XIII


O Cabelleira entretanto atravessava matos, riachos e taboleiros por novos caminhos que, infatigavel e ousado, ia abrindo, em direitura ao lugar do seu nascimento.

Sentia-se attrahido para esse lugar por uma saudade infinda, por uma confiança enganosa e fatal.

Parecia-lhe que ninguem, nem a justiça dos homens nem a de Deus, na qual desde os mais verdes annos o tinham ensinado a não acreditar, teriam poder para arrancal-o desses sombrios e protectores escondrijos, dessas grutas insondaveis, perpetuamente abertas ás onças e a elle, perpetuamente fechadas ao restante dos animaes e dos homens que não se animavam a transpor-lhes o escuro limiar com receio de ficarem sepultados para sempre em tão medonhos sarcophagos.

Tendo-se afastado do pé da mata onde haviam sido vencidos e capturados em seus reductos os outros malfeitores, descreveu uma obliqua de cêrca de uma legua no rumo do occidente e desceu depois a uma distancia d’onde pudesse ter debaixo das vistas o Tapacurá, que lhe servia de guia atravéz do sertão.

Estava em pleno deserto. Do lado direito protegiam-no estendidos tabocaes e profundas gargantas de serra inaccessiveis, sem uma habitação, sem viva alma; do outro lado do rio um espinhal basto, alguns serrotes escalvados, catingas sem fim, brejos combustos do calor do sol completavam o largo amparo que lhe abria em seu seio a natureza.

Com a sêcca abrazadora essa região, que nunca fôra amena, ainda na força do verde, estava inhospita, arida, cruel.

Via-se a espaços um pé de chique-chique perdido nos alvos taboleiros, ou entre serros alcantilados, e junto do rio uma ingazeira com a folhagem coberta de sambambaia, um joazeiro solitario e sem fructo.

Seria meio dia.

Bem que o Cabelleira, pelo longo habito de jornadear por dentro dos matos, e pelo cuidado, que tinha, de escusar importunos encontros, só á sombra das arvores fazia a travessa do deserto, comtudo entraram elle e Luiza a experimentar o cansaço que o excessivo calor gera maxime durante uma viagem de muitas horas.

Luiza mal se podia ter sobre o cavallo, que nem ao menos offerecia o commodo de uma regular montaria. A marcha do pobre animal tanto mais penosa se tornava para os fugitivos quanto as forças lhe iam faltando em consequencia do longo jejum, e da puxada viagem.

Desde muito tempo affeito a viver no deserto, tinha o Cabelleira adquirido uma virtude – sobria, obra de longas privações, e fonte de admiravel heroismo; não assim Luiza, pobre menina, criada com grande affecto, e maternal solicitude.

Não tivera ella uma existencia de gozos e grandezas, mas nunca lhe faltaram os commodos que assegura a vida regrada da familia, que, embora pobre, encontra no trabalho e na economia recursos folgados para todas as necessidades e até para alguns confortos.

Á sombra de um jatobá o Cabelleira parou, e, lançando o olhar por toda a natureza, que os abraçava como a immensidade abraça um ponto:

— Estamos fóra de perigo, disse para Luiza. Esta chorava em silencio. Em seu rosto abatido, mas sempre bello transparecia a magoa profunda que lhe minava o coração, onde se reflectia a viva lembrança das scenas da noite anterior.

— De que chora, Luizinha? perguntou-lhe o bandido com doçura.

Só com a mudez e as lagrimas lhe respondeu a moça, em cujo espirito se haviam concentrado todas as sombras da tristeza, sombras espessas em que o sol em pino não póde lançar um raio de luz siquer.

— Está cansada, não é, meu amor? perguntou o Cabelleira.

— Estou para morrer. Sinto uma pena immensa no coração, e dores insupportaveis na cabeça.

— Não me queira mal, Luizinha, por eu ter sido a causa de todo este destroço.

— Não lhe quero mal; quero-lhe bem, muito bem, Cabelleira. Mas não posso esquecer-me de minha mãi, nem poderei resistir á minha desgraça, que eu considero muito maior do que a sua.

— Descansemos um pouco á sombra deste jatobá. Terei tempo de procurar algumas frutas para vossê comer.

— Não tenho fome, só tenho sêde.

— Vamos então arranchar-nos debaixo daquella ingazeira, que fica a poucos passos do rio.

Tendo-se apeiado ao pé da arvore indicada, o Cabelleira peiou o cavallo em uma baixa que formava a margem, da qual não havia desapparecido de todo a grama nascida com o ultimo inverno; e sem demora desceu ao poço contiguo para apanhar agua em uma casca de sapucaya que descobriu por acaso entre umas folhas seccas.

Notou que quanto mais se estendia a depressão do terreno para o lado do rio, mais augmentava a verdura que a revestia. Conheceu por fim que havia dado em uma vasante.

Semelhante achado pareceu-lhe cousa extraordinaria naquellas alturas invias e desertas. Mas não se tinha enganado; a região que se lhe offerecia á vista não era de todo deshabitada; alli brilhavam vestigios da mão do homem; alli havia o cunho de um esforço de que elle nunca fôra capaz, o cunho do trabalho.

Era pequena a plantação, mas tida, ao que parecia, em alta conta por quem quér que lhe consagrava os seus cuidados e vigilancia.

Estava verde, limpa, matizada de fructos. Com os ramos do gerumuseiro se confundiam as folhas lanceoladas do batateiral. Ao lado da melancia lourejava o melão, de que rescendia suave cheiro; e d’entre o entretecido de verdura formado pelo conjunto dos ramos rasteiros em que se achavam presos estes deliciosos presentes da terra, levantavam-se ao céo, de covas equidistantes, os pés de milho com seus pendões inclinados e suas corpulentas espigas, em torno das quaes se esparziam os fulvos cabellos que costumam adornar estes abençoados fructos.

É indescriptivel o prazer que sentiu o bandido ao deparar com aquelle thesouro.

Tinha a seu alcance com que matar a fome cujos effeitos, começava a sentir, e tinha um presente que offerecer á sua companheira, extenuada de fadiga.

Separar do pé com a faca, duas melancias, e quebrar algumas espigas foram operacões que o Cabelleira praticou em menos de um minuto. O estalar do milho despertou um rapazito que, achando-se alli para enxotar as maracanãs que destroem os milharaes, adormecêra ao calor do dia na extremidade da vasante debaixo de uma latada formada pelos ramos de um pé de maracujá que, com a frescura do solo, se mostrava verdejante e florido.

— Ladrão! Ladrão! gritou o rapazito com valor e força superiores aos que o seu corpo e estatura promettiam.

E armado com um páo, investiu contra o Cabelleira, que a inesperada apparição deixára um instante perplexo com parte do furto em uma mão, e a faca núa na outra.

O rapaz ganhou em poucos passos a distancia que o separava do bandido, e descarregou sobre a cabeça deste, sem dizer tir-te nem guar-te, o páo que trazia alçado. O Cabelleira em represalia atirou-lhe um golpe com o intuito de cortal-o de meio a meio, intuito que foi burlado por Luiza que lhe havia pegado do braço a tempo de evitar a desgraça imminente.

— Cabelleira! Queria fazer uma morte ainda? Meu Deus, abrandai-lhe o coração.

— Luizinha, eu não sei bem o que queria fazer, disse o moço cahindo em si. Mas este dorminhôco deu-me com o seu graveto como si eu fosse algum pinto.

— Quero-lhe muito bem, meu amor, acrescentou a moça com a profunda ternura que, quando verdadeiramente quer e sente o que quer, a mulher sabe ter no olhar, no gesto, na voz. Mas quando o vejo como agora de arma em punho, ameaçando com certeiros golpes, quaes são os seus, a vida de alguem, sinto tão grande dor, que vossê não pode comprehender o meu padecimento.

Cabelleira inclinou os olhos ao chão, metteu a faca na bainha e deu o andar com os fructos debaixo do braço.

— Para que traz vossê estes fructos comsigo? perguntou-lhe Luiza. Elles não nos pertencem, e não podemos apossar-nos, contra a vontade de seu dono, daquilo que não é nosso.

— Que vamos comer? perguntou muito naturalmente o mancebo.

— Comeremos o que nos der o mato. Deus está em toda a parte, e não se esquece dos que invocam a sua protecção.

Cabeleira submisso e humildemente depôz as frutas no chão sem mais reparo. Quanto ao rapazito, guarda da vasante, bavia desapparecido desde que ouvira pronunciar o nome, que de sul a norte significava, para grandes e pequenos, roubo e atrocidade.

Nova sorpresa os esperava na margem, onde o bandido foi dar com dous individuos que de pé o olhavam do alto de uma pedra, tendo um delles pelo cabresto o ardego alazão, já livre da pêa com que o atirára ao campo o Cabelleira.

Defronte da arvore, a cuja sombra os fugitivos haviam descansado, formava o terreno uma grande ribanceira.

Os desconhecidos estavam ahi com a frente voltada para a vasante, o lado direito para o continente, e o esquerdo para o rio, que nessa altura era largo e profundo.

— Parece que vossê veiu enganado, camarada, disse o Cabelleira, saltando em um minuto aos pés daquelle que tinha pela mão o cavallo. Este animal não lhe pertence.

— Este animal é meu no céo e na terra. Ha dous dias o furtaram do meu roçado no Angico-torto. Puz-me na batida do ladrão, e finalmente vim dar com o meu cavalo. Elle é meu, tão certo como estou aqui. Tem o meu ferro na anca direita, e vossê o póde ver, si ainda nãose quiz dar a este trabalho.

— Pois o que eu lhe digo, camarada, é que fosse elle de quem fosse, por mais homem que seja, ninguem será capaz de tiral-o do meu poder.

— Isto agora é que havemos de ver, disse o desconhecido, batendo mão da faca que trazia no cós da ceroula e fazendo-se prestes para lutar pela reivindicação da sua propriedade.

— Monta no teu cavallo, Marcolino, gritou o outro desconhecido ao companheiro; monta no teu cavallo e vai-te embora, que eu só sou demais para lamber este cabra.

Ainda bem não tinha acabado, quando cortava os ares um corpo semelhante a tronco de arvore que o furacão arrebata ás florestas e arroja a distancias incommensuraveis. O fanfarrão fôra jogado com todos seus bellicos aprestos dentro do poço pelas mãos possantes do famoso matador.

— Cabelleira! gritou Luiza, correndo ao lugar onde em menos de um instante se passára a inesperada scena.

Marcolino, que a esse tempo se achava montado no alazão, tendo ouvido este fatal appellido, deu de pernas ao cavallo e fugiu, evidentemente aterrado como si a seus pés houvesse visto cahir um raio.

O Cabelleira, entretanto, tinha corrido ao pé da ingazeira onde havia deixado o bacamarte quando se apeiára. Mas não logrou leval-o ao rosto para disparal-o, como pretendia contra o fugitivo, porque Luiza, unindo-se com elle, e buscando arrancar-lhe a arma das mãos, lhe disse com voz magoada, entre exprobração e pranto:

— Porque não me tira a vida de uma só vez, Cabelleira?

Dir-se-hia que Luiza estava possuida de um espirito angelico.

— De hontem para cá, proseguiu ella, tem jurado milhares de vezes não derramar mais sangue sobre a terra, e milhares de vezes tem quebrado seus juramentos! Sempre que falta á sua palavra, atravessa sem o suspeitar o meu coração com sua faca. Não demore mais o meu penar, mate-me de uma vez. Perdôo-lhe a morte, por Deus lhe juro, por Deus que nos está ouvindo no meio desta solidão.

Luiza tinha-se insensivelmente ajoelhado aos pés do bandido, e lhe abraçava as pernas com mostras de irreprehensivel affecto. Dos olhos rolavam-lhe lagrimas como contas de rozario espedaçado.

Estatico, e confuso, não achou José palavras para responder á exprobração e rogativas que aquelle coração generoso dictava inspirado pela piedade de uma alma grande e terna.

— Não me falle assim, Luizinha, respondeu emfim o bandido, levantando-a e abraçando-a. Quando eu a vejo chorar, sinto-me enfraquecer; quando vossê me pede alguma cousa, sou incapaz de negar-lh’a, ou de resistir á sua vontade.

— Mas de que serve o que me diz, si não se esquece da sua vida tão triste e infeliz? Cabelleira, porque não se ha de tornar brando e terno como Luiza? Olhe. A morte está mais perto de mim do que....

— A morte! exclamou o bandido.

— Sim; dentro em pouco eu o deixarei, mas emquanto não nos separarmos, poupe-me estas scenas que me traspassam o coração. Quando eu desapparecer de seus olhos, não se considere só no mundo. No lugar que meu corpo deixar vasio ao pé de si, ha de ver sempre à alma benevola e amorosa da pobre Luiza; ella o acompanhará por toda a parte para inspirar-lhe os bons pensamentos e aconselhar-lhe a pratica das boas acções. Porque não me dá à consolação de reconhecer em vossê desde já um espirito arrependido dos passados erros?

— Ah! Luizinha! Vossê me abranda com suas palavras, em sua presença eu me considero uma criança.

— É Deus que me ajuda a quebrar seus impetos, a moderar sua colera. Elle ha de ouvir todos meus rogos, ha de inspirar-lhe horror ao sangue e aos instrumentos que o derramam.

Cabeleira, como si tivesse recebido nestas palavras um aviso celeste, replicou:

— Não levantarei mais minha mão contra ninguem, Luizinha. Quer uma prova desta resolução? Veja. É a maior que lhe posso dar.

Tirou o fuzil e a pedra do bacamarte, os quaes metteu na algibeira da vestia.

E por um desses sublimes impulsos que só visitam o homem uma vez na vida, arremessou a arma dentro do rio. Este acto foi seguido de outro que o completou e confirmou. Batendo com a faca sobre uma pedra que ficava na ribanceira, fez saltar dentro da agua metade da folha de aço que tinha cortado o fio de muitas vidas preciosas, e feito correr muito sangue innocente sobre a terra.

O bandido obrou estas duas acções com tanta fé e grandeza d’alma, que Luiza correu a elle dominada de peregrina commoção, e o apertou em seus braços.

Só o deserto foi testemunha desta grande scena, porque elles estavam, como havia pouco, sós.

O menino que guardava a vasante havia desapparecido logo que ouvira pronunciar o nome do Cabelleira.

Os dous desconhecidos, um salvo das aguas, outro salvo do tiro imminente, tinham corrido a refugiar-se no seio da espessura.

— E agora, Luizinha, terá ainda alguma cousa que dizer de mim? perguntou José com ingenuidade infantil.

— Os meus rogos foram ouvidos por aquelle que dalli nos vê e ouve como pai misericordioso. O medo que eu tenho agora, é que as tropas o peguem e o roubem de meus braços! Oh! fujamos já deste lugar Quem sabe si aquelles homens não correram a denuncial-o! Misericordia, meu Deus! Que fazemos ainda aqui?

Puzeram-se no mesmo instante a caminho na direcção do occidente.