Foi o que succedeu.
Quando Valentim viu os ladrões tomarem, á bocca da noite, pelo caminho da engenhoca, desceu-se da pitombeira onde se trepara, montou no cavallo que tinha preso de prevenção dentro de uma moita, e correu ao engenho. A tropa moveu-se em continente, sob o immediato commando do capitão-mór.
Dividida a metade della em tantos piquetes quantas eram as picadas secretas, tomou todas estas, e achou-se em condições de interceptar a passagem daquelles para o ponto central. A outra metade, collocada a um lado da mata a distancia conveniente, pôde acudir aquelles pontos logo que o Valentim, que depois do aviso havia voltado ao seu posto, foi informal-os da volta dos malfeitores. Assim, acharam-se estes, quando voltaram da engenhoca, entre duas columnas inimigas, ás quaes forçado foi entregarem-se, quasi todos com a morte. Ao Joaquim se poupou a vida, a fim de se cumprir a determinação do governador, não só a respeito delle, mas tambem do Cabelleira e do Theodosio para fins de alta justiça.
Quando o Cabelleira se afastou com Luiza da beira do rio para o alagadiço, o Valentim estava dando o seu segundo aviso, e elles puderam, por isso, escapar à sua inspecção.
Tinha elle, porém, ouvido antes, de cima da pitombeira, o dialogo do Cabelleira com o Theodosio, e sido causa do ruido que espantara o cavallo deste ultimo. Tinha visto aquelle encaminhar-se á engenhoca, o que o fizera acreditar que entre os malfeitores, que tinham de tornar, e effectivamente tornaram á mata, se achava o famigerado bandido, alma do couto, terror dos povos. Não lhe parecendo, por isso, necessario vigiar o terrivel salteador, que elle considerava seguro com os outros na armadilha que lhes havia armado, consagrou-se todo a evitar que lhe escapasse o Theodosio. E como queria ter grande parte na gloria que resultasse da extincção dos celebres assassinos, voltou sobre seus passos á estrada, e encaminhou-se ao povoado.
Valentim era bravo como uma onça, e tinha deste animal a agilidade e a destreza no mais alto gráo. Confiava, não só nestes dotes naturaes , mas tambem na sua espada de ponta direita que muitas victorias já lhe havia proporcionado. Elle jogava com insigne habilidade esta arma.
Pouco adiante ouviu vozes. Apressou os passos, e encontrou-se face a face com o Theodosio, que, nada sabendo do que havia, demandava o couto.
Com impeto de féra botou-se a elle, não para vencel-o, mas para matal-o.
— O seu gracejo é pesado, camarada, disse o Theodosio, recuando ante a brutal investida.
— Valentim não graceja. Rende-te, cabra Theodosio; ou então reza o acto de contricção, que esta é a tua derradeira.
— Si eu trouxesse a minha espada, não lhe enjeitava o bote. E si quer saber para quanto presta o cabra Theodosio, embainhe o seu ferro, e vamos decidir da sorte pela faca.
— Não estou para tuas parólas, cabra safado. Si não te entregas já nas mãos do Valentim, que nunca escolheu armas para provar que é homem, tiro-te o couro antes do amanhecer.
Theodosio, vendo aquella decisão ante a qual poucos animos, talvez unicamente o do Cabelleira, deixariam de curvar-se; e confiando nos recursos do seu genio astucioso que nunca o havia desamparado ainda nos maiores apertos, respondeu com voz melliflua:
— Não me mate, meu amo; o Theodosio rende-se.
No momento em que assim fallava, o Valentim descarregou-lhe tamanha pranchada na cara, que elle cahiu redondamente no chão.
Quando voltou a si, tinha nos pulsos enrodilhada uma corda de couro crú, em cuja ponta segurava o cabra.
— Levanta-te, que quero olhar para a tua cara, disse-lhe Valentim, fustigando o prisioneiro com a ponta da espada. Onde está a tua fama, cabra Teodosio?
Este não respondeu.
Subita tristeza invadira-lhe o espirito ordinariamente expansivo como o de uma criança.
Tinha ouvido tiros na mata, e conhecido que a situação era mortal.