X


Que valeu a Luiza ter-se libertado das mãos de Joaquim, si o Cabelleira a prendia em seus braços possantes e athleticos?

— Solte-me, solte-me — disse a moça ao bandido.

— Quer ficar aqui? Não a deixarei só.

— Não se importe comigo. Siga seu pai, que eu irei para minha casa. Não preciso da companhia de ninguem.

Com esforços sobre-humanos Luiza tentou libertar-se das suas prisões. Foram inuteis esses esforços.

— Si não me soltar, ha de ver-me cahir morta a seus pés.

Ella tinha podido apoderar-se do facão do malfeitor, e o voltava contra si mesma.

O Cabelleira parou, e soltou-a.

— Que pretende vossê fazer, Luizinha? Não tem pai, não tem mãi, não tem quem por si olhe. Para onde quer ir?

— Quero matar-me aos pés de minha mãi.

— Isso nunca.

Sem esforço nem luta elle a desarmou em um momento.

Depois perguntou, com a voz mais branda do mundo:

— Matar-se porque, Luizinha? Não se lembra que me prometteu ser minha mulher quando um dia nos encontrassemos?

— Eu fiz esta promessa com uma condição, que vossê não cumpriu.

— Pois bem. Estou prompto a cumpril-a agora — tornou elle com ternura.

— Quer enganar-me, José? Para que eu acreditasse em suas palavras fôra preciso não o ter visto levantar ha pouco a faca para seu pai.

— É verdade; assim foi. Eu estava fóra de mim — respondeu com ar pezaroso que indicava remorso, vergonha e arrependimento do feio acto que tinha praticado. Mas que importa isso? continuou elle. O tanto matar já me aborrece, e eu quero mudar de vida.

— Não creio, não posso crer no que vossê diz — observou Luiza.

— Nem si eu jurar?

— Eu sei!...

— Que razão tem para duvidar tanto de mim, Luizinha? Estou vendo que vossê nunca me quiz bem.

— Eu é que posso dizer isso de vossê.

— Si eu não lhe quizesse bem, não a tinha deixado livre como está. Si eu só a quizesse lograr como fazem com as outras, quem me poderia impedir de realizar a minha vontade? Ninguem.

— Podia, e póde ainda matar-me, mas fazer isso, nunca. Só depois de me haver tirado a vida.

— Como se engana! Assim o quizesse eu; mas não quero. Eu sei que vossê me quer bem, e por isso não me vexo nem apresso.

Com os braços tremulos o Cabelleira apertou Luiza novamente contra o peito onde lhe ardia o coração em chammas de entranhado amor.

— Deixe-me, José. Aquella que vossê offendeu, aquella que vossê arrancou d’entre os meus braços, dalli o está vendo e amaldiçoando.

— Perdôe-me, não me odeie, Luizinha, por sua bondade, e pelo muito que nos queremos nos primeiros annos. Si eu a privei de sua mãi, estou prompto a protegel-a d’agora por diante. Pelo corpo de sua mãi, juro que farei isso, Luizinha.

— Jurará tambem que não ha de tirar mais a vida de ninguem, ainda que seja de um passarinho?

O bandido reflectiu um momento.

— E si me quizerem matar? perguntou depois.

— Fugirá — respondeu Luiza.

— E si não puder fugir?

— Eu quero que vossê jure, Cabelleira, que em caso nenhum derramará mais sangue sobre a terra, ouviu? Si não fôr assim, tudo estará acabado entre nós.

— Pois bem, Luizinha. Eu o juro. O malvado será de hoje em diante homem de bem.

Luiza fitou-o como um anjo deve fitar um demonio que promette ser anjo. O Cabelleira, porém, não lhe deu tempo para grande contemplação, porque de chofre a tomou pela terceira vez nos braços febris, e desappareceu com ella no meio da escuridão.

Saltar ao cavallo, vencer o vasto pateo, galgar a cêrca, e, em vez de ir em demanda da mata, voltar ao rio e descer pela margem esquerda na direcção do norte, foi obra de um instante para o destemido sicario. Luiza deixou-se conduzir em silencio ao meio do fatal desconhecido.

Ainda bem não tinham vencido uma milha na veloz corrida, quando o Cabelleira descobria uma cinta escura que se desenhava e movia, como nuvem de tormenta, no confuso horizonte.

Seu primeiro cuidado, ao ver aquella visão aterradora, foi afastar-se da margem, e metter-se em um alagadiço que ficava a alguma distancia do rio. Com a grande secca o brejo estava em pó, e a poderosa vegetação aquatica reduzida a raras touças que mal encobriam uma pessoa sentada.

— Esperemos aqui, Luizinha, que passe a tropa que vai para o povoado.

Luiza conheceu que estavam em perigo, e não fez a menor opposição. Atravessando o cavallo diante de si, accommodaram-se ambos de pé, do melhor modo que puderam, Luiza a rezar como costumava nos momentos arriscados, Cabelleira observando em profundo silencio, através da escuridão da noite, a mata que apparecia, como gigantesca e estendida mole, do lado opposto da planicie deserta e medonha.

O mancebo não se enganára. Era de feito uma tropa que vinha em busca dos salteadores.

Os pelotões encaminharam-se para as embocaduras das veredas. Não havia mais que duvidar. O segredo da encoberta estava no poder da justiça.

— Estão perdidos, disse o Cabelleira commovido. Si foram tomadas as sahidas que ficam do lado do poente, nenhum se salvará.

Como impellido por força irresistivel, o Cabelleira deu o andar para o mato.

— Que vai vossê fazer? perguntou-lhe a moça com inquietação, atravessando-se na frente delle.

—Não se assuste, Luizinha. Vou defendel-os.

— Diga antes que vai morrer.

— Não, o que eu vou fazer é matar gente sem piedade, acodiu o bandido.

— Matar gente! repetiu Luiza. Que valeu então o juramento que fez ha pouco?

— Ah! disse elle, cahindo em si. É verdade, Luizinha. Mas que quer que eu faça? Pois não hei de ir ajudar os meus a sahirem da tribulação em que se acham?

— Elles são muitos e valentes, respondeu Luiza; podem bem dispensar o seu adjutorio. Demais, vossê não pertence mais a elles, mas a mim, a mim só; ouviu José?

— Sim, eu sou seu, Luizinha; eu pertenço a vossê pelo coração, pelo amor.

Ouvindo estas palavras, ella inclinou ao chão seus olhos mais bellos que as estrellas que brilhavam no céo.

— Mas, vossê fez bem em lembrar o juramento que ha pouco fiz, proseguiu o Cabelleira. Eu não podia ver meus companheiros em perigo sem correr para junto delles a defendel-os. Si não fosse vossê, Luizinha, eu já não estava aqui. Mas agora me lembro: saiamos sem demora, que talvez seja ainda tempo de os salvar por outro meio.

Em menos de um instante acharam-se montados no cavallo que o bandido pôz a galope em direitura ao rio.

— Para onde vamos nós? perguntou Luiza, agarrando-se, sobresaltada, ao destimido matador. Aonde me leva vossê, José?

— Não falle, Luizinha, não falle, que pelas suas palavras podem vir sobre nós.

Nesse momento a detonação de alguns tiros e as vozes de um clarim, pregoeiro de não sei que operação militar, indicaram que a força tinha dado com os bandidos, e que qualquer aviso para que fugissem seria inutil.

— É tarde, disse o Cabelleira. Já não é possivel a salvação. Mas hão de ter-me ao pé de si na sua derradeira, exclamou, saltando do cavallo abaixo e dando mostras de querer correr ao lugar do perigo.

— Cabelleira! exclamou Luiza penetrada de terror. Vossê terá animo de desamparar-me neste deserto? Não, não ha de fazer isso comigo. Veja que eu sou hoje só no mundo.

O bandido parou incontinente. Estas palavras foram grilhões que o prenderam aos pés da adolescentula.

— Tem razão, Luizinha.

— Fujamos sem perda de tempo, acrescentou ella.

Nesse momento uma das escoltas sahia da mata.

Grande victoria tinha sido ganha pelas armas reaes contra os destruidores da propriedade, honra e vida de inoffensivas povoações.

Innumeras partidas militares já tinham sido expedidas contra os malfeitores sem resultado.

Pouco depois do cannibalismo perpetrado no primeiro domingo de dezembro de 1773 na ponte do Recife, o governador Manoel da Cunha de Menezes fizera seguir contra elles uma força consideravel.

Esta força chegou a Afogados alguns minutos depois da retirada dos autores da desordem; e dahi não passou, por não ter sido possivel, apezar das mais minuciosas indagações, saber o rumo que haviam tomado os criminosos.

O Thimoteo, cuja taverna foi varejada, declarou unicamente que elles tinham de feito estanciado ahi, mas que se haviam retirado sem lhe dizerem para onde. Não houve promessas nem ameaças bastantes a obter delle declaração mais formal e menos laconica do que esta.

Tempos depois novas partidas foram mandadas a ver si se conseguia o fim desejado.

Tanto a que seguiu ao norte, como a que seguiu ao sul, bateram matos, atravessaram rios cheios, empregaram emfim os maiores esforços inutilmente. Em mais de um lugar, ou de um pouso encontraram vestigios da recente passagem dos bandidos, ou da sua acção destruidora e fatal; mas nunca lhes foi possivel dar com os tres personagens, typos legendarios que todos conheciam pelos seus tristes feitos, que todos tinham visto, a quem quasi todos tinham pago pesado tributo, mas que illudiam a vigilancia e zombavam dos esforços de todos, sem excepção do poder publico. Nuvem miracul envolvia-os, ocultava-os aos olhos da justiça e da lei, que tem em toda a parte vistas penetrantes e perscrutadoras a que ninguem se encobre por muito tempo. Nos seus tenebrosos antros saboreavam o corrosivo prazer que proporciona o roubo, e a impunidade. Esta animava-os á pratica de novos crimes, e expunha ao publico descredito a administração menos digna de temer-se, ao parecer delles, do que o particular que muitas vezes resistia, defendendo a sua propriedade, e na defesa e resistencia os feria, embora tivesse de cahir aos golpes descarregados por elles com tal firmeza, que nunca deixou de ser fatal.

Cunha de Menezes, convicto da inefficacia dos seus esforços contra os quaes se levantava, além da audacia e cynismo dos malfeitores, um triplice embaraço que mais do que estes contrastava aquelles esforços, — a falta de população, de tropas e de estradas, embaraço que era favorecido indirectamente pela indifferença dos mais fortes, e directamente pelo temor da maior parte dos moradores, renunciou ao empenho, que por muito tempo alimentou de reivindicar os fóros da administração assim affrontados diaria e ostensivamente pelos sobreditos malfeitores.

Com esta mudança de resolução coincidiu a sua promoção ao lugar de governador da Bahia. Em 31 de agosto de 1774 entregava elle a José Cesar de Menezes, a quem já nos referimos, as redeas do governo de Pernambuco, então, como ainda hoje, difficeis de sopesar.

José Cesar teve de voltar a sua attenção para a guerra com a Hespanha; e quatro mezes depois de haver tomado conta do governo, fez partir para a Colonia-do-sacramento, então novamente no poder dos hespanhóes, bem como os fortes brazileiros de S.-Miguel, Santa-Thereza, e S.-Pedro-do-rio-grande-do-sul, um regimento de infantaria.

Em 1776 tinham seguido do Recife para aquella colonia cerca de 1.100 pernambucanos.

Á guerra seguiu-se a peste, e á peste a fome como vimos.

Quando se achava assim a braços com este triplice flagello, teve sciencia de que differentes ambulancias que, em parte as custas do regio erario, e em parte ás custas dos negociantes mais ricos da villa haviam sido expedidas por ordem sua para os pontos onde o mal se manifestava com maior intensidade, tinham cahido nas mãos dos salteadores.

O governador mal pôde dominar a sua colera, e na pratica intima com os que tinham muito lugar diante delle, declarou que daquelle momento em diante o principal empenho do governo ficava sendo dar cabo dos criminosos que devastavam a provincia.

Desgraçadamente falleciam-lhe gente e dinheiro para pôr por obra este louvavel empenho.

A terrivel epidemia tinha desolado povoações inteiras.

A fome continuava a gerar os males que em toda a parte são seus companheiros naturaes e inevitaveis.

A secca devastava ainda o interior da provincia como chamma que irrompe do seio da terra, e tudo abraza e destróe.

Mas José Cesar era activo, energico, esforçado e de grandes espiritos. Confiava no poder da autoridade, e tinha por certo que havia de restaurar a tranquillidade e a segurança privadas, e restabelecer o dominio das leis.

Emfim, depois de haver pensado com madureza sobre o grave assumpto, deu ordem a seu secretario para que expedisse em seu nome aos capitães-móres de Iguarassú, Itamaracá, Varzea, S.-Lourenço, Santo-Antão, Tracunhãem, Nossa-senhora-da-luz, Jaboatão, Muribéca, Cabo, Ipojuca e Serinhaem, a circular seguinte:

« Ordena o sr. governador e capitão-general que, para um negocio que entende altamente com a paz publica, se ache vm. no dia 8 do corrente mez, pelas nove horas da manhã, neste palacio, onde se ha de celebrar junta a fim de tratar-se do mesmo negocio.

«Vm. fará igual aviso aos coroneis das ordenanças que houver em seu districto. »

No dia designado acharam-se presentes onze capitães móres e outros tantos coroneis.

Depois do almoço, durante o qual lhes disse, explicou e particularizou todo o seu pensamento, convidou-os o governador a chegarem até aos paços do senado da camara de Olinda.

Uma galeota, que estava ás ordens em uma das rampas do palacio, os recebeu e os conduziu á capital ilustre.

A sessão da junta foi secreta.

Todos presumiram que a fome e a peste eram os motivos principaes da reunião, mas dificilmente conciliaram esses motivos, que estavam no publico dominio, com o sigillo que se guardou durante a sessão, e continuou a ser mantido depois do seu encerramento.

Seguiram-se, como é facil imaginar, differentes versões e fizeram-se longos e variados commentarios.

Fallou-se de guerra no exterior, de geral recrutamento, e de novos impostos.

Veiu logo a pêllo lembrar igual ajuntamento que se verificou em 1727, sob o governo de Duarte Sodré Pereira, e o imposto decretado nessa occasião pelo dito ajuntamento, imposto calculado em um milhão e cincoenta mil cruzados, que se tornou effectivo em vinte annos, e foi destinado a occorrer aos gastos com o casamento dos principes de Portugal.

Cuidou-se em oppôr á forçada contribuição, caso viesse a verificar-se, a resistencia que naquelle tempo apresentaram os povos da ribeira de S.-Francisco.

Mas passaram-se dias e semanas sem que acto algum, publico, official, ou simples revelação particular viesse confirmar as suspeitas. A deliberação continuou trancada debaixo dos sellos do mais rigoroso segredo.

Uma manhã um batalhão de infantaria, devidamente municiado, moveu-se, e pôz-se em ordem de marcha na direcção do sul.

Este batalhão fez alto em Afogados.

— Temos guerra, gritaram os meticulosos pelos angulos da villa.

Alguns parasytas, plantas conhecidas e existentes em todas as regiões, mas muito mais abundantes nas regiões officiaes, ou governativas, correram a palacio a verem si podiam, pelos meios que sabe a astucia perfida e servil, inferir das palavras de José Cesar, ditas na intimidade, o destino a que se dirigia a columna militar, inesperadamente posta em armas e a caminho. O semblante do governador, porém, semelhava uma superficie plana; não apresentava uma só ruga que pudesse trahir occulto desgosto, ou indicar grave apprehensão. Si da fronte passavam a estudar as palavras de José Cesar, não descobriam no sentido destas menos discrição e reserva do que tinham encontrado na expressão daquella. Os labios do governador guardavam com a severidade da disciplina militar e das praticas do governo naquelles tempos silencio absoluto a respeito do acontecimento que preoccupava os grandes e o popular.

A curiosidade publica mostrou-se dentro em pouco ainda mais excitada com certas noticias trazidas do interior pelos boiadeiros, almocreves e estafetas. Em todos os districtos, por ordem dos respectivos capitães-móres, de acôrdo com os coroneis de ordenanças, se tinham levantado milicias locaes que evidentemente se aprestavam para um fim de grande importancia, a julgar pelas apparencias.

Das sédes de alguns desses districtos já os destacamentos haviam marchado para certos e determinados pontos que os informantes não sabiam dizer.

Emfim, tendo reunido todos estes elementos de duvidar e de decidir, e os tendo pesado na balança da critica, arte ou sciencia commum a todas as sociedades ainda as que se acham no estado mais rudimentar, julgou-se o publico autorizado a affirmar que se tratava de effectuar uma diligencia de alta monta, para a qual tinham de concorrer simultaneamente as differentes forças locaes, de combinação com algum destacamento da capital.