CAPITULO VIII

A LUZ QUE SE APAGA


NO dia seguinte, logo pela manhã, soou-me aos ouvidos uma novidade desagradavel. Não passara bem a noite o professor Benson.

— Estou velho, meu caro senhor Ayrton, disse-me elle ao encontrar-se commigo. Já sinto cá dentro a machina funccionar com esforço. Jane ignora o meu estado, mas a pobre menina não terá por muito tempo na terra o seu pae querido. Ficará só. Dei-lhe, entretanto, tal educação e possue ella taes qualidades de caracter, que morrerei feliz. Saberá agir no mundo como si contasse sempre com o meu braço protector.

Acudiu-me aos labios um impeto de confidencia. Quiz apresentar-me ao professor como o braço forte que se offereceria a miss Jane, quando o de seu pae viesse a faltar. Contive-me a tempo. Lembrei-me da minha insignificancia e do pouco que ainda era num lar que começara a conhecer na vespera. Limitei-me, pois, a confirmar as idéas do velho em relação á filha, dizendo :

— Pelo que com ella conversei hontem tive a mesma impressão. E' miss Jane uma creatura superior, uma madame Curie, capaz de proseguir nos trabalhos de seu pae, si o quizer.

— Jane o quereria, talvez, mas não posso consentir nisso. Bastam-lhe, para lhe encher a vida, as visões que já teve e a superioridade que adquiriu conhecendo o futuro proximo. Permittir-lhe-á, isso, pôr-se a salvo, na sua vida terrena, das contingencias da necessidade. Possue Jane um caderninho onde annotou a cotação dos principaes valores de bolsa nestes proximos cincoenta annos. Está habilitada, pois, a ser detentora do dinheiro que quizer. O dinheiro ainda é tudo para os homens. O estranho dote que deixo á minha filha se resume nesse caderninho de notas... Mas conheço Jane. Extremamente modesta das ambições que atormentam o commum das mulheres, levará um viver apagado, sem exterioridades, toda entregue á vida cerebral, que a tem intensissima.

O professor fez uma pausa, como si o esforço daquellas confidencias o tivesse cansado. Depois disse :

— Realizei o que jamais sonhara nos delirantes sonhos da minha mocidade — e me vejo forçado a levar para o tumulo o grande segredo... 'Jane não o revelará a ninguem e inda que o faça não estará na posse da solução technica. O senhor Ayrton, unica testemunha presencial de tudo, tambem o não revelará a ninguem.

— Prohibe-m'o, professor ?

— Não, não lh'o prohibo, já disse. Mas si o amigo tiver algum dia a ingenuidade de o revelar a alguem, passará por louco, e si insistir, por louco varrido, dos que os homens mettem nos hospicios. O instincto de conservação e de sociabilidade é que o vae impedir de revelar o que está vendo aqui.

Entrou miss Jane nesse momento e notei que o velho sabio se contrafazia deante da moça para não denunciar o seu estado de saude. Apesar disso ella observou :

— Um pouco pallido, meu pae...

— Sim, mas estou perfeitamente bem. Temos aqui o senhor Ayrton e compete a ti, minha filha, organizar o programma do dia. Pouco posso acompanhar-vos. Uma delicada experiencia vae absorver-me por algumas horas.

Miss Jane olhou-me com os seus lindos olhos claros e disse :

— Escolha, senhor Ayrton. Hontem foi a theoria, hoje começa a ser a pratica. Vae estudar uns córtes. Escolha um momento da vida futura que o interesse.

Miss Jane estava linda como a rosa desabrochada essa manhã na roseira proxima do meu quarto. Meus olhos envolveram-na num véo de enlevo e si o coração pudesse falar ter-lhe-ia eu dicto que só me interessava o presente nella concentrado. Mas respondi de outro modo.

— Sou um leigo em materia de futuro, miss Jane, e nem escolher posso. Deixo isso ao seu intelligente criterio.

— Não tem vontade de ver o que se passará aqui, no logar onde estamos, no anno 3000?

— Já fizeste esse córte, Jane, interveio o professor.

— Fiz, sim, meu pae, mas será curioso repetil-o para o senhor Ayrton.

— Perfeitamente, concordei. Ha sempre mais interesse para nós em ver assim futurizado um ponto nosso conhecido do que um desconhecido.

— Pois então, resolveu o professor Benson, começai por ahi e não conteis commigo. Vou trabalhar.

Ergueu-se e sahiu. Miss Jane acompanhou-o até á porta e, ao tornar, me disse :

— Acho meu pae um tanto abatido hoje. Já está nos 70 annos e a velhice vale por mipiedosa doença...

Uma nuvem de melancolia sombreou-lhe os lindos olhos azues e um breve suspiro lhe escapou do peito. Tambem eu no intimo me sombrei de tristeza, embora mentisse exteriormente, nesse intuito de consolação facil que taes lances impõem.

— Qual! O professor é rijo. E com a vida calma que leva inda viverá longos annos.

— Assim seja, murmurou Jane, porque não sei o que será de mim sem elle. Acho-me tão identificada a meu pae...

Arrisquei uma pergunta indiscreta :

— Nunca pensou em casamento, miss Jane?

A moça entreparou, olhando-me entre admirada e divertida.

— Casamento? Ora, que facto interessante, senhor Ayrton... Ha de crer que é a primeira vez que tal palavra sôa nesta casa? Que cousa curiosa — ca-sa-men-to !

E repetiu-a diversas vezes, como si repetisse uma palavra de som exquisito e nunca antes pronunciada.

— Sim, continuei eu, todas as moças se casam. O amor um dia vem e....

Miss Jane permaneceu alheiada, como entregue a profundas cogitações interiores.

— "Todas as moças"... repetiu. Mas serei eu uma moça? Nunca me analysei, senhor Ayrton. Minha vida tem sido voar de seculo em seculo, por esse futuro a fóra, em companhia de meu pae. Sinto que sou, apenas, um espirito que observa e possue meios de visualizar o que está fóra do alcance humano. Será isso ser moça? Amor !... Que é amor, senhor Ayrton? O seu vocabulario é tão novo para mim como deve ser para o seu espirito esta nossa mentalidade futurista. Mas vamos ao que serve. E' tempo de operar um córte.

Miss Jane dirigiu-se ao gabinete do' porviroscopio e eu acompanhei-a, tomado de espanto deante de um ser tão alheio ao seu tempo e á sua condição. Lá fóra, amor e casamento constituem a obsessão unica de todas as mulheres. Em creança, brincam de casar as bonecas. Nubeis, cuidam exclusivamente de casar a si proprias. Velhas, cuidam de casar ou descasar as outras. Havia, pois, uma mulher no globo terraqueo, e formosissima, que não só não pensava em amor e casamento, mas á qual taes palavras soavam como vozes ineditas... Era simplesmente prodigioso!

Deante do porviroscopio ella se deteve e depois de algumas explicações me fez collocar no anno 3000 o ponteiro. Em seguida viu num mappa a situação geographica do ponto onde nos achavamos e ensinou-me a mover o ponteiro marcador das latitudes e longitudes.

— Prompto! exclamou. Basta agora abrir esta valvula. A corrente envelhecerá de 1074 annos, que são quantos vão do em que estamos ao anno 3000. Envelhecerá, e ao alcançar o anno 3000 dar-nos-á signal disso automaticamente. Mas como o envelhecimento de cada anno consome um minuto, teremos...

Tomou de um lapis e calculou rapidamente.

— Teremos de esperar 17 horas e 54 minutos. O relogio marca as nove e, pois, só conseguiremos ter cá o anno 3000 ás nossas ordens entre meia noite e uma da madrugada. Estou affeita a estas observações a qualquer hora da noite, mas não sei si para o senhor Ayrton não será incommodo...

— Absolutamente não. Só lamento não poder satisfazer já, já, a minha curiosidade. Ver um pedaço da nossa terra no anno 3000, que portentosa maravilha! Diga-me alguma cousa, miss Jane, do que me vae ser revelado...

— Não. Não quero prejudicar a sua surpreza. Prefiro revelar-lhe aspectos que vi em outros tempos e outros paizes.

Lances ha na vida absolutamente indeleveis. Essa tarde que passei com a filha do professor Benson, a ouvir-lhe as revelações do futuro, como esquecel-a jamais? Não poderei reproduzir aqui tudo quanto me ella disse; seria compor um catalogo sem fim. A invasão mongolica, o industrialismo feroz da Europa mudado em contemplativismo asiatico, a evolução da America num sentido inteiramente inverso... quanta cousa formidavel ! Mas nada me interessou tanto como o drama do choque das raças nos Estados Unidos.

— Esse choque, disse Miss Jane, deu-se no anno 2228 e assumiu tão empolgantes aspectos que reduzido a livro dá uma perfeita novella. Não sei si o senhor Ayrton é literato...

— Já fiz um soneto na edade em que todos os brasileiros desovam sonetos.

— Pois si não é poderá tornar-se. O principal para uma novella é ter o que dizer, estar senhor de um thema na verdade interessante. Ora, eu fornecerei os dados dessa novella e o senhor Ayrton terá opportunidade optima para apresentar-se ao mundo das letras com um livro que a critica julgará ficção, embora não passe da simples verdade futura.

A idéa sorriu-me, e todo me lisongeei com a opinião que fazia miss Jane das minhas capacidades artisticas.

— Quer tentar? insistiu ella. Contar-lhe-ei com a maxima fidelidade o que vae passar-se. De posse desse material, e depois de pessoalmente fazer varios córtes que o ajudem a formar idéa justa do ambiente futuro, atirar-se-á á tarefa: Desde já lhe asseguro uma cousa: sahirá novella unica no genero. Ninguem dará a ella nenhuma importancia no momento, julgando-a pura obra de imaginação phantasista. Mas um dia se assanhará a humanidade deante das previsões do escriptor e os sabios quebrarão a cabeça no estudo de um caso, unico no mundo, de prophecia integral e rigorosa até nos minimos detalhes.

— Realmente, exclamei. Será romance como os de Wells, porém verdadeiro, o que lhe requintará o sabor. Quanta novidade !

— Os leitores andarão pulando de surpreza em surpreza, e estou já a imaginar as caras de espanto que hão de fazer quando o senhor Ayrton falar, por exemplo, da cirurgia do doutor Lewis.

— Quem era?

— Oh, um magico da anatomia, o primeiro que praticou o desdobramento do homem.

Franzi os sobrolhos.

—Desdobramento da personalidade ? perguntei.

— Sim, mas desdobramento anatomico. O doutor Lewis, sabio que começou a surgir em 2201, teve a idéa de romper com o plano symetrico do corpo humano. Temos dois olhos e dois ouvidos que agem como a parelha de cavallos a puxar no mesmo rumo o carro. Lewis alterou isso. Por meio dum delicado processo cirurgico desligou — desxyphopagou os nervos opticos e auditivos, dando autonomia aos dois ramos. Conseguiu dess'arte que o "desdobrado" pudesse ver uma cousa com o olho direito e outra com o esquerdo, e tambem ouvir ás duplas, com a audição assim desligada.

Lembro-me que no escriptorio do Intermundane Herald observei o primeiro desdobrado em acção, primeiro e unico aliás.

Intermundane Herald, miss Jane? Cheira-me isso a psychismo...

— E cheira certo. Era um jornal de radiação psychica, que veio attender á velha sêde de liame com os vivos que os mortos sempre manifestaram. Em vez das pobres almas penadas andarem chorosas pelo mundo em busca de mesinhas falantes, unico meio que possuem hoje de conversar comnosco, liam o Intermundane Herald.

— E como se manifestavam? Pois não posso crer que tambem collaborassem nesse jornal...

— Disso se encarregava a Psychical Work Company, dona da grande estação central de Detroit. Affluiam os espiritos para alli e chamavam os vivos pela linha pychophonica, como hoje nos chamamos pela linha telephonica.

O meu assombro era grande, embora tocado de uma pontinha de desconfiança. Estaria miss Jane a mangar commigo? Olhei-a firme nos olhos. A lealdade que nelles vi era a mesma de sempre.

— Mas, continuou ella, voltando ao meu homem desdobrado direi que pude observal-o em acção no escriptorio do Herald. Estava á mesa de trabalho, a examinar com o olho direito uma gravura antiga e a consultar uma taboa de logarithmos, com o esquerdo. Ao mesmo tempo ouvia a musica da moda com o ouvido direito e, com o esquerdo, attendia a um collaborador do jornal. Occupava-se em quatro cousas diversas, valendo assim por quatro homens não desdobrados.

— H 4...

— E não ficava nisso. Era bem um homo elevado, não á quarta, mas á sexta potencia, porque ainda recolhia a queixa dum dos espiritos leitores do Herald — espirito rabugento, a avaliar por certos impetos nervosos da mão que stenographava.

— E com a outra mão, que fazia ?

— Alisava meigamente um gatinho que lhe resbunava ao regaço.

Encarei-a de novo, firme, nos olhos. Não piscou. Logo, era verdade. A experiencia dos olhos que piscam sempre me pareceu infallivel na pesca dos potoqueiros.

— Mas não foi coisa que se generalisasse. A ruptura por intervenção humana dos planos normaes da natureza nunca foi bem succedida. Sobrevinham sempre complicações imprevisiveis á argucia dos sabios, e irremediaveis. Esse pobre desdobrado, por exemplo, acabou logo depois de maneira tragica. Em vez de persistir na sua sexta potencia, empastelou-se, confundiu-se e acabou não sendo nem siquer um homem apenas, como antes da operação. A mais horrorosa demencia destruiu aquella obra prima da cirurgia de 2228. Por esta amostra vê o senhor Ayrton de quantos episodios interessantes pode esmaltar-se a sua novella, concluiu miss Jane.

Fiquei de olhos parados, a scismar.

— Outra coisa que muito me maravilhou foi o Theatro de Freud, continuou ella.

— Quê?

— O theatro dos sonhos.

— Fiquei na mesma...

— Descobriu-se um processo de fixar na tela os sonhos, como hoje a cinematographia fixa em films o movimento material. E dada a riqueza do nosso subconsciente, mar donde emana o sonho e mar profundo, do qual a consciencia não passa da exigua superficie, póde o senhor Ayrton imaginar que maravilhosas representações não se davam nesse theatro. Nem as "Mil e Uma Noites", nem Edgard Poe, nada valia um só desses espectaculos onde o contra-regras se chamava Imprevisto.

Tornou-se a arte suprema, a mais deleitosa de todas - e ainda uma sciencia. A alma humana só deixou de ser o enigma que hoje é depois que poude ser assim photographada em suas manifestações de absoluta nudez. Até então apenas lhe conheciamos as manifestações vestidas pela Censura, isto é, as suas attitudes.

Era de maravilhar a transformação que se operava em mim ! Vinte dias antes não passava eu de modesto empregado de rua duma casa commercial e estava agora na imminencia de tornar-me autor de um livro assombroso, capaz de cobrir meu nome de louros ineditos. A idéa desvairou-me e a novella principiou logo a formar-se-me nos miolos com fragmentos de romances lidos em rodapé de jornaes. O principio do primeiro capitulo chegou a traçar-se de chofre em minha cabeça:

— "Era por uma dessas tardes calmosas de verão, em que o astro rei, rubro como um disco de cobre," etc.

Estava nesse devaneio quando um criado penetrou de surpreza no gabinete. Chamou de parte miss Jane e disse-lhe algumas palavras agitadas. Sem pedir licença, a moça retirou-se com precipitação.

Fiquei attonito, sem saber o que pensar. Delicada e fina como era, si assim se retirava de minha companhia sem o classico e sorridente "com licença”, é que algo de grave occorria. Fiquei na minha poltrona ainda uns dez minutos, com o ouvido attento aos menores rumores, tentando decifrar o mysterio. O silencio se fazia absoluto ; nem siquer se ouvia o zum-zum do chronizador a trabalhar. Consultei o relogio.

— Dez e quinze. Já está a corrente no anno 2001, pensei commigo, anno que não alcançarei. Mas meu filho Ayrton Benson Lobo o alcançará...

Puz-me a sonhar, e os sonhos logo me acalmaram a inquietação produzida pela inexplicavel retirada de miss Jane. Vi-me amado de tão gentil creatura e com ella casado. Por esse tempo já não fazia parte deste mundo o professor Benson. Setenta annos tinha elle ; era natural que não durasse muito. Miss Jane ficava só na terra, sem relações sociaes, sem sonhos de grandeza mundana. E não seria eu nessa epoca apenas o pobre diabo que era, triste ex-empregado dos senhores Šá, Pato & Cia. Seria um autor, um romancista. Os jornaes dariam meu retrato e me tratariam de "illustre homem de letras". Uma situação social, sem duvida, e das mais bonitas. Poderia approximar-me da inconsolavel menina e offerecer-me para seu companheiro de vida. Claro que miss Jane acceitaria o meu coração. Viagens, depois, mundo a correr — Paris, New York. Levariamos comnosco o caderninho das cotações...

— "Olá, senhor corretor, compro mil acções da Niagara Falls Company" !

A piedade do corretor vendo esta carinha chupada de brasileiro amarello comprar acções de uma empreza cuja bancarrota estava imminente ! Sorri-se lá comsigo e vende-m'as, piscando o olho para os seus auxiliares. No dia seguinte, noticia nos jornaes : Uma jazida de platina encontrada nas terras da Niagara ! As acções dessa companhia centuplicam de valor ! Reappareço no escriptorio do corretor attonito, a fumar um charuto imponente, e vingo-me do seu sorriso da vespera.

— "Hoje vendo, meu caro palerma. O brasileirinho amarello hoje vende, sabe?..."

E lá deixo de novo as acções da Niagara e embolso milhões sonantes... Compro em seguida um hiate, o mais bello e commodo que houver...

— Senhor Ayrton ouço dizer uma voz.

No meu sonho julguei ser o capitão do hiate, e ia responder-lhe com uma ordem — "Rumo a boreste !", quando ao pé de mim vejo miss Jane, muito transtornada de feições.

— Senhor Ayrton, meu pae passa mal ! Venha vel-o...

Corri atrás della, tomado de negros presentimentos.Penetrei no quarto do professor. Lá estava o bom velho no fundo da cama, desfeito, dando mais a impressão de um defunto que de um ser vivo.

— Quer que vá buscar um medico? exclamei ansioso, ao approximar-me do enfermo.

— Não, respondeu lentamente a voz cava e debil do professor. E' inutil. Conheço o meu estado e sei que chegou o momento...

A moça atirou-se-lhe aos braços e cobriu-lhe o rosto de beijos convulsos.

— Boa Jane, disse elle, é a hora de separar-nos. Tenho confiança em ti e espero que, passado o rude momento, te conformes com a situação, buscando conforto no stoicismo que te ensinei e de que te dei exemplo em vida. Ha já algum tempo que me sentia mal. Occultava-o a ti para evitar-te um soffrimento inutil. Mas esta noite percebi que chegara o fim. Quando te deixei no gabinete, com pretexto de concluir um trabalho, illudi-te, ou, melhor, vim fazer um trabalho muito diverso do que poderias suppor. Vim destruir a minha descoberta. Queimei toda a papelada relativa e desmontei as peças mestras dos apparelhos. O que resta nenhuma significação possue e não poderá ser restaurado. Desfiz em meia hora todo o trabalho de uma vida. Da minha invenção restam apenas as impressões que te deixou ella na memoria. E quando por tua vez morreres, tudo se extinguirá...

— Meu pae ! exclamou Jane, achegando o seu rosto afogueado á face descorada do velho.

— Teu pae, teu amigo, teu companheiro de trabalho...

Não pude conter-me deante do doloroso quadro, e grossas lagrimas borbotaram-me dos olhos. O moribundo não esqueceu o hospede. Volveu com esforço um olhar para o meu lado e disse, em voz cada vez mais fraca :

— Adeus, senhor Ayrton. O acaso o trouxe aqui para me ver morrer... Seja amigo de Jane. Adeus...

Um impulso atirou-me de joelhos ao pé do leito do moribundo ; tomei-lhe as pallidas mãos e beijei-as, tão enternecido como si beijara as do meu proprio pae.

— Adeus, minha Jane !... foram as suas derradeiras palavras.

Fechou os olhos e immobilizou-se. Minutos mais tarde estava apagada a luz daquelle cerebro, o mais potente que ainda desabrochou no seio da humanidade...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.