CAPITULO I

O DESASTRE


ACHAVA-ME um dia defronte aos guichets do London Bank, á espera de que o pagador gritasse a minha chapa, quando vi, a cochilar num banco ao fundo, certo corretor de negocios, meu conhecido. Fui-me a elle, alegre da opportunidade de illudir o fastio da espera com uns dedos de prosa amiga.

— Esperando sua horinha, hein? disse-lhe, com um tapa amigavel no hombro, emquanto me sentava ao seu lado.

— E' verdade. Espero pacientemente que me cantem o numero, e emquanto espero philosopho sobre os males que traz á vida a deshonestidade dos homens.

— ?

— Sim, porque si não fosse a deshonestidade dos homens tudo se simplificaria grandemente. Esta demora no pagamento do mais simples cheque, donde provem ella? Da necessidade de controle em vista dos artificios da deshonestidade. Fossem todos os homens sérios, não houvesse hypothese de falsificações ou abusos e o recebimento de um dinheiro far-se-ia instantaneo. Ponho-me ás vezes a imaginar como seriam as cousas cá na terra si um sabio eugenismo désse combate á deshonestidade pela eliminação completa dos deshonestos. Que paraiso!

— Tens razão, concordei eu, com os olhos parados de quem pela primeira vez reflecte numa idéa. A vida é complicada, existem leis, policia, embaraços de toda a especie, burocracia e mil peias, tudo porque a deshonestidade nas relações humanas constitue, como dizes, um elemento constante. Mas é mal sem remedio...

E por ahi fomos, no philosophar vadio de quem não possue cousa melhor a fazer e apenas procura matar o tempo. Passamos depois a analysar varios typos alli presentes, ou que entravam e sahiam, na azáfama peculiar aos negocios bancarios. O meu amigo, frequentador que era de bancos, conhecia a muitos e foi-me enumerando particularidades curiosas relativas a cada qual. Nisto entrou um velho de apparencia distincta, já um tanto dobrado pelos annos.

— E aquelle velho que alli vem? perguntei.

— Oh ! Aquelle é um caso sério. O professor Benson, nunca ouviste falar?

— Benson... Esse nome me é desconhecido.

— Pois o professor Benson é um homem mysterioso, que passa a vida no fundo dos laboratorios, talvez á procura da pedra philosophal. Sabio em sciencias naturaes e sabio ainda em finanças, cousa ao meu ver muito mais importante. E tão sabio que jamais perde. Dou-me com esses rapazes todos que trabalham nas secções de cambio e por elles sei deste homem cousas impressionantes. Benson joga no cambio, mas com tal segurança que não perde.

— Sorte !

— Não é bem sorte. A sorte caracteriza-se por um affluxo de paradas felizes, por uma media mais alta de lucros do que de perdas. Mas Benson não perde nunca.

— Será possivel?

— E' mais que possivel, é facto. Deve possuir hoje enorme fortuna. Mora em um complicado castello lá dos lados de Friburgo, mas não cultiva relações sociaes. Não tem amigos, ninguem ainda viu o interior do casarão onde vive em companhia de uma filha, servido por criados mudos, ao que dizem. Sabes que depois da guerra o mundo inteiro jogou no marco alemão.

— Sei, sim, e fui uma das victimas...

— Pois o mundo inteiro perdeu, menos elle.

— Absurdo! Só si fabricava marcos para vender.

— Ao contrario, comprava e revendia marcos já feitos. O marco, talvez te lembres, teve em certo periodo uma oscillação de alta. Renasceram as esperanças dos jogadores e o movimento de compras foi enorme. Benson vendeu nessa occasião. Logo em seguida começou o marco a desandar até zero e para nunca mais se erguer.

— Vendeu no momento exacto, como quem sabe qual o momento exacto de vender...

— Isso mesmo. Com o franco fez cousa identica. Comprou exactamente nos dias de maior baixa e vendeu exactamente nos dias de maior alta. Tem ganho o que quer ganhar, o raio do homenzinho...

— E para que necessita de tanto arame?

— Ignoro. Não leva a vida commum dos nossos ricaços, não dá festas, não consta que seja explorado por mulheres. E' positivamente mysterioso o professor Benson e afigura-se-me um magico que vê atravez do futuro.

Ri-me da expressão do meu amigo e, qual um philosopho barato, murmurei com superioridade:

— Como pode ver atravez do que não existe? O futuro não existe...

— O corretor respondeu-me com uma phrase que naquelle momento não comprehendi:

— Não existe, sim, mas vae existir necessariamente. Dois mais dois — é o presente. A somma quatro é o futuro. Portanto...

— "Vinte e dois !" gritou uma voz da pagadoria.

Era o meu numero.

— Dois mais dois tambem pode ser vinte e dois, gracejei eu, despedindo-me do philosopho. Adeus, meu caro. Na proxima opportunidade continuarás a tua demonstração.

Recebi o dinheiro e sahi para o torvelinho das ruas, onde breve se me apagou do cerebro a impressão do professor Benson e das palavras do meu amigo.

Mas dá a vida mysteriosas voltas e um bello dia, ao despertar de um somno lethargico, quem vi deante dos meus olhos, qual um espectro? O professor Benson !...

Não antecipemos, porém e, antes de mais nada, permittam-me que fale um bocado da minha pessoa.

Era eu um pobre diabo para toda a gente, excepto para mim mesmo. Para mim tinha-me na conta de centro do universo. Penso e sou, dizia commigo, repetindo certo philosopho francez. Tudo gyra em redor do meu ser. No dia em que eu deixar de pensar, o mundo acaba-se. Mas isto parece que não tinha grande originalidade, pois todos os meus conhecidos se julgavam da mesma fórma.

Eu vivia do meu trabalho, recebendo delle, não o producto, mas uma pequena quota, o necessario para pagar o quarto onde morava, a pensão onde comia e a roupa que vestia. Quem propriamente gosavam do meu trabalho eram os socios da firma Sá, Pato & Cia, gordos e solidos negociantes que me enterneciam a alma nas epocas de balanço, ao concederem-me a pequena gratificação constituidora do meu lucro. Com elles trabalhei varios annos, conseguindo reunir o modesto peculio que transformei em marcos e, com grande dor d'alma, vi reduzirem-se a zero absoluto, apesar da theoria de que tudo é relativo.

Continuei no trabalho por mais quatro annos, d'ahi por deante já curado de jogatinas e megalomanias.

Mas, todos nós possuimos um ideal na vida. Meu amigo corretor sonha dirigir a carteira cambial de um banco. Aquelle pobre que alli passa, tocando um realejo que herdou do pae e ao qual faltam tres notas, sonha com um realejo novo a que não falte nota nenhuma. Eu sonhava... com um automovel. Meu Deus ! As noites que passei pensando nisso, vendo-me ao volante, de olhar firme para a frente, fazendo, a berros de klaxon, disparar do meu caminho os pobres e assustadiços pedestres ! Como tal sonho me enchia a imaginação !

Meu serviço na casa era todo de rua, recebimentos, pagamentos, commissões de toda a especie. De modo que posso dizer que morava na rua e o mundo para mim não passava de uma rua a dar uma porção de voltas em torno da terra. Ora, na rua eu via a humanidade dividida em duas castas, pedestres e rodantes, como os baptizei, aos homens acima do commum que circulavam sobre quatro pneus. O pedestre, casta em que nasci e em que vivi até aos 26 annos, era um ser inquieto, de pouco rendimento, forçado a gastar a sola das botinas, a suar em bicas nos dias quentes, a molhar-se nos dias de chuva e a operar prodigios para não ser amarrotado pelo orgulhoso e impassivel rodante, o homem superior que não anda, mas deslisa veloz. Quantas vezes não parei nas calçadas para gosar o espectaculo do formigamento dos meus irmãos pedestres, a abrirem alas inquietas á Cadillac arrogante, que por elles se mettia a reluzir esmaltes e metaes ! O ronco de porco do klaxon parecia-me dizer : — "Arreda, canalha !"

Sonhei, portanto, mudar de casta e por minha vez levar os pedestres a abrirem-me alas, sob pena de esmagamento. E o novo peculio, com tanto esforço accumulado depois do desastre germanico, não visava outra cousa. Foi, pois, com o maior enlevo d'alma que entrei certa manhã na verdureira da esquina e comprei a machina que me mudaria de situação social. Um Ford.

Os effeitos dessa compra foram decisivos na minha vida. Ao verem-me chegar ao escriptorio fonfonando, os patrões abriram as maiores bocas que ainda lhes vi e vacillaram entre porem-me no olho da rua ou dobrarem-me o ordenado. Por fim dobraram-me o ordenado, quando demonstrei o quanto lhes augmentaria o renome da firma o terem um auxiliar possuidor de automovel proprio. E tudo correria pelo melhor, no melhor dos mundos possiveis, si eu me não excedesse na furia de fordizar a todo o transe, com o fito de embasbacar pedestres. A paixão da carreira grelara em mim e, depois de um mez, já não contente com a velocidade desenvolvida por aquelle carro, puz-me a sonhar a acquisição de outro, que chispasse cem kilometros por hora. O augmento de ordenado permittiu-me varias excursões de maluco, nas quaes me embriagava, aos domingos, na delicia de devorar kilometros. Paguei diversas multas, matei meia duzia de cães e cheguei a atropelar um pobre surdo que não attendera ao meu insolente — "Arreda !"

Tornou-se-me o pedestre uma creatura odiosa, embaraçadora do meu direito á rapidez e á linha recta. Pensei até em representar ao governo, suggerindo uma lei que prohibisse a semelhantes trambolhos o transito pelas vias asphaltadas. Adquiri, em summa, a mentalidade dos rodantes, passando a desprezar o pedestre como cousa vil e de somenos importancia na vida.

Por essa epoca um dos meus patrões encarregou-me de liquidar pessoalmente certo negocio com um freguez morador perto de Friburgo.

Muito facil me seria lá ir de trem, mas um rodante da minha marca sorria dos trens. Fui no meu auto, apesar das ruins informações que me deram do caminho. Metti boa reserva de gazolina e atirei-me, qual um doido, por estradas de tropa por onde, creio, nenhum automovel jamais se arriscara a passar. Numerosos contratempos soffri nessa minha viagem de Damasco, mas mesmo assim tudo acabaria sem novidade si a estrada infame não desembocasse de improviso numa optima, recem feita e tão bem conservada como a melhor das pistas de corrida. Mal me vi naquelle setimo céo de macadam, dei toda a força á machina e desforrei-me da lentidão de até alli com uma chispada a 60 por hora, o maximo que o meu fordzinho permittia.

A região que eu atravessava era de maravilhosa belleza. Serras azues ao longe, quaes muralhas de saphira a sopesarem um céo de cobalto. Dia de limpidez absoluta. Paizagem das que vibram de nitidez. Desaffeito aos formosos quadros da natureza, distrahi-me com a novidade do espectaculo e... catrapuz!

·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·

Dormi um longo somno. Quando acordei achava-me num quarto desconhecido, tendo na minha frente... o velho jogador de cambio que vira no banco — o professor Benson !

Foi grande a minha surpreza, e muito maior seria si uma horrivel dôr no meu braço direito me permittisse pensar em alguma cousa alem da lesão soffrida nesse appendice do eixo central do universo.

— Onde estou? murmurei, olhando muito espantado para o professor Benson.

— Em minha casa, respondeu elle. Um dos meus homens o encontrou sem sentidos no fundo de um despenhadeiro, ao lado de um Ford em pandarecos.

— O meu Ford em pandarecos ! Desgraçado que sou... gemi.

A dôr do braço offendido era grande, mas a minha dor moral muito maior. Creio até que entre perder aquelle carro e perder um braço, eu não vacillaria na escolha. Custara-me tanto a conseguil-o... E, além disso, dada a psychologia dos meus patrões, o certo era reduzirem-me o ordenado, já que eu voltaria a servil-os a pé, como outróra...

Tão negra noticia me sombreou de crépes a alma. Não podia conformar-me com o desastre. Delirei. Soube mais tarde, pelo professor, que nesse delirio uma obsessão unica transparecia: o desespero ante o meu retorno á miseravel casta dos pedestres...

Mas tudo passa. A dôr do braço foi-se atenuando e a dôr moral acompanhou-a nesse amortecimento, de modo que pude erguer-me da cama ao cabo de quinze ou vinte dias.

Vi então desenhar-se um problema terrivel na minha frente. Davam-me alta em breve e, não havendo mais razão para permanecer naquella casa estranha, forçoso me seria regressar á cidade. E teria de me apresentar deante dos senhores Sá, Pato & Cia, a pé, murcho, resignado ás suas pilherias e á logica reducção de salario. Deliberei mudar de vida. Quando na manhã seguinte o professor Benson me appareceu no quarto, abri-me com elle.

— Professor Benson, não sei como agradecer o bem que me fez !...

— Fiz o meu dever apenas, declarou com simplicidade o velho.

— Salvou-me a vida, professor. Não fosse a sua preciosa assistencia e o provavel era estar agora esvoaçando pelo outro mundo, como froco de paina psychica. Minha gratidão é immensa. Mas seria infinita si o professor me ajudasse a resolver o problema muito sério que vejo armar-se deante de mim.

— Diga qual é. Já resolvi diversos, tidos como insoluveis, e ser-me-ia grato resolver mais um...

Animado pela bonhomia do velho, abrí para com elle o meu coração. Contei-lhe a mediocridade da minha vida, os meus esforços para juntar o peculio empatado no automovel, a transformação que as quatro rodas operaram -- me na mentalidade e o horror com que agora via o regresso obrigatorio ao pedestrianismo.

— O professor é opulento e pelo que vejo possue uma grande e linda propriedade. Precisará, portanto, de homens que trabalhem nella. Eu não queria sahir daqui. Arranje-me uma occupação qualquer, seja lá no que for. Tenho algumas aptidões e, como a boa vontade é grande, para isto ou aquillo sempre hei de servir. O que não desejo é voltar á cidade e ter de apresentar-me, assim decahido, ante os meus terriveis patrões...

O professor Benson pareceu meditar. Tirou do nariz os oculos de ouro, limpou-lhes os vidros num lenço de linho e depois disse:

— Não necessito aqui de ninguem. Possuo o numero de criados estrictamente precisos para a conservação desta propriedade e não vejo nella funcção que o amigo possa desempenhar. E não o admittiria em hypothese alguma, si de dias a esta parte não sentisse, cá no coração, prenuncios de que minha vida está no fim. Isto me faz sahir da politica que tenho levado até hoje e acceital-o em minha companhia como... confidente.

— Confidente? repeti, sem comprehender o alcance da expressão.

— Sim, confidente. Aproveito-me do acaso tel-o trazido ao meu encontro, afim de confiar-lhe a historia da minha vida. Mas desde já lhe dou um conselho: guarde segredo de tudo, depois que eu morrer. Não que seja caso de segredo, mas vae o amigo ouvir e ver cousas tão extraordinarias que, si o fôr contar lá fóra, o agarram e o mettem no hospicio, como doido varrido. Digo-lhe que guarde segredo para bem seu apenas. Agora sáia. Dê pelos campos o seu primeiro passeio de convalescente e antes do almoço procure-me no gabinete.

Dizendo isto o professor premiu o botão duma campainha. Sem demora vi surgir um criado.

— Acompanhe este moço num passeio pelos arredores e, de volta, conduza-m'o ao gabinete.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.