CAPITULO VI


O TEMPO ARTIFICIAL



QUANDO de novo me encontrei com o professor Benson no laboratorio, proseguiu elle na exposição interrompida.

— Onde estavamos, senhor Ayrton ?

— Na pre-determinação.

— Sim. Foi nesse ponto que Jane nos interrompeu. Pois bem: si tudo inexoravelmente se determina pela influencia reciproca das vibrações, si é isto pura mechanica, embora duma méta-mechanica inaccessivel ás forças da intelligencia do homem, é logico que a pre-determinação é possivel em theoria.

— E na pratica tambem! aventei eu, illuminado de subita idéa. Homens ha que adivinham occurrencias futuras. Eu mesmo já tive occasião de observar commigo um curioso caso de presentimento, lá nos negocios da firma. Veio-me, não sei de onde, a idéa de que um freguez ia fallir. Disse-o ao senhor Sá, que me chamou tolo. Um mez mais tarde esse freguez abria bancarrota! Nunca me pude explicar isso, pois nada conhecia dos seus negocios, nem cousa nenhuma ouvira falar a respeito.

— Esse caso pode ser visto de outra maneira. A idéa de requerer fallencia podia estar em acção no cerebro do freguez. Idéa é vibração que repercute em ondas, como tudo mais, e certos cerebros possuem bella faculdade emissiva ou receptora. Emittiu esse freguez uma vibração da idéa e o cerebro do senhor Ayrton agiu como polo receptor.

— Mas a leitura das linhas da mão? A chiromante que na Martinica predisse a Josephina, então simples burguezinha crioula, que seria imperatriz de França?

— Ahi já o caso é diverso, como no de todas as prophecias comprovadas. Havemos que conceber certas organizações possuidoras d'uma faculdade pre-determinante. E não me custa admittir isso, já que realizei o pre- determinador.

— Que significa essa nova palavra, professor?

— Vamos ao pavilhão vizinho que lá me comprehenderá melhor.

Passamos á sala immediata, salão envidraçado e em fórma de funil, cujo bico constituia uma das taes torres de ferro enxadrezado.

— Aqui tem o meu amigo o nervo optico do futuro. Chamo a este conjuncto o grande collector da onda Z.

Eu andava de novidade em novidade e, por mais alerta que puzesse o cerebro, tinha de fazer paradas constantes, pedindo ao professor explicações parciaes.

— Onda Z, professor Benson? Inda não me falou nella.

— Só agora chegou o momento. A multiplicidade infinita das fórmas, isto é, das vibrações do ether, produz turbilhões, ou ondas, que consegui classificar uma por uma e captar por meio deste conjuncto receptor, que as polariza...

— ? !...

— Polarizar é reunir tudo num só ponto, num polo.

— Comprehendo.

— Este conjuncto receptor polariza os turbilhões e os funde numa especie de corrente continua, ou, usando de imagem concreta, de um jacto. Supponha milhões de gottas de chuva a cahirem num immenso funil e a sahirem pelo bico sob forma continua de um jorro crystallino. Todas as gottas estão no jacto, mas fundidas e sob outra fórma. Assim o meu collector. Apanha o turbilhão das ondas e as polariza naquelle apparelho.

Olhei para o apparelho que o dedo do professor apontava e apenas vi um emmaranhado de fios e grandes carreteis de arame, que, em calão, eu definiria muito bem com a palavra estrumela. Mas guardei o vocabulo, visto que a lição da Groenlandia inda estava muito fresca em minha memoria.

— Consigo assim, proseguiu o sabio, concentrar nas minhas mãos o presente, isto é, o momento actual da vida do universo, como immensa paizagem panoramica que toda se reflecte numa chapa photographica e nella se conserva latente até que vá ao banho revelador. Quer isto dizer que na corrente continua, invisivel como o fluido electrico, que gyra naquelle cahos apparente de fios, selenoides e bobinas, está tudo quanto constitue o momento universal !

Apesar da segurança do velho sabio e da solidez das suas deducções, eu permanecia numa vaga duvida. Na minha curteza mental, eu achava excessivo estar tudo quanto existe reduzido a tão homeopathicas proporções e, inda mais, impalpavel e invisivel. O professor Benson adivinhou a minha indecisão e esmagou-a como quem esmaga uma pulga .

— Sabe o que é isto? perguntou, mostrando-me uma sementinha de minusculas dimensões.

— Uma semente, respondi.

— E que é uma semente? Uma predeterminação. Aqui dentro está predeterminada uma arvore de colossaes dimensões que se chama jequitibá. Se o amigo admitte que desta semente, que, analysada, só revela a presença de um bocado de amido, saes, graxa, etc., surja sempre e de um modo fatal um majestoso jequitibá, porque vacilla em admittir um phenomeno semelhante, qual a polarização do momento universal numa semente, que no caso é o fluido que circula no meu apparelho ?

O simile matou-me de vez todas as velleidades de scepticismo e foi como quem ouve a voz de Deus que dalli por deante me entreguei sem reservas ás palavras do sabio.

— Prosiga, professor.

O professor Benson proseguiu.

— Obtenho, pois, neste apparelho, uma corrente continua, que é o presente. Tudo se acha impresso nella. Os cardumes de peixes que neste momento agonizam no seio do oceano ao serem colhidos pela correnteza calida do Gulf-Stream ; o juiz bolshevista que neste momento assigna a condemnação de um mugik relapso num tribunal de Arkangel ; a palavra que, em Zorn, neste momento, dirige kronprinz ao ex-imperador da Alemanha ; a flor de pecego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha ; o leucocyto que envolve um microbio malevolo que penetrou no sangue dum fakir da India; a gotta dagua que espirra do Niagara e cahe num lichen de certa pedra marginal ; a matriz de linotypo que em certa typographia de Calcuta acaba de cahir no molde ; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou a galope ; o beijo que num studio de Los Angeles Gloria Swanson começa a receber de Valentino...

— A factura que neste momento o senhor Sá está acabando de sommar... Comprehendo, professor. Toda a vida, todas as manifestações polyformes da vida, tudo está alli, como o jequitibá com todos os seus galhos e folhas e passarinhos que pousam nelle e cigarras que o elegem para palco de suas cantorias estão dentro da sementinha. Não é isso? conclui radiante.

O professor Benson riu-se do meu enthusiasmo e pareceu-me na realidade satisfeito com o discipulo.

— Perfeitamente, amigo Ayrton. Tudo está alli. Pela primeira vez, desde que o mundo é mundo, consegue o homem esse espantoso milagre – mas só eu sei o que isso me custou de experiencias e tentativas falhas !... Fui feliz. O Acaso, que é um Deus, ajudou-me e hoje me sinto na estranha posição de um homem que é mais do que todos os homens...

Sua physionomia irradiava tanta luz — a luz da intelligencia, que só a poderia supportar um innocente da minha marca. Estou convencido de que si outro sabio o defrontasse naquelle instante estarreceria de assombro, siderado como o propheta deante das sarças ardentes quando dellas trovejou a voz de Jehovah. A minha ingenuidade, a minha innocencia mental salvou-me. Hoje estremeço quando penso em tudo isso, como estremeceu Tartarin de Tarascon ao saber que os abysmos, que com risonha coragem arrostara nos Alpes, eram de facto abysmos e não scenographia como, illudido por Bompard, no momento suppoz. Hoje que já nada mais existe do professor Benson a não ser uma lapide no cemiterio, e nada existe sinão cinzas do seu maravilhoso laboratorio, si me ponho a analysar esse periodo da minha vida tenho a sensação de que convivi com um Deus humanizado. O professor Benson falava das suas invenções com tanta simplicidade e me tratava tão familiarmente que jamais me senti tolhido em sua presença, como me sentia, por exemplo, na do senhor Pato, o socio commendador lá da firma. Sempre que me cruzava pelo commendador, tremia, tanto se impunha aos subalternos aquella formidavel massa de banhas vestida de fraque, com anel de grande pedra no dedo e uma corrente de relogio, toda berloques, que nos esmagava a humildade sob a arrogancia e peso do ouro massiço. Deante do commendador Pato eu tremia e balbuciava ; mas deante do professor Benson, um deus, sempre me achei como em face de um egual. Comprehendo hoje o phenomeno e sei que a verdadeira superioridade num homem não o extrema dos "innocentes", como dizia o professor — e por isso chamava Jesus a si os pequeninos. Até na indumentaria aquelles homens eram antipodas. Na do commendador o fraque propunha-se a impressionar imaginações, a estabelecer categorias, a amedrontar os paletós saccos com a imponencia da sua cauda bipartida ; na do professor Benson tinha a roupa por unica funcção vestir um corpo a modo de resguardal-o das bruscas variações atmosphericas.

Mas voltemos atrás. Ao ouvir dizer ao professor Benson que todo o momento universal estava alli, olhei para a maranha de fios e bobinas com um sentimento mixto de orgulho e piedade. Orgulho de saber o Tudo escravizado deante de mim. Piedade porque havia nisso uma certa humilhação para o Tudo...

A voz pausada do velho sabio tirou-me de taes cogitações.

— Até aqui permanecemos no presente. A onda Z, alli captada, só diz respeito ao presente, e si eu ficasse nessa etapa de pouco valeria a minha descoberta. Mas fui alem. Descobri o meio de envelhecer essa corrente á minha vontade.

— Envelhecer?... murmurei, refranzindo a um tempo todos os musculos da cara.

— Sim. Faço-a passar pelo apparelho que tenho no pavilhão immediato e ao qual denominei chronizador. Vamos para lá.

O professor tomou a deanteira e eu o segui, ainda repuxado de musculos faciaes. O pavilhão immediato possuia ao centro um novo apparelho, tão incomprehensivel para a minha intelligencia como os anteriores.

— Eil-o cá, o chronizador, disse o meu cicerone, apontando para o exquisito conjuncto. Este mostrador, que lembra o dos relogios, me permitte marcar no futuro a epoca que desejo estudar.

— ?!

— Perca o habito de assustar-se, porque sinão acabará cardiaco. A corrente penetra por este fio, soffre um turbilhonamento e envelhece na medida que eu determino com o movimento deste ponteiro. E' como se tomasse a semente e por um golpe de magica della fizesse brotar a arvore aos dez annos de edade, aos cincoenta, aos cem, ao arbitrio do experimentador. Comprehende?

— Comprehendo...

— E dest'arte a evolução, que com o decorrer do tempo necessariamente vae ter a vida actual do universo, eu a apresso e a detenho no momento escolhido. Este meu chronizador, em summa, é um apparelho de produzir o tempo artificial com muito mais rapidez do que pelo systema antigo, que é esperar que elle transcorra. Obtenho um anno num minuto de turbilhonamento ; penetro no futuro, no anno 2.000, por exemplo, em 74 minutos. Opera-se durante a chronização uma zoada, que é o som dos annos a se succederem, som muito semelhante á harmonia das espheras dos antigos gregos...

— Sei. O que ouvi na hora do almoço.

— Exactamente. Quiz Jane visualizar o futuro no anno 2.336, ou sejam 410 annos deste em que estamos. Para isto collocou aqui o ponteiro e abriu o commutador. A corrente envelheceu e automaticamente parou no ponto marcado, isto é, no anno 2.336.

A minha curiosidade crescia. Percebi que chegara ao ponto culminante da descoberta do professor Benson.

— E depois? indaguei ansioso. Para ver, ou, como diz o professor, para visualizar esse futuro, como procede?

Piano, piano ! Consigo, como ia dizendo, envelhecer a corrente até o ponto desejado. Ao dar-se isso, a evolução determinista, que rigorosamente vae dar-se no universo com o decorrer normal do tempo, dá-se artificialmente dentro do apparelho. E, chegada ao termo da chronização que visamos, a corrente turbilhonada torna-se estatica, por assim dizer congelada. E fico eu na posse dum momento da vida universal futura — com o 4 da nossa primitiva imagem do 2 + 2. Resta-nos agora a ultima parte da operação, a qual, por commodidade, executo no meu gabinete. Não notou lá uma especie de globo crystallino?

— Foi a primeira cousa que me impressionou neste castello.

— Pois é o porviroscopio, o apparelho que toma o córte anatomico do futuro, como pittorescamente diz Jane, e o desdobra na multiplicidade infinita das fórmas de vida futura, que estão em latencia dentro da corrente congelada.

— Porque córte anatomico? indaguei, para não deixar ponto obscuro atrás de mim.

— Nunca esteve num laboratorio de microscopia? Com uma navallia afiadissima o anatomista opera um córte na ponta do seu dedo, por exemplo. Tira uma lamina de carne, a mais fina que possa, e estuda-a ao microscopio. A essa fatia do seu dedo chamará elle córte anatomico. E' Jane uma menina muito viva e gosta de falar por imagens, algumas dellas extraordinariamente pittorescas...

A evocação de miss Jane veio perturbar a contensão de espirito com que eu acompanhava as revelações do mestre. Meu espirito cansado repousou nesse gracioso oasis, e foi com infinita innocencia que indaguei :

— Que edade tem ella, professor ?

Mas o velho sabio talvez nem me ouvisse, porque entrou a dar explicações sobre a segunda funcção que possuia o chronizador : involuir a corrente, rodar para trás, o que permittia córtes anatomicos no passado.

— Mas isso não interessa, aventei levianamente. O passado é velho conhecido nosso.

— Engano. E' tão desconhecido como o futuro e o presente.

Desta vez abri a boca, e lá por dentro me soou como tolice a phrase do sabio. Mas vi logo que o tolo era eu.

— Do presente que é que sabe o amigo Ayrton? Sabe apenas que está neste minuto conversando commigo. Mais nada. Não sabe siquer si os senhores Sá, Pato & Cia estão a esta hora de fallencia aberta.

— Impossivel ! Aquella gente é solida como as montanhas !... Só vendem á vista...

— Quantas planicies não marcam hoje o logar outróra occupado por montanhas!... Do presente o amigo Ayrton só sabe, isto é, só tem consciencia do que, no momento, lhe affecta os sentidos.

— Na verdade ! reflecti eu. Nem o meu Ford, que era tudo para mim, sei onde pára...

— E si ignoramos o presente, que dizer do passado ?

— Mas a Historia ?

O professor Benson sorriu meigamente um sorriso de Jesus.

— A Historia é o mais bello romance anecdotico que os homens veem compondo desde que aprenderam a escrever. Mas que tem com o passado a Historia? Toma delle factos e personagens e os vae estylizando ao sabor da imaginação artistica dos historiadores. Só isso.

— E os documentos da epoca ? insisti.

— Estylização parcial feita pelos interessados, apenas. Do presente, meu caro, e do passado só podemos ter vagas sensações. Ha uma obra de Stendhal, La Chartreuse de Parme, cujo primeiro capitulo é deveras interessante. Trata da batalha de Waterloo, vista por um soldado que nella tomou parte. O pobre homem andou pelos campos aos trambolhões, sem ver o que fazia, nem comprehender cousa nenhuma, arrastado ás cégas pelo instincto de conservação. Só mais tarde veio a saber que tomara parte na batalha que recebeu o nome de Waterloo e que os historiographos pintaram de maneira tão suggestiva. Os pobres seres que, inconscientemente, nella funccionaram de actores, confinados a um campo visual muito restricto, nada viram, nem nada podiam prever da tela heroica que os scenographos de historia iriam compor sobre o thema. Eis o presente... Vamos agora ao gabinete, concluiu o professor. O mais interessante se passa lá.

Acompanhei-o, literalmente apatetado. Pensava aquelle homem de modo tão differente de todo o mundo que suas idéas me davam a impressão de algo novo e operavam em meu cerebro como luz que invade aos poucos um museu. Mil cousas, que nunca suppuz existirem na minha cabeça, revelavam-se-me de prompto. Cousas minimas, germens de idéas, antigas impressões recolhidas nos vae-e-vens do viver quotidiano resurgiam animadas de estranha significação. Outras, que eram capitaes outróra, diluiam-se. O commendador Pato, até vinte dias antes tido por mim como o mais formidavel expoente de genio humano, decahia a irrisorias proporções. Oh, como desejei vel-o alli, em contacto com o professor, para gosar a derrocada das ridiculas idéas de fraque que tinha elle na cabeça !

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.