Entre os novos alunos, que entraram no seguinte ano para o colégio do Dr. Mosquito, vinha um, que se chamava Teobaldo Henrique de Albuquerque. Menino de doze anos, muito bonito, elegante e criado com mimo.
Falava melhor o inglês e o francês do que a sua própria língua, porque estivera mais tempo em Londres do que no Brasil.
O tipo desta criança fazia um verdadeiro contraste com o do Coruja. Era débil, espigado, de uma palidez de mulher; olhos negros, pestanudos, boca fidalga e desdenhosa, principalmente quando sorria e mostrava a pérola dos dentes. Todo ele estava a respirar uma educação dispendiosa; sentia-se-lhe o dinheiro na excelência das roupas, na delicada escolha de perfumes que a família lhe dava para o cabelo e para o lenço, como em tudo de que se compunha o seu rico enxoval de pensionista.
Criança como era, já falava de coisas que o outro nem sonhava ainda; tinha já predileções e esquisitices de gosto; discutia prazeres, criticava mulheres e zombava dos professores sem que estes aliás se dessem por achados, em razão dos obséquios pecuniários que o colégio devia ao pai de Teobaldo, o Sr. Barão do Palmar.
Não obstante, esses mesmos dotes e mais sua estroinice de menino caprichoso, sua altivez natural e adquirida por educação abriam em torno dele o ódio ou a inveja da maior parte dos condiscípulos. Logo ao entrar no colégio, fizera muitos inimigos e, pouco depois, era tido e julgado como o mais embirrante e o mais insuportável entre todos os alunos do Dr. Mosquito.
Não lhe perdoavam ser ao mesmo tempo tão rico, tão formoso, tão inteligente e tão gentilmente vadio. Além de tudo isso, como se tanto já não bastava, havia ainda para o fazer malquisto dos companheiros aquela escandalosa proteção que lhe votavam os professores, apesar da formidável impertinência do rapaz.
Em verdade a todos falava Teobaldo com uma sobranceria ofensiva e provocadora. No seu modo de olhar, no tom da sua voz, no desdém de seus gestos, sentia-se a uma légua de distância o hábito de mandar e ser obedecido.
Esta constante arrogância, levava ao supremo grau, afastou de junto dele todos os seus condiscípulos. Mas o orgulhoso não parecia impressionar-se com o isolamento a que o condenavam as suas maneiras, e, se o sentia, não deixava transparecer em nenhum dos gestos a menor sombra de desgosto.
Ninguém o queria para amigo.
Um domingo, porém, ao terminar o almoço, ouviu dentre um certo grupo de seus colegas uma palavra de ofensa, que lhe era dirigida.
Voltou-se e, apertando os olhos com um ar mais insolente que nunca, exclamou para o grupo:
— Aquele de vocês que me insultou, se não é um covarde, apresente-se! Estou disposto a dar-lhe na cara!
Ninguém respondeu.
Teobaldo franziu o lábio com tédio e, atirando ao grupo inteiro, por cima do ombro, um olhar de desprezo, afastou-se. dizendo entredentes:
— Canalha!
Mas, ao chegar pouco depois à chácara, seis meninos dos mais fortes dos que compunham o grupo, aproximaram-se dele e exigiram que Teobaldo sustentasse o que havia dito no salão.
Teobaldo virou-lhes as costas e os seis iam precipitar-se sobre ele, quando o Coruja, que tudo presenciara a certa distância, de um pulo tomou-lhes a frente e os destroçou a murros.
Acudiu o inspetor, fez cessar a briga e, tomando o Coruja pelo braço, levou-o à presença do Dr. Mosquito.
Teobaldo acompanhou-o.
Exposto o ocorrido, foi o Coruja interrogado e confessou que era tudo verdade: "Batera em alguns de seus companheiros".
— Pois então recolham-no ao quarto do castigo, disse o diretor. Passará aí o domingo, fazendo considerações sobre o inconveniente das bravatas!
— Perdão! observou Teobaldo; quem tem de sofrer esse castigo sou eu! Fui o causador único da desordem. Este menino não tem a menor culpa!
E apontou para o Coruja.
— Ó senhores! Pois se eu o vi atracando-se aos outros, como um demônio! exclamou o inspetor.
— E ele próprio o confessa... acrescentou o diretor. Vamos! Cumpra-se a ordem que dei!
— Nesse caso eu também serei preso, respondeu Teobaldo.
E tão resolutamente acompanhou o colega, que ninguém o deteve.
Foram recolhidos à mesma prisão, e desta vez, graças à influência de Teobaldo, o outro, além de não ter de gramar o escuro, recebeu licença para levar consigo alguns livros e a flauta que lhe emprestara o Caixa-dóculos.
Logo que os dois meninos se acharam a sós, Teobaldo foi ter com o Coruja e disse, apertando-lhe a mão:
— Obrigado.
André fez um gesto com a cabeça, equivalente a estas palavras: "Não tem que agradecer, porque o mesmo faria por qualquer criatura".
— Se o senhor fazia parte do grupo que insultei, volveu Teobaldo, peço-lhe desculpa.
— Não fazia, respondeu o outro, dispondo-se a entregar-se de corpo e alma à sua ingrata flauta.
Felizmente para o colega, foram interrompidos por uma pancada na porta.
Teobaldo correu a receber quem batia, e soltou logo uma exclamação de prazer:
— Oh! Você, Caetano! Como estão todos lá em casa? Mamãe está melhor? E papai, papai que faz que não vem me ver, como prometeu?
Caetano, em vez de responder, pousou no chão uma cesta que trazia, e abriu os braços para o menino, deixando correr pelo sorriso de seu rosto duas lágrimas de ternura que se lhe escapavam dos olhos.
Era um homem de meia idade, alto, magro, de cabelos grisalhos, à escovinha, cara toda raspada; e tão simpático, tão bom de fisionomia, que a gente gostava dele à primeira vista.
Trajava uma libré cor de rapé, com botões de latão e alamares de veludo preto.
Caetano entrara muito criança para o serviço do avô de Teobaldo, pouco antes do nascimento do pai deste, nunca mais abandonou essa família, da qual mais adiante teremos de falar, e por onde se poderão avaliar os laços de velha amizade que ligavam aquele respeitoso criado ao neto de seu primeiro amo.
Por enquanto diremos apenas que o bom Caetano viu crescer ao seu lado o pai de Teobaldo; que o acompanhou tanto nas suas primeiras correrias de rapaz, como mais tarde nas suas aventuras políticas durante as revoluções de Minas; e que a intimidade entre esses dois companheiros por tal forma os identificou, que afinal criado era já consultado e ouvido como um verdadeiro membro e amigo da família a que se dedicara.
— Mas, Caetano, que diabo veio você fazer aqui? perguntou Teobaldo. Há novidade lá por casa? Fale; Mamãe piorou?
— Não; graças a Deus não há novidade. A senhora baronesa não piorou, e parece até que vai melhor; o que ela tem é muitas saudades de vossemecê.
— E papai, está bom?
— Nhô-Miló (era assim que chamava o amo) está bom, graças a Deus. Foi ele quem me mandou cá. Vim trazer um dinheiro ao doutor.
— Ah! Ao diretor? Quanto foi?
— Trezentos mil réis.
— Seriam emprestados, sabes?
— Creio que sim, porque trouxe uma letra que tem de voltar assinada...
— E isso que trazes aí no cesto é para mim?
— É, sim senhor. É a senhora baronesa quem manda.
Teobaldo apressou-se a despejar a cesta. Vinham doces, queijo, nozes, figos secos, passas, amêndoas, frutas cristalizadas e uma garrafa de vinho Madeira.
— Isto é que é pouco; devia ter vindo mais... considerou ele, pousando a garrafa no chão.
— Pois fique sabendo que, se não fosse Nhô-Mjló, nem essa teria vindo... A senhora baronesa chegou a zangar-se com ele.
E, mudando de tom:
— Mas é verdade, vossemecê está preso?
— Qual! Estou aqui porque assim o quis.
Em quatro palavras Teobaldo contou o motivo da sua prisão.
— Ah! disse o criado, vossemecê é seu pai, sem tirar nem pôr!
— Sim, mas não contes nada em casa...
— Não há novidade, não senhor!
E, depois de conversarem ainda mais alguma coisa, Caetano abraçou de novo o rapaz, despediu-se do outro e retirou-se, pretextando que não convinha demorar-se para não chegar muito tarde à fazenda.
Outra vez fechada a prisão, Teobaldo, restituído ao seu bom humor com o presente da família, voltou-se, já risonho, para o companheiro e disse, batendo-lhe no ombro:
— Ao menos temos aqui com que entreter os queixos. E, dispondo tudo sobre uma cadeira, principiou a expor o conteúdo dos pacotes e das caixinhas de doce: Felizmente a garrafa está aberta e o púcaro dágua serve para beber vinho. Não acha que isto veio a propósito?
— É, resmungou o Coruja.
— Pois então, mãos à obra! Gosta de vinho?
— Não sei...
— Como não sabe?
— Nunca provei.
— Nunca? Oh!
— É exato.
— Pois experimente. Há de gostar.
André entornou no púcaro três dedos de vinho e bebeu-o de um trago.
— Que tal? perguntou o outro fazendo o mesmo.
— É bom! disse Coruja a estalar a língua.
— Com um pouco de queijo e doce ainda é melhor, atire-se!
André não se fez rogado, e os dois meninos, em face um do outro, puseram-se a petiscar, como bons amigos. Teobaldo, porém, depois de repetir várias vezes a dose do vinho, precisava dar expansão ao seu gênio comentador e satírico; ao passo que o companheiro saboreava em silêncio aqueles delicados pitéus, que chamavam ao mal confortado paladar delícias inteiramente novas e desconhecidas para ele.
E contentava-se a resmungar, de vez em quando:
— É muito bom? É muito bom!
— Pois eu, sempre que receber presentes lá de e prometeu o outro, hei de chamá-lo para participar deles. Está dito?
— Está.
— Você chama-se...
— André.
— De...
— Miranda.
— André Miranda.
— De Melo.
— Ah!
— E Costa.
— Não sabia. Como todos no colégio só o tratam por "Coruja"...
— É alcunha.
— Foi aqui que lha puseram?
— Foi.
— Por quê?
— Porque eu sou feio.
— E não fica zangado quando lhe chamam assim?
— Não.
— Eu também faria o mesmo, se me pusessem alguma. Os nossos colegas são todos uns pedaços dasnos, não acha?
Coruja sacudiu os ombros e Teobaldo, um pouco agitado pelo Madeira, começou a desabafar todo o ressentimento que até ai reprimia com tanto orgulho. Falou francamente, queixou-se dos companheiros, julgou-os a um por um, provando que eram todos aduladores e invejosos.
— Não quero saber deles para nada! exclamou indignado. Você é o único com que me darei!
E, muito loquaz e vário, passou logo a falar dos colégios europeus, do modo pelo qual aí se tratavam entre si os estudantes, dos modos de brincar, de estudar em comum, do modo, enfim, pelo qual se protegiam e estimavam.
André o escutava, sem dar uma palavra, mas patenteando no rosto enorme interesse pelo que ouvia.
Era a primeira vez que se achava assim, em comunicação amistosa com um seu semelhante; era a primeira vez que alguém o escolhia para confidente, para íntimo. E sua alma teve com a surpresa deste fato o mesmo gozo de impressões que experimentara ainda há pouco o seu paladar com os saborosos doces até aí desconhecidos para ele.
E o Coruja, a quem nada parecia impressionar, começou a sentir afeição por aquele rapaz, que era a mais perfeita antítese do seu gênio e da sua pessoa.
Quando Salustiano veio abrir-lhes a porta à hora do jantar, encontrou Teobaldo de pé, a discursar em voz alta, a gesticular vivamente, defronte do outro que, estendido na cadeira, toscanejava meio tonto.
— Então? exclamou o homem das barbas longas. — Que significa isto?
— Isto quê, ó meu cara de quebra-nozes? interrogou Teobaldo soltando-lhe uma palmada na barriga.
— Menino! repreendeu o homem; não quero que me falte ao respeito!
— E um pouco de Madeira, não queres também?
— O senhor bem sabe que aqui no colégio é proibido aos alunos receberem vinho.
— Para os outros, não duvido! Eu hei de receber sempre, se não digo ao velho que não empreste mais um vintém ao diretor.
— Não fale assim... O senhor não se deve meter nesses negócios.
— Sim, mas em vez de estares aí a mastigar em seco e a lamber os beiços, é melhor que mastigues um pouco de requeijão com aquele doce.
— Muito obrigado.
— Não tem muito obrigado. Coma!
E Teobaldo, com sua própria mão, meteu-lhe um doce na boca.
— Você é o diabo! considerou Salustiano, já sem nenhum sinal de austeridade. E, erguendo a garrafa à altura dos olhos: — Pois os senhores dois beberam mais de meia garrafa de vinho?!
André ao ouvir isto, começou a rir a bandeiras despregadas, o que fazia talvez pela vez primeira em sua vida.
Pelo menos, o fato era tão estranho que tanto Salustiano como Teobaldo caíram também na gargalhada.
— E não é que estão ambos no gole?... disse o homem, a cheirar a boca da garrafa e, sem lhe resistir ao bom cheiro, despejou na própria o vinho que restava.
— Que tal a pinga? perguntou Teobaldo.
— É pena ser tão mal empregada... responde o barbadão a rir.
— Este Salustiano é um bom tipo! observou o menino, enchendo as algibeiras de frutas e doces.
— Ora, quando o diretor não pode com o senhor eu é que hei de poder...
E, querendo fazer-se sério de novo:
— Vamos! Vamos! Aviem-se, que está tocando a sineta pela segunda vez!
— Não vou à mesa, respondeu Teobaldo - daqui vou para o jardim; diga ao doutor que estamos indispostos.
E, voltando-se para o Coruja.
— Oh! André! toma conta de tudo isso e vamos lá para baixo ouvir a flauta do Caixa-dóculos.