Havia em Catumbi uma velha de uns quarenta e tantos anos, chamada Margarida, que vivia em companhia de sua filha única — a Inezinha, e sobre quem ela firmava todas as suas esperanças e a quem dedicava todos os seus afetos.
Moravam sozinhas e, porque não dispunham de outra fonte de receita senão o trabalho, labutavam a valer desde pela manhã até ao fugir do sol.
A velha era incansável, ativa como poucas, mas, por outro lado, geniosa e resingueira como ninguém. Posto que o trabalho lhe tomava todas as horas do dia e às vezes uma boa parte da noite, ainda ela descobria algum tempo para dar à língua com os vizinhos e comentar a vida do próximo.
— Aquela almazinha não tinha um momento de descanso, murmuravam os seus conhecidos.
E isso mesmo estava a dizer a figurinha enfreneziada de D. Ernestina: pequena, seca e viva como um camundongo.
Era a primeira que se levantava no seu quarteirão, e, ainda não se sabia a cara que traria o sol, já andava o demônio da velha na sua canseira de todos os dias; braços arremangados, saia puxada ao cós, a lidar, a vassourar para a direita e para a esquerda e a ralhar com a filha, que "Benza a Deus! não parecia ter vindo de tal mãe!"
E daí atirava-se às costuras, à lavagem ou ao engomado, e era trabalhar para a frente, até dizer basta.
A Inezinha, porém, com o seu ar de mosca morta, os seus olhos sonolentos e a sua voz arrastada e frouxa, metia-lhe fezes no coração.
— Ó pequena! gritava-lhe a velha muitas vezes, a sacudir-lhe o braço, como se quisesse acordá-la; onde diabo vais tu parar com toda essa moleza?... Deus me livre! Parece que tens chumbo nas pernas! Pois olha que é preciso puxar pelo serviço, se queremos que não nos faltem os feijões!
Mas Inezinha não endireitava nem à mão de Deus Padre e cada vez parecia mais ronceira e menos capaz de tomar caminho.
— Aí está, resmungava a mãe; aí está para que serviu saberes mais do que eu! Bem dizia teu pai, a quem Deus haja; bem dizia ele, quando, quando te pus no colégio, que nada havíamos de lucrar com isso!
— Mas eu faço o que posso... contrapunha a rapariga. Que culpa tenho eu de não me ajeitar à lavagem da roupa e muito menos ao ferro de engomar? Se algumas vezes deixo o serviço, é porque não há outro remédio, é porque me aparece a pontada no estômago! Ora aí está!
A mãe ralava-se. Aquela filha era o seu tormento! Ainda se Inez fosse uma rapariga esperta, diligente para outras coisas, vá! Dar-se-lhe-ia um jeito; mas aquela mesmo, Deus te livre! aquela que não sabia se mexer pelos seus pés, aquela sem vontade que só caminhava quando alguém a empurrava para a frente! Credo! que até parecia castigo do Deus!
Foi nessa conjuntura que D. Margarida se lembrou de fazer a filha tomar criança para ensinar.
Vieram os primeiros discípulos, e tal gosto revelou Inez para esse gênero de trabalho, que o no fim de pouco tempo a sua ideia fixa era arranjar uma cadeira de professora régia.
— Mas, com que pagar a um bom explicador de português, a quem aprontasse em pouco tempo?... A coisa não podia ser tão barata, e elas, coitadas, mal ganhavam para o pão de cada dia.
A velha, entretanto, não descansou mais e tanto furou, tanto virou e tanto tagarelou sobre o caso, que afinal descobriu o Coruja, por intermédio da filha de uma sua amiga, a quem ele ensinava de graça.
Foi logo procurá-lo no colégio, levando engatilhado um arsenal de lamúrias, que havia de mover o coração do professor por mais duro que fosse. André, porém, não lhe deu tempo para lançar mão do arsenal e, logo às primeiras palavras da velha, declarou que ela estava servida.
— Deixe-me o número de sua casa, disse ele, e vá descansada, vá, que a menina há de aprontar-se para a primeira ocasião.
D. Margarida quis beijar-lhe as mãos.
— Não tem que me agradecer; vá, vá! Hoje por mim, amanhã por ti. Talvez que ainda esta noite dê um pulo até lá. E adeus, adeus, que vai entrar a aula de latim.
Daí a dois dias principiara ele a dar as suas lições a Inez, com a mesma pontualidade e o mesmo inalterável zelo que empregava para com todos os seus discípulos.
Chegava lá regularmente às sete horas da noite e principiava logo o trabalho, defronte de um grande candeeiro de azeite, que D. Margarida trazia para o centro da mesa.
As duas senhoras viam em André um benfeitor caído do céu e, para mostrarem o seu reconhecimento, desfaziam-se em pequeninos obséquios: davam-lhe a melhor cadeira, só lhe falavam a sorrir e obrigavam-no a aceitar todas as noites uma xícara de café.
Em pouco o bom rapaz não representava para elas um simples professor, mais um amigo, uma espécie de membro da família.
No fim de alguns meses ele já as levava aos domingos a dar uma volta no Passeio Público e, lá uma vez por outra, acompanhava-as a alguma festa de arraial ou a algum espetáculo no Provisório.
E tudo isso era praticado com tamanha seriedade, com tanto afeto e respeito, que a velha principiou a enxergar no Coruja um noivo capaz de fazer a felicidade da filha e, por conseguinte, a sua felicidade dela, Margarida.
Mas o pior era que, a despeito dos conselhos maternos, Inez tratava o seu dedicado professor com a mesma dubiedade de maneiras, com a mesma frieza e, pode-se dizer até, com a mesma diferença com que tratava a toda gente. Seus gestos e seus olhares estavam como a dizer: A mim tanto se me dá seis como meia dúzia... Casar com este ou casar com aquele, para mim é tudo a mesma coisa, contanto que não me incomodem e não me obriguem a ter de tomar uma resolução. Querem que eu case com o Sr. Miranda? Pois seja, não digo o contrário, mas, por amor de Deus, deixem-me em paz!...
A mãe, porém, que não tinha aquela flegma e entendia que sem a sua intervenção nada se arranjaria, resolveu tomar o negócio a seu cuidado.
— O Sr. Miranda nunca pensou em casar?... perguntou-lhe ela uma vez, sem mais preâmbulos.
André corou e respondeu que não podia ainda pensar nisso.
— Ainda é muito cedo..., disse.
E, abaixando os olhos e a voz:
— Além de que eu não devo esperar semelhante coisa... Conheço-me perfeitamente. Sei quanto sou feio... quanto sou antipático... Onde iria descobrir uma mulher que me aceitasse?...
— Quem sabe lá!... retrucou a velha, olhando com intenção para o lado da filha. Quem sabe lá, seu Miranda!... Às vezes a gente nem desconfia e as coisas estão nos entrando pelos olhos!
André tornou a corar, mas desta vez sorrindo e levantando a vista para sua discípula.
Inez, porém, não fugia nem mugia. Ali estava, como uma empada, tão pronta para casar no dia seguinte como para não casar nunca.
A velha, percebendo isso e confiando muito pouco no gênio iniciativo do professor, teimou com tal insistência nas suas ilusões, que o rapaz não teve remédio senão entrar no assunto.
— Ah! eu não digo que... sim, quer dizer, se eu encontrasse uma menina de bom gênio, que me estimasse, não digo que não; teria até multo prazer com isso.
— Pois há! acudiu a velha; há uma menina nessas condições! E ali está ela defronte de vós! Não é verdade, Inezinha, que de bom grado aceitarias o Sr. Miranda para teu marido?
Inezinha disse que sim com a cabeça, e a velha acrescentou, muito comovida:
— Pois então, meus filhos, abracem-se em minha presença. Quero ver isto assentado de pedra e cal! Vamos, vamos! Não tem de que se mostrar tão envergonhados... Então, Inez! então, Sr. Miranda...
Os dois taciturnos namorados ergueram-se em silêncio e deram entre si um abraço de pura formalidade.
— Agora, volveu D. Margarida, é cuidarmos de decidir quando há de ser o grande dia!
O Coruja, sempre metódico e cauteloso, declarou que achava bom esperar um pouco. Nada de precipitações!... Ele estava no princípio de sua carreira, ainda não podia realizar o casamento; mas, se es coisas caminhassem para a frente, como era de esperar, em breve tudo se poderia fazer.
Desde então as suas constantes visitas à casa da discípula tomaram um caráter mais exclusivo e mais familiar. Aparecia agora mais cedo e assentava-se ao lado da noiva, no mesmo lugar onde, desde o princípio, se habituara a dar as suas lições.
O estudo durava em geral duas horas, no fim das quais se afastavam os livros e começavam todos os três a conversar até ao bater das nove.
Coruja, fácil como era para se escravizar aos hábitos, no fim de algum tempo já não podia passar sem aqueles calmos serões à luz do velho candeeiro de D. Margarida; já não podia dispensar a xicarinha de café, que ele ouvia moer no pilão, no quintal; e precisava sentir ao seu lado, durante aquelas horas certas, o vulto passivo e silencioso de Inez.
Seu coração imaculado e casto foi pouco a pouco se deixando vencer por um sentimento até aí desconhecido para ele.
Era um amor muito transparente, muito calmo, que esperava com evangélica paciência o dia da ventura, sem a mais ligeira perturbação dos sentidos.