O CAPITÃO NEMO
QUANDO o criado me fez entrar no gabinete do doutor Benson, o velho não se achava alli. Aproveitei o ensejo para correr os olhos pelas paredes e admirar, ou antes, embasbacar-me com as estranhas
coisas que via. Devo dizer que não comprehendi nada de nada. Conhecia o gabinete de trabalho dos meus patrões e o de muitos outros negociantes. Tambem conhecia consultorios medicos, salas de advogado, salões de hoteis e facilmente tomava pé num delles. Os moveis, os quadros das paredes, os objectos de cima da mesa, os bibelots, as estatuetas, essas cousas todas me valiam por marcas digitaes das que revelam a profissão do dono. No gabinete do professor Benson, porém, tudo me era desnorteante e, fóra as poltronas, nas quaes o corpo afundava, como nas do Derby Club, onde estive uma vez á procura dum figurão, tudo mais valia por citações em caracteres chinezes numa pagina em lingua materna. Pelas paredes, quadros - não quadros communs, com pinturas ou retratos, mas quadros de marmore, como os das usinas electricas, inçados de botõezinhos de ebonite. E reintrancias, afunilamentos que se mettiamm pelos muros como cornetas de gramophone, lampadas electricas dos mais estranhos aspectos, grupos de fios que vinham parallelos aos quatro, aos cinco, aos vinte e, de repente, se sumiam pelo muro a dentro. Todavia, o que mais me prendeu a attenção foi, ao lado da secretária do professor, um enorme globo de crystal, e sobre ella, apontado para o globo, um curioso instrumento de olhar, ou que me pareceu tal por uma vaga semelhança com o microscopio.
Eu lera em creança um romance de Julio Verne, "Vinte mil leguas submarinas", aquelle gabinete mysterioso logo me evocou varias gravuras representando os aposentos reservados do capitão Nemo. Lembrei-me tambem do professor Aronnax e senti-me na sua posição ao ver-se prisioneiro no Nautilus.
Nesse momento uma porta se abriu e o professor Benson entrou.
— Bom dia, meu caro senhor... Seu nome? Ainda não sei o seu nome.
— Ayrton Lobo, ex-empregado da firma Sá, Pato & Cia, respondi, fazendo uma reverencia de cabeça e carregando no ex com infinito prazer.
— Muito bem, disse o professor. Queira sentar-se e ouvir-me.
O habito de sempre falar de pé aos ex-patrões impediu-me de cumprir a primeira ordem dada pelo meu novo chefe, e vacillei uns instantes, permanecendo perfilado. O professor Benson comprehendeu a minha attitude; poz-me a mão no hombro e, paternalmente, murmurou na sua voz cansada :
— Sente-se. Não creia que o vou reter aqui como a um subalterno. Disse que iria ser o meu confidente e os confidentes não se equiparam aos homens de serviço. Sente-se e conversemos.
Sentei-me sem mais embaraço, porque o tom do mysterioso velho era na realidade cordeal.
— O senhor Ayrton, pelo que vejo e adivinho, é um innocente, começou elle. Chamo innocente ao homem commum, de educação mediana e pouco penetrado nos segredos da natureza. Empregado no commercio: quer dizer que não teve estudos.
— Estudos ligeiros, gymnasiaes apenas, expliquei com modestia.
— Isso e nada é o mesmo. Eu preferia ter para confidente um sabio ou, melhor, uma organização de sabio, intelligencia de escol, das que comprehendem. Em regra, o homem é um bipede incomprehensivo. Alimenta-se de idéas feitas e desnorteia deante do novo. Mas costumo respeitar as injunçções do Acaso. Elle o trouxe ao meu encontro, seja pois o meu confidente. E saiba, senhor Ayrton, que é a primeira creatura humana aqui entrada desde que conclui a construcção deste laboratorio.
— O castello, quer dizer?
— Sim, o castello, como romanticamente lhe apraz chamar esta officina de estudos onde realizei a mais extraordinaria descoberta de todos os tempos.
Sem querer dei um recuo na poltrona, pensando logo na pedra philosophal e no elixir da longa vida.
— Não se assuste, nem arregale dessa maneira os olhos. Nem tente adivinhar o que é. Saiba apenas que tem deante de si um homem condemnado a levar comsigo ao tumulo o seu invento, porque elle excede á capacidade humana de adaptação ás descobertas. Si eu o divulgasse, pobre humanidade ! Seria impossivel prever a somma de consequencias que isso determinaria. Si houvesse, ou antes, si predominasse no homem o bom senso, a intelligencia superior, as qualidades nobres, em summa, sem medo eu atiraria á divulgação a minha maravilhosa descoberta. Mas sendo o homem como é, vicioso e máo, com um pendor irreductivel para o o despotismo, não posso deixar entre elles tão perigosa arma.
— Quer dizer, atrevi-me a murmurar, que si o doutor quizesse...
— Si eu quizesse, interrompeu-me o velho sabio, tornar-me-ia senhor do mundo, pois me vejo armado de uma potencia que até hoje os mysticos julgaram attributo exclusivo da divindade.
Dei novo recuo na cadeira, desta vez meio na duvida si falava a um homem sadio dos miolos ou a um maluco. O ar sempre sereno do professor Benson accommodou-me, porém.
— Mas não quero. A dominação sobre o mundo não me daria prazeres maiores que os de que goso. Não me faria ver mais azul e limpida aquella serra, nem respirar com mais prazer este ar puro, nem ouvir melhor musica que a do sabiá que todas as tardes canta numa das laranjeiras do pomar. Alem disso, estou velho, tenho os dias contados e nada do que é do mundo consegue interessar-me. Vivi demais, satisfiz demais a minha outróra insaciavel, mas hoje saciada curiosidade de sabio. Só aspiro morrer sém dôr e desfazer-me na vida do universo transfeito em atomos. Quem sabe si cada um desses atomos não levará comsigo a capacidade de goso que ha em mim, e si com esse desdobramento não multiplico ao infinito as minhas possibilidades ?...
Não comprehendi muito bem, lento que sou de espirito, a alta philosophia do professor; mas calei-me, cheio de admiração pelo homem que podendo ser imperador, presidente da republica, rei do aço, sultão ou o que lhe désse na telha, visto que podia tudo, contentava-se com ser um mysterioso velhinho, ignorado do mundo e á espera da morte naquelle sereno recanto da natureza.
Nisto um criado surgiu á porta e fez um signal.
— Vamos ao almoço, senhor Ayrton. Depois continuarei nas minhas confidencias, disse-me o professor, erguendo-se com esforço da poltrona.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.