Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte. Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só.
Há os que deliram; há os que se concentram num mutismo absoluto. Há também os que a moléstia mental faz perder a fala ou quase isso. Quando menino, muito vi loucos e, quando estudante, muito conversei com os outros que essas coisas de sandice estudavam sobre eles, mas, pela observação direta e pelo que li e ouvi dos entendidos, percebi bem a perplexidade deles em face de tão angustioso problema da nossa natureza.
Há uma nomenclatura, uma terminologia, segundo este, segundo aquele; há descrições pacientes de tais casos, revelando pacientes observações, mas uma explicação da loucura não há. Procuram os antecedentes do indivíduo, mas nós temos milhões deles e, se nos fosse possível conhecê-los todos, ou melhor, ter memória dos seus vícios e hábitos, é bem certo que, nessa população que cada um de nós resume, havia de haver loucos, viciosos, degenerados de toda a sorte.
De resto, quase nunca os filhos dos loucos são gerados quando eles são loucos; os filhos de alcoólicos, da mesma forma, não o são quando seus pais chegam ao estado agudo do vício e, pelo tempo da geração, bebem como todo o mundo.
Todas essas explicações da origem da loucura me parecem absolutamente pueris. Todo o problema de origem é sempre insolúvel; mas não queria já que determinassem a origem, ou explicação; mas que tratassem e curassem as mais simples formas. Até hoje, tudo tem sido em vão, tudo tem sido experimentado; e os doutores mundanos ainda gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os colos e os brilhantes, que a ciência tudo pode.
Se a estátua de Isis lá estivesse, havia de cerrar mais o véu impenetrável que cobre o seu rosto. Essa questão do álcool, que me atinge, pois bebi muito e, como toda a gente, tenho que atribuir as minhas crises de loucura a ele, embora sabendo bem que ele não é o fator principal, acode-me refletir por que razão os médicos não encontram no amor, desde o mais baixo, mais carnal, até a sua forma mais elevada, desdobrando-se num verdadeiro misticismo, numa divinização do objeto amado; por que — pergunto eu — não é fator de loucura também?
Por que a riqueza, base da nossa atividade, coisa que, desde menino, nos dizem ser o objeto da vida, da nossa atividade na terra, não é também a causa da loucura?
Por que as posições, os títulos, coisas também que o ensino quase tem por meritório obter, não é causa de loucura?
Há um doente aqui, F. P., em que eu vejo misturados o amor e a presunção de inteligência e de saber. É o mais bulhento e rixento da casa. Desde as cinco horas da manhã até às sete ou oito da noite, ri, vive a gritar, a berrar, proferindo as mais sórdidas pornografias. Compra barulho com doentes e guardas, descompõe-nos, como já disse; mas, dentro em pouco, está ele abraçado com aqueles mesmos com que brigou há horas, há dias.
Há muita coisa de infantil nas suas atitudes, nas suas manias de amor, na estultice de se julgar com grande talento e saber, de provir de uma raça nobre ou parecida. Diz-se descendente de um revolucionário pernambucano, em sexta geração, e que foi fuzilado.
Vi-lhe a letra e uma carta que escreveu a uma pessoa da família. A letra é positivamente de tolo, graúda e redonda. Tem sempre na boca a palavra formidável: meu talento é formidável; tenho uma força formidável; o poder de Deus é formidável; H. é um general formidável. A sua prosápia de educação, de homem fino e de sala, não impede que, por dá cá aquela palha, empregue os termos mais chulos e porcos. Uma hora diz do médico, do chefe da seção, dos companheiros e amigos os maiores elogios; daqui a pouco, está a descompô-los com os seus termos habituais.
Fila os jornais do médico, mas só para tê-los embaixo do braço, pois não os lê e nota-se mesmo em todos os seus atos, gestos e palavras, uma falta de seriação, uma instabilidade mental, mais fácil de perceber, quando se lhe expõe qualquer coisa, do que quando ele pretende narrar um fato ou contar uma anedota. O orgulho dele, além do pai, que é totalmente desconhecido, está nos irmãos, formados nisso e naquilo; entretanto, não o pai, mas estes últimos não escapam da sua língua nas horas de fúria. Tem a acompanhá-lo um guarda particular, que faz pena vê-lo sofrer com ele. A toda a hora e a todo instante, além de outros insultos, está a pôr-lhe na cara que ele ganha sessenta mil-réis para servi-lo.
O velho quer despedir-se, mas, ao que parece, ele precisa muito dessa miséria de ordenado. Não é lá muito velho, mas sofre já de decrepitude. Foi guarda-civil, guarda do hospício e, nesse seu último quartel da vida, para ter com o que viver, tem de aturar o mais insuportável louco que eu tenho conhecido na minha longa convivência com loucos. Mania de grandeza, delírio de saber, de família, de valentia e coragem, uma agitação que não o faz dormir, nem deixa o seu guarda dormir, tudo nela concorre para fazê-lo, nesta sombria cidade de lunáticos, uma espécie à parte, e supliciar os que são encarregados de sua vigilância.
Não me gabo, mas, com ele e muitos outros, tem-se dado um fato muito interessante: eu lhes inspiro simpatia. Quando estive na enfermaria preliminar, ao amanhecer do dia seguinte, mandei comprar um jornal e pus-me a ler no pátio. Um doente recomendado, que lá havia — um velho nortista, moreno carregado, feições regulares, a não ser os malares salientes — sentou-se ao meu lado e quis ler de sociedade comigo o jornal. Disse-lhe que não era conveniente lermos juntos; que ele esperasse, eu lhe daria o jornal. Ouvindo isto, ele levantou-se amuado e amuado me disse:
— Mesmo mostra que você é maluco.
Ele foi transferido para o hospício e, quando deu comigo, disse-me que tivera notícias que eu era do jornal, e procurara-me para conversar; mas que eu já me tinha vindo embora. Tratou-me com uma distinção extraordinária, fez-se meu amigo, pediu-me obséquios, deu-me conselhos e prometeu-me este mundo e outro.
É um louco clássico, com delírio de perseguição e grandeza. É um homem inteligente, mas com cultura elementar, e o seu delírio, desde que não se o interrogue pela base, parece à primeira vista a mais pura verdade. No começo, ele me enganou; e julguei certo tudo o que dizia, mas, por fim, ele me revelou toda a sua psicose. Por me parecer interessante, eu vou reproduzir as histórias que ele me contou, procurando não quebrar a lógica mórbida com a qual as articulava. Ele é de Sergipe e chama-se V. de O.
Quando encontrei V. de O., no corredor do hospício, e ele me falou de forma diferente de todos os outros, como se conhecesse de fato, houvesse lido alguma coisa minha, enumerou-me os seus títulos e trabalhos, dizendo-me até que trabalhara em um jornal de Minas com o Senhor Augusto de Lima, a minha satisfação foi grande. Demais, recitou-me versos dele e, conquanto eles nada valessem, esperei encontrar nele um sujeito lido que, por isso ou aquilo tenha caído ali, eu podia conversar, por ser da minha raça mental.
Nesta seção, como na outra em que estive, não faltam sujeitos que tenham recebido certa instrução; há até os formados. Eu não tenho nenhuma espécie de superstição pelos nossos títulos escolares ou universitários; eles dão algumas vezes algum saber profissional, muito restrito e ronceiro, e nunca uma verdadeira cultura; mas, em todo o caso, a convivência nas escolas com rapazes de inteligência mais aguda, mais curiosos de saber e conhecer a atividade mental indígena ou estrangeira, dá a alguns uma tintura das altas coisas que, nesta minha solidão intelectual, num meio delirante, seria um achado encontrar um.
Coisa curiosa, entretanto, os formados nisto ou naquilo, que me apontam aqui, quase todos eles são possuídos de uma mania depressiva que lhes tira não só a enfatuação doutoral, como também se votam, em geral, a um silêncio perpétuo. Mostraram-me vários, e todos eles eram de um mutismo absoluto. Contudo, um deles, bacharel, o mais mudo de todos, na sua insânia, não se esquecera do anel simbólico e, com um pedaço de arame e uma rodela não sei de que, improvisara um, que ele punha à vista de todos, como se fosse de esmeralda.
Havia um outro, que diziam ser engenheiro; este guardava uma certa presunção do "anelado" brasileiro. Sentava-se perto de mim e sempre atirava com maus modos o seu prato servido para cima do meu. Andava sempre com um ponche, parecia ser isso um hábito de viajante. O seu orgulho não parecia vir do título, mas de um sentimento desmedido da sua aptidão para endireitar a pátria. Soltava frases soltas como esta:
— Que podem estes broncos de empregados conhecer das necessidades do Brasil?
Ou senão:
— O presidente deve vir aqui para conferenciar comigo.
Às vezes, na janela, através da grade, gritava para os bondes, a passar:
— Digam ao doutor E. (o presidente) que não aceite alianças, que só podem perder o Brasil.
Os outros formados nada diziam, ou balbuciavam coisas ininteligíveis.
Vendo aquele homem, que se dizia ter sido estudante do quarto ano de medicina, engenheiro agrônomo, agrimensor, jornalista e fazia versos, é de imaginar que prazer não foi o meu em encontrá-lo e como eu me esqueci da pequena mágoa, que seu mau humor me causou no pavilhão. Mas estava escrito que eu não poderia, no meio de cento e tantos insanos, encontrar um com quem trocasse uma palavra.
Os leitores hão de dizer que não era possível encontrar isso numa casa de loucos. É um engano; há muitas formas de loucura e algumas permitem aos doentes momentos de verdadeira e completa lucidez.
No salão, há um bilhar, e eu admirava que um rapaz, O., que passava o dia inteiro a cantarolar pornografias, em que misturava reminiscências de família, jogasse com consciência bilhar com um outro, que era dos médicos surdos a que me referi. Tinham ambos "conta", conheciam os efeitos, e naquele momento o delírio ou a loucura cessava.
Dá-se o mesmo com a instrução, a educação. A loucura dá intervalos. Eu vi um rapazote, de vinte e poucos anos, explicar aritmética a um outro, divisibilidade, e pelo que me lembro estava certo tudo o que ele expunha. Não me quis aproximar, para não parecer importuno, mas pelo que ouvi ao longe nada tenho a atribuir como erro. Entretanto, ele vivia delirando.
Mas o doutor V. de O. foi um desapontamento. Contarei tudo, porque é interessante contar. Já disse como ele travou relações comigo. Disse-me que precisava de mim para uns serviços na imprensa. Pus-me logo às suas ordens, e ele me explicou que vinha sendo perseguido por um complot que tinha até conseguido desmoralizá-lo pelos jornais. A alma dessa conspiração contra ele era a mulher, atiçada pela sogra. Casara-se, depois de ser amante, e ela, no fim de cinco meses, abandonou o lar, levando tudo que nele havia, propondo em juízo uma ação de nulidade de casamento.
A sua causa era advogada por certo advogado que era seu amante e deputado pela Bahia; ele, porém, tinha quatro advogados. Fora sua mulher que conseguira a sua internação no hospício, dizendo à polícia que ele andava aluado e armado para matá-la. Fora preso com um revólver na mão, e, sem mais nem menos, constituíra advogado, ou melhor, advogados. Tinha quatro, mas depois disse-me que eram dois.
Havia, no correr da sua exposição, muitas contradições e exageros. Ele, em começo, me dissera que fora o seu advogado que se interessara por ele para ser tratado com certa deferência no pavilhão. Depois me dissera que o seu patrono se queixava de estar gastando dinheiro em bondes, que não tinha dinheiro.
Há, em muita coisa, um fundo de verdade, mas a exaltação da sua personalidade, a grande conta em que ele tem dos seus talentos, ora de médico, ora de dentista, ora de engenheiro, o seu delírio de grandeza monetária, soa, na verdade que se sente em algumas de suas palavras, como uma nota falsa. A mãe é rica, acaba de receber dois mil contos, os irmãos, cada um tem dois mil contos, etc. etc. Ele mesmo tem tido muito dinheiro e tem dado. Promete-me mundos e fundos. Pijamas de seda, passeios a Petrópolis, dinheiro — a gruta de Ali-Babá. É exigente de roupas, que as tem possuído de primeira qualidade — tudo bom e fino, vindo do estrangeiro para ele. Tem uma demanda com a administração, por causa de uns suspensórios que lhe custaram dezoito mil-réis. Em toda a sua narração de passeios, etc., não se esquece nunca de dizer o preço do custo das coisas. Apesar de sua prosápia sabichona, é de uma ignorância crassa. Erra na ortografia como uma criança de colégio e a sintaxe é um Deus nos acuda. Obriga-me a rever os seus escritos. Fala com ênfase, entre os dentes, sibila e tem a risada do João Barreto. Não sabe onde fica Blumenau e quis me convencer que os ladrilhos do vestíbulo do hospício eram mármore que vinha antigamente da Itália, e me explicou uma coisa fantástica de fornos, em que o mármore era transformado em ladrilhos. A sua pretensão intelectual é uma coisa comum à gente de Sergipe e o enlouqueceu, ao que parece.
Não tem a mínima noção de ciências naturais e das suas aplicações. Não diz minerais de um país, diz a sua mineralogia. É um caso curioso, com algum parentesco com o do F. P., mas mais seguro do que este no seu delírio de grandeza intelectual e de fortuna, que F. P. não tem, mas em compensação tem o de força e de amor, e de fêmea, que V. O. também tem.
Diz-se conhecido em toda a parte, no Chile, na Argentina, mas nada sabe do Rio de Janeiro. De repente, porém, conta que já esteve aqui, que já foi preso no estado de sítio da vacina obrigatória com Jaques Ourique.
Alia, à sua pretensão intelectual, a sua cisma de fortuna, a um sentimento de uma grande importância social.
Para ele, ele é objeto de uma perseguição de poderosos; entretanto, diz que dispõe de poderes quase sobrenaturais de hipnotismo. Já conseguiu furtar os autos de seu processo de nulidade com auxílio dele e fez outras proezas.
Todos o têm como homem temível, e por isso procuram inutilizá-lo. Nada sei sobre os seus antecedentes. Só posso ter como certas coisas que ele repete da mesma forma; entretanto, não garanto, pois esse homem, no seu delírio, omite alguma coisa, para confessar mais tarde, e confessa outras, para negar logo depois. Disse-me que não esteve no xadrez dos loucos uma hora; outra, diz que esteve. Diz que não esteve na Pinel, outra hora diz que esteve. Disse-me que era o seu advogado quem se interessava por ele; outra hora, diz que é um pronto e não tem informação.
Ele está muito mais bem instalado do que eu. Tem um quarto com um só companheiro, uma mesa para o seu uso, com uma gaveta e chave, onde pode escrever à vontade. Eu, se quero escrever, tenho que ir pedir para fazê-lo no gabinete do médico, que isso me facilitou. Para mim, ele tem fortes recomendações políticas e outras poderosas que fazem ter ele essas regalias excepcionais.
A história do seu casamento me parece fantástica e da sua prisão também. Foram esses amigos políticos, talvez, que, à vista do seu delírio, conseguiram a sua internação e têm contribuído para ter gratuitamente o tratamento que tem. A sua inteligência parece não ter sido nunca grande e a sua fortuna também. Ele conhece o Amazonas, pessoas e coisas de lá. Percebe-se. Diz que ganhou dinheiro viajando com uma lancha que rebocava batelões carregados de mercadorias, que trocava com grande vantagem por borracha, que vendia em Manaus, em grande. Tenho ouvido de pessoas sãs, de juízo, que isto se faz ou se fez naquelas paragens. É, portanto, possível; mas logo vem o delírio, quando diz que os seus batelões carregavam cinqüenta mil toneladas de mercancia.