Desde que André se mudou para o colégio, a casa de Teobaldo foi aos poucos perdendo o seu digno aspecto de asseio e de ordem, até se transformar em verdadeira república de estudantes.
A Ernestina ficou pasma.
— Como este rapaz tem mudado!... exclamava ela a cada instante, sem atribuir sequer ao outro, ao feio, a alma da primitiva limpeza e do primitivo arranjo, que tanto a maravilharam.
Agora, Teobaldo já não tinha, como dantes, certo escrúpulo em conservar a casa decente. Os seus companheiros da pândega, que lhe pareciam com mais frequência, já não lhe ouviam dizer em certas ocasiões: "Não; não façam isso, para não afligir o Coruja! Ele não gosta destas brincadeiras!..."
Ernestina suportava-lhe as estouvices porque não tinha outro remédio: adorava-o cada vez mais; sofria em vê-lo tão extravagante, tão sem correção e sem juízo, mas sofreria ainda pior se não o pudesse ver absolutamente.
Enquanto a não abandonara a esperança de conquistá-lo, empregou para isso todos os recursos de sua ternura; depois, certa de que nada conseguiria, resignou-se às migalhas do amor que ele lhe atirava de vez em quando, como para a esfaimar ainda mais.
A infeliz já se não queixava e já nem sequer procurava disfarçar o seu cativeiro; entretanto, um dia em que lhe apareceu na porta uma mulher alta, bonita, vestida com um certo exagero de moda, a perguntar muito desembaraçada se era ali que morava Teobaldo, ela disparatou:
— Pois até mulheres já queriam entrar também na patuscada? Era só o que faltava!
E, fechando-lhe a porta no nariz:
— Procure-o na rua, se quiser!
Depois, meteu-se no quarto e pôs-se a chorar, como uma desesperada.
Às três horas, quando Teobaldo chegou de fora, ela foi-lhe ao encontro e, mais branca do que a cal da parede, os beiços trêmulos, as feições estranguladas de ciúme, disse-lhe quase sem poder falar:
— Isto não pode continuar assim!
— Assim, como?
— Nesta desordem em que vai tudo! O senhor está um perdido!
— E a senhora que tem a ver com isso?
— Quero desabafar!
— Pois desabafe, mas que saia longe daqui!
— Cínico!
— Não me aborreça!
E Teobaldo galgou a escada do segundo andar.
Ela seguiu atrás.
— O senhor precisa mudar de vida! exclamou penetrando no quarto.
Ele com a certeza de quem é amado a ponto de lhe perdoarem tudo, pôs-se a cantarolar, tirou o paletó e estendeu-se sobre o divã.
— Até aqui, prosseguiu Ernestina, sem poder conter a cólera; até aqui suportei e suportei muito! O senhor transformou esta casa em uma república, mas agora a coisa é outra; agora até as mulheres querem entrar na pândega!
— Hein? fez Teobaldo, voltando-se para ela.
— Sim, senhor! Veio aí uma mulher à sua procura.
Teobaldo deu um pulo da cama.
— Uma mulher? exclamou. Ah! eu bem contava que ela havia de vir!
E, voltando-se vivamente para a rapariga:
— Uma mulher alta, não é verdade? Pálida, de olhos pretos!...
— Vá para o diabo que o carregue! respondeu Ernestina virando-lhe as costas e saindo do quarto furiosa.
— Então ... disse consigo Teobaldo, esfregando as mãos; voltou ou não voltou?... Ah! logo vi que Leonília havia de voltar!...
Leonília era a mais formosa criatura que empunhava nesse tempo o cetro do amor boêmio.
Teria então pouco menos de trinta anos e parecia não haver ainda orçado pelos vinte.
No poema de sua vida, poema caprichoso e fantástico, escrito au jour le jour, ora com lágrimas, ora com champanha, Teobaldo representava talvez a página mais sentida e com certeza uma das mais recentes e palpitantes.
Mas, que diabo tinha consigo aquele rapaz para enfeitiçar desse modo as mulheres de toda a espécie? Que fluido misterioso espalhava ele em torno de si, com a ironia de seus risos, com o desdém de seus olhos, com a fidalguia de suas maneiras, para as render tão cativas e arrastá-las a seus pés, como Cristo antigamente?
Leonília vira-o uma noite, por acaso, no teatro, desejou-o logo e pediu a um amigo comum que lho apresentasse.
Teobaldo tratou-a com o mesmo sedutor e natural desinteresse que costumava usar para as mulheres desse gênero; mas depois, quando a conheceu mais de perto e teve ocasião de compulsar-lhe o espírito, principiou a distingui-la entre todas as outras com certa preferência.
Leonília, porém, no solipsismo da sua paixão, não se contentou com isso e quis amor, amor tão bom e tão ardente como o que ela lhe dava.
Louca! Teobaldo não era homem para essas transações e, à primeira cena de ciúmes que lhe fez a amante, tomou o chapéu e desertou da alcova dela, sem lhe atirar ao menos uma palavra de despedida.
A loureira apanhou entredentes a afronta e resolveu lançá-lo à vala comum dos seus amores esquecidos; mas tal energia só durou enquanto durou a esperança de ver Teobaldo regressar aos seus braços; e, logo que se convenceu de que o ingrato não voltava, calcou no coração todos os reclamos do orgulho e foi ao encontro dele.
O adorado moço consentiu em tornar à abandonada alcova, mas consentiu friamente, como por mera condescendência, e fazendo-se rogar aos seus carinhos.
Leonília submeteu-se. Precisava daquele demônio para a sua ventura; que diabo havia de fazer? Todavia, a uma palavra de ressentimento que lhe escapou uma ocasião ao jantar, Teobaldo soltou-lhe, em cheio no rosto, uma tremenda bofetada e desapareceu de novo.
Foi depois deste episódio que ela o procurou em casa pela primeira vez. E não o fez esperar muito, visto que já calculava com experiência que o rapaz não voltaria por motu proprio.
Ernestina, coitada, é que ficou brutalmente ferida no seu amor próprio. Ao sair do quarto ia tonta, estrangulada de raiva; mas, ferida por uma ideia voltou logo ao segundo andar, fechou-se por dentro e disse a Teobaldo, que nessa ocasião se aprontava para sair de novo:
— Você não há de agora sair de casa!
— Por quê? perguntou o rapaz, atando a gravata de fronte do espelho.
— Porque não quero!
— Não quer? Tem graça!
— Verá!
— Veremos!
E, quando ele deu por finda a sua toilette, aproximou-se de Ernestina:
— Vamos, filha, basta de tolice! Dá-me a chave.
— Não quero que saia, já disse!
— Dá-me a chave por bem ou eu te obrigo a dar-me à força!...
Ernestina passou-lhe os braços em volta do pescoço.
— Não sejas mau! disse chorando; não judies comigo deste modo!
Dá-me o diabo dessa chave! berrou ele, soltando-lhe um empurrão.
A rapariga deixou-se cair por terra e começou a soluçar.
— Ora pílulas! rosnou Teobaldo, avançando sobre a porta disposto a arrombá-la com um pontapé. Mas nesse momento alguém bateu pelo lado de fora e ele estacou, perguntando com um grito:
— Quem é?
— Abra! respondeu uma voz.
— Estou perdida!... gaguejou Ernestina. É o Almeida.
— Bonito! pensou o estudante; vamos ter escândalo!...
E, voltando-se para a mulher:
— Abra a porta!
— Abrir? E onde me escondo?
— Em parte alguma. Fique!
Ernestina entregou a chave a Teobaldo, abriu a porta. Mas, enquanto ele fazia isto, ela, apanhando as saias, fugia para a alcova imediata.
— Entre! disse o moço, empurrando com um movimento desembaraçado a folha da porta.
O Almeida entrou; estava mais vermelho cinquenta por cento do que era de costume. O seu colete branco, boleado pelo grande abdome, arfava; os músculos faciais tremiam-lhe como as carnes de um bêbado velho.
Pela primeira vez Teobaldo reparou bem para aquele tipo. Notou, obra de um segundo, que ele tinha na fisionomia e no feitio do corpo alguma coisa que lembrava uma foca; notou que as suíças do Almeida principiavam logo por debaixo dos olhos e perdiam-se por dentro do colarinho: notou que ele tinha uma cabeça quase quadrada, encalvecida pela face superior; notou que o nariz do homem não era grego, nem árabe, nem tampouco romano e que, se o separassem do rosto, ninguém seria capaz de dizer o que aquilo era, e tanto podiam supor que seria um legume ensopado, como um pólipo extraído ou um mexilhão fora da casca; e notou ainda que o Almeida constava de quatro pés de altura sobre outros tantos de largura e que as mãos dele eram tão papudas, tão escarlates e tão reluzentes de suor, que pareciam esfoladas.
— Exponha o que deseja! ordenou secamente o rapaz, depois deste exame instantâneo.
— O senhor escusa de negar... principiou o Almeida.
— Eu nunca nego o que faço!... interrompeu Teobaldo..
— Escusa, porque eu sei que ela está aqui.
— Ela quem?
— A Ernestina.
— Está.
— Pois era disso que eu precisava me capacitar! Não me suponha tão tolo, que não tivesse há mais tempo desconfiado da marosca; quis, porém, ter uma certeza e agora posso proceder à vontade, sem me doer a consciência!
— Explique-se.
— Pois não: uma vez que ela o prefere a mim, cedo-lha!
— Hein? Como é lá isso?
— Cedo-lha, repito!
— Cede-ma?!
— Sim. Pode tomar conta dela. É sua!
E, dito isto, o Almeida soprou com força, como quem se vê livre de uma carga pesada, e abicou para a saída.
Teobaldo deteve-o com um gesto.
— Espere, disse-lhe. Antes de tomar conta de um fardo, que eu estava longe de esperar, quero saber ao qual é o seu conteúdo e a sua procedência!
— Ela que lhe explique tudo!... respondeu o velhote.
— Não; contradisse o outro; não quero trocar com ela uma palavra!... Ao senhor compete por tudo em pratos limpos. Em primeiro lugar, desejo saber ao certo que diabo vem a ser o senhor para D. Ernestina.
— Pois então o senhor não sabe?
— Se soubesse não perguntaria.
— Com franqueza?
— Não falo de outro modo.
— Pois então, ouça.
Teobaldo ofereceu uma cadeira ao Almeida e assentou-se em outra.
— Vamos lá disse.
— Haverá coisa de oito anos.. . casei-me, principiou aquele.
— Muito bem.
— Casei-me, mas não fui feliz...
— Sua mulher traiu-o?
— Não; tinha mau gênio. Era uma víbora!
— Muito bem.
— Suportei-a durante três anos; empreguei todos os meios para quebrar-lhe a fúria.
— Quebrou?
— Foi tudo debalde. A megera ficava cada vez pior. Resolvi largar de mão o negócio!
— Abandonou-a?
— Justamente; mas...
— Que idade tinha sua mulher?
— Cinquenta anos.
— Ah!
— E o senhor casou por amor?
— Sim, por amor... dos seus interesses.
— Ah! era rica...
— Nem por isso...
— Quanto possuía?
— Cinquenta contos.
— Um conto por ano. Adiante!
— Mas bem, como eu lhe dizia...
— Como me dizia...
— Resolvi separar-me dela e, foi dito e feito, zás!
— Separou-se!
— Logo.
— Muito bem.
— Foi então que uma noite, voltando para a minha nova residência, encontrei, encostada à porta da rua, uma rapariga...
— Era D. Ernestina...
— Não; era uma mulatinha que me disse haver fugido de casa, porque o senhor estava muito bêbado e queria dar-lhe cabo da pele, depois de ter feito o mesmo à mulher. Perguntei onde ficava a tal casa, e como era perto, dei um pulo até lá. A mulatinha entrou adiante com toda a cautela e voltou pouco depois, declarando que a peste do patrão havia já pegado no sono. "E o cadáver?" perguntei eu. "Deve estar na sala", respondeu a mulatinha. Abrimos a porta, e vi então um corpo de mulher estendido no chão. Esta é que era D. Ernestina.
— Estava morta?
— Não, não estava morta, infelizmente, mas estava muito moída de bordoada! E, ainda bem não me tinha visto entrar na sala, começou a chorar com gana e disse-me então que o borracho do marido, além de que lhe não dava de comer, punha-a naquele estado. "Tem fome?" perguntei-lhe eu. "Muita" respondeu-me ela com a voz fraca. "Quer vir cear comigo?" "Onde?" "Em minha casa". "E meu marido?..." "Mande-o plantar batatas!" Ela aceitou; pôs um xale sobre a cabeça, chamou a mulatinha e saímos todos três.
Quando o Almeida chegou a esse ponto da sua narração, ouviram-se fortes soluços dentro da alcova de Teobaldo. O Almeida sacudiu os ombros e prosseguiu:
— Desde essa noite ela ao meu lado substituiu minha mulher. Despedi a mulatinha, que era alugada, montei esta casa e...
— E o marido?
— Morreu pouco depois, no hospital.
— Não deixou filhos?
— Creio que não; pelo menos foi o que ela me disse.
— Bem! fez Teobaldo, erguendo-se. De sorte que tudo isso que aí está no primeiro andar foi comprado pelo senhor?
— Tudo, e a casa também.
— Logo, tudo lhe pertence?
— Não, porque pertence àquela ingrata...
— E está sempre disposto a separar-se dela?...
— De certo.
— E quanto ela lhe custava em despesa por mês?
— Para que deseja saber?
— Para medir a altura do meu sacrifício.
— Dava-lhe oitenta mil réis por mês em dinheiro e comprava-lhe muitas coisas: roupa, calçado, chapéus, tudo que ela precisava.
— Bem. Pode ir quando quiser.
— Estamos então entendidos, não é verdade? concluiu o Almeida, apertando a mão do estudante e ganhando a saída; fico ao seu serviço — rua do Piolho, n.05.
— Seja feliz! disse Teobaldo, sem lhe voltar o rosto. E, logo que o viu sair chamou por Ernestina.
— Ouviu o que eu acabo de praticar? perguntou ele.
— Ouvi... disse ela abaixando os olhos.
— E no entanto a senhora tem plena certeza de que eu nada fiz para merecer semelhante espiga!
— Por que não declarou enquanto era tempo?
— Porque nunca me desculpo comprometendo uma mulher, seja ela quem for, ainda que eu lhe vote a mais completa indiferença.
— Então o senhor não me tem amor?
— Não, digo-lhe agora com franqueza, já que assim o quis.
— Mas por que não disse isso mesmo ao Almeida? por que consentiu que ele me abandonasse!... por que não lhe pediu para...
— Eu não peço nada a ninguém...
E, enquanto ela soluçava:
— Pelo respeito que devo a mim mesmo, tive de comprometer-me a sustentá-la. Seja! Dar-lhe-ei uma mesada, mas nunca porei os pés nesta casa. Retiro-me hoje mesmo.
— O senhor também me abandona?
— Não a abandono, porque nunca a amparei!
— Sou muito desgraçada! exclamou ela, deixando-se cair sobre uma cadeira, a soluçar. O senhor perdeu-me para sempre!
— Essa agora é melhor! Eu não a perdi! Não tenho culpa de que a senhora seja indiscreta! Quem lhe mandou vir ao meu quarto e fechar-se por dentro? Ora essa!
— Ai, meu rico Almeida! Como tu é que eu não encontrarei nenhum!
A esta exclamação de Ernestina a porta da sala abriu-se; o tipo do Almeida apareceu de novo, não com o aspecto de há pouco, mas risonho e ressumbrante de ventura.
— Oh! Ainda o senhor? disse Teobaldo.
— Ouvi tudo, meu amigo...
— Ouviu ou escutou?
— Escutei, escutei por detrás da porta...
E estendendo-lhe a mão:
— Toque!
— Hein?...
— Toque! Desejo apertar a sua mão! Poucos homens tenho encontrado tão nobres como o senhor! Seu procedimento para com uma mulher, que o acaso comprometia, foi mais do que de um fidalgo, foi de um príncipe! Toque!
Teobaldo consentiu afinal que o Almeida lhe apertasse a mão, mas resolveu de si para si mudar-se quanto antes daquela casa.
— Nada! refletia ele, enquanto os outros dois se abraçavam chorando. Isto não me convém! É sempre desagradável estar entre um tolo e uma mulher apaixonada! Safo-me!