XIV


O sol chegou ao horizonte, e as sombras começaram a cobrir a vasta solidão.

O Cabelleira parou ao pé de um serrote, e escutou.

Um ruido estranho vencia a distancia e vinha echoar aos ouvidos dos fugitivos.

— Estamos perto, disse elle. Não ouves este barulho? São as aguas do Tapacurá que cahem no Capibaribe. De madrugada atravessaremos este rio, e si bem andarmos poderemos estar depois de amanhã a esta hora em Goitá, terra do Cabelleira.

— Ai! disse a moça. Não posso mais.

Tinha as faces em braza, e os olhos, injectados, accusavam a febre ardente que a consumia desde a noite anterior.

— Não esmoreças, meu bem; disse o mancebo. Havemos de ser felizes.

— Onde? Neste mundo? perguntou ella com incredulidade. Na terra não ha felicidade, Cabelleira; na terra só ha dores e prantos, saudades e remorsos.

— Pois eu te mostrarei que se póde ser feliz no deserto, no fundo das brenhas. Não matarei mais a ninguem, meu amor. Bem dentro da mata virgem, em um lugar que só eu conheço, ha um olho d’agua, que nunca deixou de correr. Junto deste olho d’agua ha uma chã, no fim da chã um bosque, e por detraz do bosque uma montanha immensa que rompe as nuvens. O olho d’agua nos matará a sêde todo o anno; na chã levantarei uma casinha de palha para nós; no meio do bosque abrirei um roçado que nos ha de dar farinha, macaxeira, feijão, e milho com abundancia; e quando a secca fôr muito forte, como esta, subiremos á serra, e ahi passaremos dias melhores.

— Si assim fosse.. Si assim pudesse ser... balbuciou Luiza.

— Porque não?

— Porque? Porque a desgraça ahi está para desmentir o seu sonho, Cabelleira.

— Olha, Luizinha. Os homens me deixarão logo que eu não os offender mais. Não sei ainda trabalhar, mais hei de saber. Tu me ensinarás, e eu aprenderei.

O Cabelleira disse estas palavras com a ingenuidade e doçura de uma criança. Luiza não se pôde conter; correu a elle, e pela segunda vez o apertou em seus braços e cobriu com as suas lagrimas. Elle abraçou-a e beijou-a com a effusão do primeiro amor, que, depois de longamente adormecido, desperta de subito com as energias que cresceram durante o somno, e se fizeram forças invenciveis.

— Alli adiante, disse o Cabelleira apontando para um embastido de arvores que apparecia ao pé de um serrote; poderemos passar a noite, a nossa primeira noite de noivado.

Luiza estremeceu, e suspirou. Si não se tivesse arrimado ao braço do bandido, teria cahido.

— Triste noivado, Cabelleira, triste noivado, que se cobre de prantos e luto.

— Não te amofines assim. O Cabelleira não é mais o assassino, Luizinha. O ladrão, o matador já não está aqui ao pé de ti. Quem aqui está é um homem que quer ser um homem de bem.

Deram o andar para o lugar indicado.

A este tempo o sol tinha desapparecido, e o horizonte estava já envolto nas sombras precursoras da noite. Nem leve brisa movia as folhas dos matos mudos e quêdos.

Os perfis das arvores solitarias desenhavam-se, no fundo do pavoroso ermo, como perfis de phantasmas.

Os fugitivos entraram no embastido, e depois de alguns passos deram em uma clareira, especie de asylo reservado pela natureza aos peregrinos que vagam sem rumo e sem guia.

Uma fogueira foi logo improvisada para terem luz durante a noite e evitar que se aproximassem as onças cujos uivos medonhos começavam a repercutir nas quebradas e gargantas das serras.

Procurava o mancebo galhos seccos para entreter o fogo, quando, ao pé de uma arvore que se levantava a um lado da clareira, deu com uma tosca cruz de pau cravada na terra.

Era quasi noite, e, no meio das sombras crepusculares, confundiu elle ao principio, o emblema da redempção com um tronco de arvore cortada por algum viajante transviado, ou despedaçada pela tormenta.

Quando reconheceu o sagrado emblema, o Cabelleira, suspenso pela sorpreza, sentiu-se abalado ao mesmo tempo por uma commoção desconhecida. No lugar occupado pela cruz tinha elle assassinado um anno antes um marchante de gados para lhe roubar o dinheiro que trazia da feira em Santo-Antão.

O bandido voltou o passo atrás horrorizado e correu em busca da moça, gritando, como um menino:

— Luizinha! Luizinha!...

A moça, afflicta sem saber por que, lançou-se ao seu encontro e o recebeu em seus braços.

— Ninguem te ha de tirar daqui, disse ella, suspeitando que o queriam prender. Não, não, tu me pertences. Deus ajudou-me a pôr-te no caminho do bem. Ninguem tem mais o direito de te perseguir.

— Eu o vi lá outra vez, Luizinha. Elle olhou-me silencioso e triste.

— Elle quem? perguntou ella.

— O marchante; o velho a quem assassinei para roubar. Lá está elle com os cabellos brancos ensopados em sangue.

— Meu Deus! meu Deus! exclamou a moça. Commetteste ainda um assassinato, Cabelleira? Meu Deus, quanto sou infeliz!

— Não, não foi agora; faz um anno; foi alli, junto do jatobá. Olha; não vês aquella cruz de pau enterrada no chão? Foi ahi que matei o sertanejo.

É impossivel descrever a commoção de ambos. O sitio, a hora, tudo concorria para dar á impressão uma intensidade que ia ao fundo do coração, á medula dos ossos.

— Estou me lembrando de tudo, proseguiu o bandido. Eu estava sentado, com o clavinote atravessado nas pernas debaixo daquelle pé de pau. Ouvi as pizadas de um cavalo, e o estrallar de garranchos e cipós que se quebravam. Metti-me um pouco mais para dentro, a fim de ver, sem ser visto, quem é que vinha. Eu estava com fome, e não tinha dinheiro nenhum. «Si fosse um homem que trouxesse dinheiro — pensei eu — estava muito bem»!! Neste momento o cavalleiro passou por diante de mim. Trazia chapeu novo, um gibão de panno-fino azul, botas lustrosas e esporas de prata; montava um cavallo russo-pombo, gordo e passeiro. Conheci logo que era um marchante. Levei o bacamarte ao rosto, e quando o cavalleiro quebrou alli à direita para tomar o vau do rio, fiz-lhe fogo na cabeça. Corri com a minha faca na mão ao lugar onde elle havia cahido. Estava morto; a balla tinha-lhe entrado ao pé da orelha direita e sahido acima do olho esquerdo. Ambos os olhos estavam da banda de fóra, o cabello e a barba nadavam em sangue. Tirei-lhe um maço de patacões que trazia em um dos bolços do gibão, o punhal apparelhado de prata, os botões de ouro, o relogio e as esporas; e metti-me no mato virgem.

Luizinha mal pôde ouvir esta historia que foi rapidamente contada, com vivas e medonhas côres.

— Misericordia, Senhor! exclamou ella.

— Elle lá está, Luizinha, de pé, com o chicote na mão, olhando para mim com seus olhos mortos, á flór da cara.

A moça meditou um momento.

— Vamos; disse por fim, encaminhando-se para a sepultura; vem comigo.

— Oh! não; aquella visão me aterra. Nunca tive tanto mêdo, eu que vi immensos cadaveres banhados em sangue aos meus pés.

— O medo passará em um instante, Cabelleira.

— De que modo, Luizinha?

— Vamos. Vem rezar comigo em cima da cova ao pé da cruz.

— Rezar?

— Assim que tiveres rezado um padre-nosso e uma ave-maria em tenção do morto, sua alma desapparecerá de tua vista. Vamos, Cabelleira.

O bandido deixou-se ir a modo de arrastado pela moça que parecia, com seu vestido azul e seu lenço branco, passado em torno do pescoço, o anjo da prece na solidão.

Ajoelharam-se ao pé da cruz, Cabelleira com a face quasi occulta por seus longos cabellos negros, Luiza com a cabeça erguida, e os olhos postos na frouxa claridade do sol que se desvanecia na abobada celeste. Defronte delles a cruz resequida, solitaria e muda testemunhava aquella scena com a solemne indiferença dos symbolos sagrados que é muito mais expressiva e eloquente para os seus crentes do que as vozes da mór parte dos sacerdotes da respectiva religião.

— Reza, Cabelleira; disse a moça ao matador assombrado.

— Ai, Luizinha! Não sei rezar! disse elle com voz tão sentida e magoada que indicou a pena profunda que lhe cortava o coração.

Elle estava na realidade commovido até ás entranhas. Superexcitado pela falta de alimentação, pelo cansaço da jornada, pelo calor do dia, pelas recordações que o affligiam de envolta com o remorso incipiente, via a cada canto a terrivel visão reproduzida na clareira, na selva, nos ares, finalmente em toda a parte aonde volvesse os pavidos olhos.

— Eu te ensinarei, redarguiu Luizinha. Dize comigo.

A moça principiou então em voz alta o padre-nosso.

A voz do bandido, ao principio titubante e temerosa, foi-se pouco e pouco animando, e elevando.

Quando houveram de passar á ave-maria, o Cabelleira tinha já os olhos pregados na cruz, e a fé, que começava a germinar em seu espirito, elevava-o insensivelmente a regiões desconhecidas, onde, sem que elle pudesse explicar como, lhe davam a respirar confortos que só podiam ser celestiaes.

Da ave-maria passaram á santa-maria e desta á salve-rainha.

Em cada uma das palavras destas orações achava o bandido uma belleza nova e insinuante que lhe despertava delicioso sentir.

Seu espirito, que durante vinte annos só conhecêra idéas de sangue e morte; seus ouvidos, affeitos a escutarem palavras licenciosas, insultos, arrogancias, queixumes e maldições; recebiam agora doces expressões que annunciavam uma consoladora existencia superior.

Do pavor, que trouxera aos pés da cruz, passára a uma fortaleza de animo quasi invencivel.

Antes de se levantar volveu os olhos em torno de si e não viu mais a visão que o amedrontára, havia pouco.

— Oh! Luizinha,como é poderosa a oração! disse elle. Minha mãi, que tantas vezes pôz as suas contas nas minhas mãos, bem sabia que a oração tem mais força do que os homens e vence todas as armas! É por isso que me ensinava a rezar a mim que só aprendi a tirar a fazenda e a vida dos meus semelhantes.

Datou desse feliz momento o arrependimento do Cabeleira.

Depois de offerecidas estas orações, levantaram-se os fugitivos, e foram depôr cada um seu beijo aos pés da cruz do ermo.

No bandido já não havia o assassino, havia um espirito contricto, um coração cheio do temor de Deus. Uma mulher fraca, tendo ao seu serviço unicamente a benevolencia natural, a perseverança, as lagrimas e um passado quasi desvanecido, havia operado uma conversão com a qual poderia legitimamente orgulhar-se um verdadeiro apostolo do christianismo.

Com sua luz suave enchia o deserto o astro das recordações e da saudade. O céo estava azul e estrellado. As brisas da noite começavam a mover as folhas do bosque, onde os silvos das cobras, os pios das aves erradias, os uivos dos animaes carniceiros formavam lugubre e medonha orchestra.

Luizinha cahiu em uma especie de somnolencia e pouco depois sentiu perturbação mental, e veiu-lhe delirio, durante o qual deixou escapar palavras desconnexas. A febre que a devorava tinha augmentado com a excessiva fadiga, e com a intensidade das impressões do dia. Cabelleira estendeu por cima della a sua vestia de couro, e, profundamente commovido, foi sentar-se ao pé da fogueira para não a deixar extinguir-se, e para impedir que se aproximassem as onças que não cessavam de ulular em derredor delles, ameaçando devoral-os. A vida no deserto está exposta a perigos, que mal comprehende o que não nasceu no meio delles; só os compensa a liberdade que se depara em qualquer dos gozos que ahi se logram.

Pela madrugada elle adormeceu ao peso da fadiga, e ao silencio que foram fazendo em torno de si as féras. Quando acordou era quasi dia. Os passarinhos cantavam com o enthusiasmo que desperta em todos os corações o raiar de um dia de verão no seio da natureza.

Seu primeiro cuidado foi saudar aquella a quem devia a resurreição de sua alma, outr'ora em trevas afflictivas, agora inundada do suave clarão da piedade christã.

— Luizinha, acorda, disse elle. A manhã está fresca. Os passarinhos cantam. A viração tem os cheiros do deserto.

Aproximou-se de Luiza, tomou-a nos braços, conchegou-a ao seio, e depoz-lhe nos labios um beijo de amor. Os labios da gentil menina estavam frios, seu corpo gelado. Luiza não pertencia mais a esta vida.

Reconhecendo a cruel realidade, o bandido deu um grito de dôr que atroou a immensa solidão como urro de touro selvagem.

— Morta! Morta! Luizinha!

O cadaver da moça escapou-lhe dos braços, mas logo o bandido cahiu de joelhos aos pés desse corpo inanimado, com o qual tinham fallecido todas suas esperanças e felicidade.

— Luizinha, responde-me, disse elle. De que morreste, meu amor?

Levantou-se, deu alguns passos a esmo, tornou ao leito de ramos que tinha servido de leito de morte á virgem dos seus pensamentos.

Pegou-lhe das mãos, que beijou uma, duas, innumeras vezes, examinou-as, examinou o rosto da infeliz, e só encontrou ahi os vestigios do transito final. Tudo estava acabado para ella. Foi esta a verdade cruel que elle viu traspassado de uma pena que se não descreve, e que só elle sentiu nesta vida.

Sentou-se no chão, e suspendeu o cadaver para atravessar sobre os joelhos. Um galho da arvore que com sua folhagem havia abrigado a moça durante a noite, afastou-lhe o lencinho branco que lhe envolvia o pescoço, e indiscretamente descobriu aos olhos do consternado amante seus seios virgens.

Ao vel-os, soltou este nova exclamação de dôr. A chamma que Luiza, para salvar Florinda do incendio, transpuzera a noite anterior, havia deixado uma só chaga no lugar onde a natureza tinha-a dotado com um cofre de graças e perfeições peregrinas.

— Queimada! Oh! Luizinha, que soffrimento não foi o teu! Que dores não supportaste em silencio, desgraçada criança! E como fico eu sem ti, meu amor? Ai de mim, Luizinha! Ai de mim!

O animo varonil, que sempre se mostrára inteiro e immoto, agora agitado por commoções tão violentas, dobrou-se emfim e deu larga prova da fragilidade humana. Dos olhos do bandido irrompeu uma torrente de lagrimas. Soluços, como de animal bravio, escaparam de seu peito e echoaram pela immensidade ainda em grande parte adormecida. Havia quinze annos que esses olhos não choravam diante dos mais tristes e lastimosos espectaculos.

— Que noivado o meu! É o noivado do assassino! Oh! meu Deus!

De repente do lado do rio soou um clarim.

Á dôr succedeu o susto, e depois o terror no animo do desgraçado mancebo. Só, sem armas, arrependido de toda sua vida de crimes, que restava ao Cabelleira naquelle doloroso transe?

O clarim soou mais perto, e com as vozes deste instrumento chegou aos ouvidos do mancebo um retintim de espadas e facões que indicava, junto com as sobreditas vozes, a existencia de um corpo militar por aquellas bandas. Andava de feito por alli um dos piquetes do regimento de Christovam de Hollanda, o qual, depois de ter batido algumas matas suspeitas, se recolhia á villa, d’onde havia partido na noite immediata.

Cabelleira depôz o cadaver de Luiza sobre os ramos, e afastou-se para dentro do mato não sem novo sobresalto, á vista do risco em que se achava.

Depois de ter desapparecido, voltou novamente, e suspendeu em seus braços o corpo com o intuito de conduzil-o comsigo para dentro da espessura. Mas quando ia a entrar ahi com os tristes restos do seu thesouro, um homem appareceu na extremidade da clareira. Era o Marcolino que, havendo-se encontrado com o piquete ao cahir da tarde anterior, relatára o que havia acontecido junto da vasante, e se offerecêra para o guiar no rumo do fugitivo.

Este, vendo que a sua vida estava em perigo, e que a perda de um momento podia ser-lhe fatal, resignou-se a deixar o precioso despojo, e internou-se de uma vez no mato.

Com pouco uma companhia de soldados penetrou no pouso onde Marcolino já havia dado com o corpo de Luiza.

— Cheguem, cheguem depressa. Dormiu aqui o assassino. Alli está a fogueira ardendo ainda, e aqui a sua propria companheira, que elle deixou morta. Ah malvado!

Os milicianos rodearam o cadaver de Luiza sobre cujo rosto não seria difficil descobrir ainda vestigios das lagrimas do desgraçado mancebo.

— Perverso! Perverso! exclamaram alguns delles indignados do que viam, mas não sabiam.

— Não satisfeito de ter matado mulheres e meninos no fogo, veiu tirar aqui a vida a sangue frio áquella que o quiz acompanhar.

— Não percamos tempo, observou Marcolino. Elle deve estar perto daqui. Vamos, minha gente, vamos descobrir o assassino emquanto elle não nos escapa.

— É verdade. Alto frente. Toca a corneta, Tiririca.

— Não toques, que si o Cabeleira nos ouvisse, ninguem mais lhe punha o olho em cima, quanto mais a mão.

— Si não fosse esta corneta, já tinhamos pegado o cabra; observou Marcolino.

— Qual cabra nem meio cabra. Aquelle que tem de pegar o Cabelleira está ainda por nascer.

E entraram na espessura.