Poderia alongar-me mais na descrição dos doentes que me cercam. Mas a loucura tem tantos pontos de contato de um indivíduo para outro, que seria arriscar tornar-me fastidioso se quisesse descrever muitos doentes. Há uma grande parte que se condenam a um mutismo eterno. Como descrever estes? Estes silenciosos são bizarros. Há três aqui muito interessantes. Um é um tipo acaboclado, com um cavaignac crespo, denunciando sangue africano, que vive embrulhado em trapos, com dois alforjes pendurados à direita e à esquerda, sequioso de leitura, a ponto de ler qualquer fragmento de papel impresso que encontre. Não chega aos extremos de um português, que vive dia e noite, nas proximidades das latrinas, senão nelas, e que não trepida em retirar os fragmentos de jornais emporcalhados, para ler anúncios e outras coisas sem interesse, mas sempre delirando. O silencioso ledor não faz tal, mas escolheu o vão de uma janela, para aí passar horas inteiras deitado, como se fosse um beliche de navio. Outro silencioso, que tem a mesma atitude, é mulato, simpático, calmo, que só vai para as refeições a correr. O refeitório fica fora da seção e um pouco distante. Outro silencioso interessante é um matuto de Cabo Frio, que parece uma estátua. É de uma grande atonia, de uma inércia que não se concebe. Para deitar-se, é preciso ser trazido para a cama, mas logo se levanta e encosta-se à parede de um corredor e aí fica, até que o tragam de novo. Ama o silêncio e estar de pé. Encostado à parede, hirto, olhos parados, sem brilho nem expressão qualquer, parece uma estátua egípcia, um cimélio de templo.

O guarda rondante, aquele que vigia os doentes, à noite, é um velho português paciente e enérgico, que não tem nenhuma espécie de mau humor, para trazê-lo, duas, três e mais vezes para a cama.

O que assombra nestes portugueses é que, sendo homens humildes, camponeses em geral, de fraca educação e quase nenhuma instrução, se possam conter, abafar os ímpetos de mau humor, de cólera, de raiva, que o procedimento dos doentes provoca.

V. de O., outro dia, chamou o enfermeiro de todos os nomes sujos que há no português do Brasil e de Portugal; o F. P., toda a hora, todo o instante, de envolta com as mais torpes injúrias, descompõe os guardas na sua nacionalidade: galegos, etc. Daí a pouco, está a mimá-los e pedindo-lhes favores. O substituto do chefe de enfermeiros é uma vítima dele. É um português, novo, doce, simpático. Ouve tudo o que ele diz, ri-se, e daqui a pouco está atendendo os pedidos do F. P. Não é só com este que ele assim procede; é com o meu guarda também. Um rapaz espanhol, muito moço, simpático, com uns bonitos olhos ternos, que suporta da mesma forma todos os insultos dele e de outros.

Os enfermeiros, na seção em que estou, são em geral bons. Há, porém, uma casta deles que não presta. São os tais particulares. Estes são aqueles que os doentes abastados das primeiras classes são autorizados a trazer. Nem todos são assim, mas com dois eu implico solenemente; e me fazem lembrar a insolência do Bragança do pavilhão, que tem as costas quentes, por causa da proteção que lhe dispensa o poeta épico da Psiquiatria, H. R. Dizem que este está acabando os Timbiras de Gonçalves Dias e, para embeber o seu espírito de cadência e harmonia, dá freqüentes bailes em casa, em que o Bragança, o tal doutor do guarda-civil, figura como chefe do buffet.

Esses dois enfermeiros são absolutamente insuportáveis. Um, pela conversa que ouvi dele, é xucro português, sem as qualidades dos portugueses em geral, mas fátuo dos seus namoros e da sua irresistibilidade como homem, em face das mulheres. Ouvi-o conversar e sinto não poder reproduzir a conversa. Enumerava as enfermeiras que havia namorado, e o seu interlocutor, perguntando:

— Por que você não continuou o namoro com F.?

— Só podia ser por carta.

— Que tinha?

— Não gosto. O namoro só serve quando se pode beijar e apertar os peitinhos.

Creio que foi Maxime du Camp que disse ser uma lenda a história do senhor rico que desgraça as raparigas pobres. Tenho verificado que ele tem razão: são os rapazes pobres que as perdem. Este portuguesote tenho para mim que é candidato a um processo de defloramento ou de estupro.

O outro é muito confiado, tem uns ares de fadista e guitarreiro, com quem eu implico mais do que com o ar fanfarrão e meloso do nosso capadócio.

Os guardas em geral, principalmente os do pavilhão e da seção dos pobres, têm os loucos na conta de sujeitos sem nenhum direito a um tratamento respeitoso, seres inferiores, com os quais eles podem tratar e fazer o que quiserem. Já lhes contei como baldeei no pavilhão, como lavei o banheiro e como um médico ou interno me tirou a vassoura da mão quando estava varrendo o jardim.

Mas na Seção Pinel, aconteceu-me coisa mais manifesta, da estupidez do guarda e da sua crença de que era meu feitor e senhor. Era este um rapazola de vinte e tantos anos, brasileiro, de cabeleira solta, com um ar de violeiro e modinheiro. Estava deitado no dormitório que me tinham marcado e ele chegou à porta e perguntou:

— Quem é aí Tito Flamínio?

— Sou eu, apressei-me.

— O seu S. A. manda dizer que você e sua cama vão para o quarto do doutor Q.

Era este um estudante, que tivera um ataque e vivia no hospital, para curar os efeitos do insulto, que o deixara semi-paralítico.

Fiquei tonto com o carregar eu só a cama; o capadócio nem se deu ao trabalho de mandar um colega me ajudar, já que ele não queria fazê-lo. Foi preciso um outro doente espontaneamente prestar-se. Este guarda é brasileiro. Depois da minha ascensão no manicômio, ele, quando me encontra no refeitório, olha-me com uma certa desconfiança. Deste e do Bragança, eu tenho alguma mágoa, mas dos outros que me trataram por você e do Camilo, do pavilhão, que me fez lavar, baldear e varrer, nenhuma.

Não só eu fora para lá remetido como sujeito sem eira nem beira, devido à tolice dos meus parentes, pois me podiam internar sem passar por lá, mesmo com auxílio da polícia, como também não tinha ele o ar de feitor do violeiro da Pinel, e trabalhava, isto é, baldeava, lavava, varria junto conosco.

No hospício, das duas vezes em que lá estive, nunca me fizeram executar qualquer serviço, mas, se quisessem fazer, eu me prestaria, desde que ele estivesse de acordo com as minhas forças e os meus hábitos anteriores. Eu me prestava mesmo a aprender um ofício que fosse leve, mas essas tarefas pesadas...

Digo com franqueza, cem anos que viva eu, nunca poderá apagar-me da minha memória essas humilhações que sofri. Não por elas mesmo, que pouco valem; mas pela convicção que me trouxeram de que esta vida não vale nada, todas as posições falham e todas as precauções para um grande futuro são vãs.

Eu tinha tudo, ou tenho tudo, para não sofre-las, tanto mais que não as provoquei. Sou instruído, sou educado, sou honesto, tenho procurado o mais possível ter uma vida pura. Parecia que sendo assim, que — sendo eu um rapaz que, antes dos dezesseis anos, estava numa escola superior (que todos me gabavam a inteligência, e mesmo até agora ninguém nega) — estivesse a coberto de tudo isso. Mas eu e a sorte, a sorte e eu, nos juntamos de tal sorte, nos irmanamos, que vim a passar por transes desses.

Desde a minha entrada na Escola Politécnica que venho caindo de sonho em sonho e, agora que estou com quase quarenta anos, embora a glória me tenha dado beijos furtivos, eu sinto que a vida não tem mais sabor para mim. Não quero, entretanto, morrer; queria outra vida, queria esquecer a que vivi, mesmo talvez com perda de certas boas qualidades que tenho, mas queria que ela fosse plácida, serena, medíocre e pacífica, como a de todos.

Penso assim, às vezes, mas, em outras, queria matar em mim todo o desejo, aniquilar aos poucos a minha vida e sumir-me no todo universal. Esta passagem várias vezes no hospício e outros hospitais deu-me não sei que dolorosa angústia de viver que eu me parece ser sem remédio a minha dor.

Vejo a vida torva e sem saída. A minha aposentadoria dá-me uma migalha, com que mal me daria para viver. A minha pena só me pode dar dinheiro escrevendo banalidades para revistas de segunda ordem. Eu me envergonho e me aborreço de empregar, na minha idade, a minha inteligência em tais futilidades. Ainda tenho alguma verve para a tarefa do dia a dia; mas tudo me leva para pensamentos mais profundos, mais doridos e uma vontade de penetrar no mistério da minha alma e do Universo.

Eu me indago, de mim para mim, se, por acaso, não é amor que me corrói. Mas vejo bem que não. Passei a idade de tê-lo, fugindo dele, para que ele não me criasse sofrimento e não prejudicasse a minha ambição de glória. A própria Heloísa achava-o nocivo nos homens de pensamento; é verdade que ela também achava o seu Abelardo virtuoso.

Se fosse ele, eu teria explicação, pois, conforme diz Bossuet, "Posez l'amour, vous faites naitre toutes les passions; ôtez l'amour, vous les supprimerez toutes."

Não amei nunca, nem mesmo minha mulher que é morta e pela qual não tenho amor, mas remorso de não tê-la compreendido,devido à oclusão muda do meu orgulho intelectual; e te-la-ia amado certamente, se tão estúpido sentimento não tivesse feito passar por mim a única alma e pessoa que me podiam inspirar tão grave pensamento.

Li-a e não a compreendi...

Ah! meu Deus!

Ontem, matou-se um doente, enforcando-se. Escrevi nas minhas notas:

"Suicidou-se no pavilhão um doente. O dia está lindo. Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja o dia tão belo como o de hoje."

Não me animo a dizer: venceste, Galileu; mas, ao morrer, quero com um sol belo, de um belo dia de verão!