Sala de visitas na casa de PACHECO em S. Clemente. É meio-dia.

CENA PRIMEIRA

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HIPÓLITO e JULIETA

(O pardinho abre a porta da entrada à direita; HIPÓLITO aparece.)

HIPÓLITO - Toma; dá este dinheiro ao cocheiro e traz os livros que estão no tílburi. (O pardinho sai.)

JULIETA (entrando) - Chegaste da cidade?

HIPÓLITO - Agora mesmo.

JULIETA - Tiveste notícias de S. Domingos?

HIPÓLITO - Não; não encontrei o Borges.

JULIETA - Ele veio cá ontem falar com meu pai. Eu escrevi a Cristina.

HIPÓLITO - E ela te respondeu?

JULIETA - Ainda não. Pedi-lhe que viesse passar um dia comigo: há mais de dois meses que não nos vemos. (Senta-se.)

HIPÓLITO - Depois de nos vermos todos os dias.... (O pardinho entra com um maço de livros.) Deita lá no quarto.

JULIETA - Quanto livro!

HIPÓLITO - Não é nem metade dos que comprei.

JULIETA - E pretendes lê-los todos?

HIPÓLITO (com gravidade) - Quero estudar, Julieta. (Senta-se.)

JULIETA (sorrindo) - Agora, depois de formado.

HIPÓLITO - Sim; não sei nada de medicina, perdi o meu tempo, mas hei de aproveitá-lo melhor. Rodrigo tem razão; o homem que não se distingue senão pelo dinheiro é um animal bem ridículo. Vou trabalhar para que um dia se esqueçam que o pai é rico e se lembrem que o filho é um médico.

JULIETA - Fazes muito bem, Hipólito!

HIPÓLITO - Então talvez consiga criar um nome para oferecer a Cristina. Se ela aceitar, serei feliz; senão, fico celibatário, vou morar contigo, e passarei a minha vida a estudar e a ensinar teus filhos que me chamarão titio e me pedirão de vez em quando dinheiro para comprar balas!

JULIETA - Tens visto o Rodrigo?

HIPÓLITO - Ainda ontem.

JULIETA - Ele não é teu amigo.

HIPÓLITO - Por quê?

JULIETA - Nunca vem te ver!

HIPÓLITO - É verdade! Não sabes o motivo?

JULIETA - Não; tu sabes?

HIPÓLITO - Desconfio...

JULIETA - Qual é?

HIPÓLITO - Ele tem medo de ti.

JULIETA - De mim! (Ergue-se.)

HIPÓLITO (sorrindo) - Tem medo de apaixonar-se por ti.

JULIETA (confusa) - Que lembrança!

HIPÓLITO - O caso é que ele nos estima a todos, e especialmente a ti; interessa-se pela tua felicidade, e entretanto foge de nossa casa.

JULIETA - Interessa-se pela minha felicidade!

HIPÓLITO - Sim; ainda ontem perguntou-me se já tinhas casado, se estavas satisfeita. .

JULIETA - E tu que lhe respondeste?...

HIPÓLITO - Que o teu casamento é pior do que um projeto de reforma; que antes de entrar em discussão é adiado. Nem sei mesmo quando se deve fazer. Já decidiram?

JULIETA (triste) - Este sábado...

HIPÓLITO - Daqui a quatro dias?

JULIETA - Sim; mas creio que ainda não será.

HIPÓLITO - Por quê? O Oliveira terá alguma nova razão para demorar?

JULIETA - Não sei! O coração me diz... Mas tu pensas então que Rodrigo não vem à nossa casa...?

HIPÓLITO - Porque te respeita; sabe que tu estás para casar, e não quer ofender-te mostrando gostar de ti... Não te lembras que a última vez que aqui esteve foi quando o Oliveira fixou o dia?

JULIETA - Porém é impossível o que tu dizes! Já te esqueceste que Cristina o ama, e ele...

HIPÓLITO - Não repitas isto, Julieta, eu te peço! Fazes que duvide de um amigo! E é triste! (Ergue-se.)

JULIETA - Desculpa! Não és tu só que sofres!

HIPÓLITO - Bem sei! Mas cada vez que falas nisto, sem querer, me causas um desgosto... Não está em mim! (Vai sair.)

JULIETA - Vem cá, ouve!

(HIPÓLITO sai; JULIETA vai até a porta do fundo seguindo-o, volta e sai à esquerda.)

CENA II

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PACHECO e RODRIGO

(A cena fica um momento deserta; ouve-se bater palmas. O pardinho abre a porta.)

RODRIGO - O senhor Pacheco. (O pardinho sai à primeira porta à esquerda; RODRIGO deita o chapéu numa cadeira e senta-se.)

PACHECO (aparecendo) - Estimo muito a sua visita. Andava mesmo com desejo de falar-lhe; mas o senhor já não aparece...

RODRIGO - Encontramo-nos quase sempre na Praça.

PACHECO - De passagem... E há dias nem isto; porque não fui à cidade; ando adoentado.

RODRIGO - Assim me disseram no seu escritório onde o procurei esta manhã; não o encontrando resolvi-me chegar até aqui.

PACHECO - Vejamos; de que se trata?

RODRIGO - Ontem venceu-se o primeiro pagamento do Borges; e há de estar lembrado que eu garanti a dívida.

PACHECO - Mas eu não aceitei a sua palavra, meu amigo; não era necessária.

RODRIGO - Contudo não quero que sofra um prejuízo por minha causa. Se o Borges não cumpriu a sua promessa, eu cumprirei o meu dever.

PACHECO - Fique descansado por esse lado. Ontem mesmo o Borges levou ao escritório metade do seu ordenado; por sinal que o Guimarães, o seu recomendado, que não sabia desse negócio particular, veio ter comigo para lhe explicar como devia fazer entrada desse dinheiro em caixa.

RODRIGO - Estimo muito; por ele, pelo senhor e por mim. Estou tranqüilo a respeito do passo que lhe fiz dar.

PACHECO - E do qual não me arrependo. O Borges achava-se realmente numa posição tristíssima. Dívidas de duzentos mil-réis já estavam em um conto e mais por causa dos juros capitalizados.

RODRIGO - Agora, graças ao benefício que lhe fez, poderá pagá-las dentro de pouco tempo. Quanto ao Guimarães, como vai ele?

PACHECO - Bem; tem habilidade e gosta do trabalho. Às vezes ainda se lembra da vida antiga; mas passa-lhe logo.

RODRIGO - É natural; não se perdem de repente hábitos adquiridos durante alguns anos. Esse moço tinha uma vida inteiramente ociosa; vivia pelos hotéis e pelas lojas a palestrar e a endividar-se; já é uma grande vitória tê-lo acostumado ao trabalho.

PACHECO - Decerto; e creio que há de vir a ser um homem de bem.

RODRIGO - E um homem útil ao seu país. Mas o senhor também deseja falar-me?...

PACHECO - É verdade. Queria consultá-lo sobre uma negociação. O senhor neste objeto de crédito é entendido.

RODRIGO - Ah! É uma negociação de crédito?

PACHECO - Admira-se?

RODRIGO - Não; um homem como o senhor não podia deixar mais cedo ou mais tarde de reconhecer as vantagens dessa instituição.

PACHECO - Com efeito reconheço, e a prova é que vou pô-la em prática. Venha: quero explicar-lhe o meu plano. Entre. (Dirige-se à porta do gabinete.)

(PACHECO entra no gabinete; RODRIGO vai acompanhá-lo, quando JULIETA aparece no fundo; cumprimentam-se; RODRIGO entra.)

CENA III

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JULIETA e D. ANTÔNIA

D. ANTÔNIA (entrando) - Um bilhete de Cristina. JULIETA (erguendo-se) - Quem trouxe?

D. ANTÔNIA - O preto que veio da cidade; deixaram no escritório.

JULIETA (acabando de ler) - Ah! Ela vem hoje passar o dia conosco.

D. ANTÔNIA - Que milagre!

JULIETA - É meio-dia; não pode tardar.

D. ANTÔNIA - Quem sabe se virão?

JULIETA - Ela diz que vem na barca das dez horas e meia. Veja! (Dá a carta a D. ANTÔNIA.) Depois que foram para S. Domingos, não têm saído; estão sempre em casa...

D. ANTÔNIA - Quem diria! D. Olímpia que antes não perdia bailes, nem teatros; que só queria divertir-se; morar agora fora da corte! Não posso compreender!

JULIETA - Esta vida também aborrece, minha mãe; mais vale viver tranqüila no seu canto.

D. ANTÔNIA - Eu não a censuro; ao contrário, acho que fez muito bem. Devia gastar muito para sustentar aquele luxo. (Ouve-se rumor de um carro.)

JULIETA (correndo à janela) - Um carro!... Não! É um ônibus. (Olha um momento.) Serão elas?

D. ANTÔNIA - Não é possível! D. Olímpia que zombava de quem andava de ônibus!

JULIETA (correndo à porta) - São elas mesmas! (JULIETA abre a porta; entram CRISTINA e OLÍMPIA. As duas meninas abraçam-se; as duas senhoras apertam as mãos. BORGES entra com uma pequena caixa.)

CENA IV

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As mesmas, CRISTINA, OLÍMPIA e BORGES

JULIETA (abraçando CRISTINA) - Cuidei que não me querias mais ver.

OLÍMPIA - Ainda não se esqueceram de mim?

BORGES - D. Antônia, como está?

D. ANTÔNIA - Boa, obrigada. (A OLÍMPIA) Bem vontade tive de ir vê-la; mas Pacheco tem andado doente; e depois é tão longe...

OLÍMPIA - Não era preciso tomar este incômodo, D. Antônia. Não é isto que prova a amizade; já lhe devemos tanto...

D. ANTÔNIA - A mim nada. Mas diga-me uma coisa: como é que se muda assim de repente? Ninguém dirá que a senhora é a D. Olímpia de outrora!

OLÍMPIA - Que quer, D. Antônia? É sempre tempo de corrigir uma falta. Eu não sabia que era pobre!

D. ANTÔNIA - Ah! Desculpe! Não julgava que era esse o motivo; senão... não era capaz...

OLÍMPIA - Não lhe confessei quando fui para S. Domingos?

D. ANTÔNIA - Julguei que era um pretexto...

BORGES - Mas seu marido não lhe disse ainda...

D. ANTÔNIA - Não me disse nada.

OLÍMPIA - O Sr. Pacheco foi delicado.

D. ANTÔNIA - Mas em quê?

OLÍMPIA - Eu lhe contarei tudo.

D. ANTÔNIA - Venham cá para dentro.

JULIETA - Nós já vamos, minha mãe.

D. ANTÔNIA (a BORGES) - Pacheco está aí no gabinete (aponta para a primeira porta à esquerda.) Se quer vá ter com ele, Sr. Borges. (Sai com OLÍMPIA.)

BORGES - Sim, minha senhora. (A CRISTINA) Cristina, a caixa está aqui sobre esta cadeira.

CRISTINA - Já vi, papai. (BORGES entra no gabinete.)

CENA V

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JULIETA e CRISTINA

JULIETA - O que é que trazes aí?

CRISTINA - A minha costura e a de mamãe.

JULIETA - Pois, até num dia que vens passar comigo queres trabalhar? Tu que não coses nunca?

CRISTINA - Quando estava aqui em S. Clemente; mas agora em S. Domingos é o nosso entretenimento. Que pensas? Não pagamos mais modistas, nós mesmas, eu e mamãe, é que cortamos e fazemos os nossos vestidos. E ainda me resta tempo para...

JULIETA - Para quê? Para te divertires?

CRISTINA - Para trabalhar!

JULIETA - Que dizes, Cristina?

CRISTINA - Não tenho vergonha de te confessar. Meu pai tinha-se endividado por nossa causa; minha mãe me disse que era preciso que nós o ajudássemos a pagar aquilo que tinha gasto conosco. Desde então não perdemos mais o nosso tempo. Mamãe sobretudo... Não reparaste como está simples? Seu vestido de cassa...

JULIETA - Não; bem sabes que eu não reparo nestas coisas.

CRISTINA - Porque és boa, Julieta; e não gostas de humilhar a pobreza de ninguém.

JULIETA - Se dizes isto por minha mãe...

CRISTINA - Não; tua mãe ignorava. Era apenas admiração. Mas as outras que nos conheceram quando iam a nossa casa... Ora! Não importa. Tu és a mesma, não é assim?

JULIETA (com expressão) - Sempre a mesma!

CRISTINA (vai a JULIETA que fica pensativa) - Com que ar dizes isto! Ainda estás mal comigo?

JULIETA - Por quê? Nunca estive mal contigo.

CRISTINA - Nem quando te ocultei o que o Rodrigo me disse?

JULIETA - Tinhas razão para isso.

CRISTINA - E muita; mas depois arrependi-me!

JULIETA - Depois que me deixaste?

CRISTINA - Sim; porque lembrei-me que tu ficavas sofrendo por minha causa.

JULIETA - Sofrendo!... Não.

CRISTINA - Sofrendo, sim, Julieta; porque tu gostas dele. Eu percebi no primeiro dia.

JULIETA - Cristina! Eu te peço!...

CRISTINA - Queres esconder-me ainda? Então não és minha amiga?

JULIETA - Não sou tua amiga!... Eu que não desejo nem mesmo que tu penses que posso ser tua rival!...

CRISTINA - Ah! Ainda estás com esta idéia?... Não me conheces, Julieta!... Meu coração não muda.

JULIETA - Como queres que te acredite? Por que ia ele todos os dias à tua casa; por que passava as noites a conversar contigo? Faz-se isto pelos indiferentes?

CRISTINA - Faz-se por aqueles que nos compreendem, e que nos falam dos objetos que estimamos. É tão doce uma confidência!...

JULIETA - Ah! Conversavas com ele a respeito...

CRISTINA - Tu me prometes não contar a ninguém?

JULIETA - Prometo!

CRISTINA - Pois eu te juro, Julieta! Nessas conversas não falávamos senão de ti...

JULIETA - De mim?

CRISTINA (levando o dedo à boca) - Psiu!... Quando ele falava era só de ti! Quando chegava a minha vez... Sabes de quem era. (RODRIGO aparece na porta do gabinete e pára.)

JULIETA (sem vê-lo) - Tu não me enganas, Cristina?

CRISTINA (abraçando-a) - Não, Julieta; não. O Rodrigo te ama.

JULIETA (vendo RODRIGO) - Ah!

CENA VI

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As mesmas e RODRIGO

CRISTINA (admirada) - Estava aqui?... (Erguendo-se) Pois bem, responda: não é verdade?

RODRIGO - Não sei; mas fez mal em dizê-lo.

JULIETA (timidamente) - Por quê?

CRISTINA - É orgulho; há homens que querem ser superiores às paixões.

RODRIGO - Para dominá-las e não ofender as pessoas que respeitamos. Tinha eu direito de perturbar o sossego de uma moça que fez uma escolha; e que espera a felicidade da união que seus pais desejam e que ela aceitou?

JULIETA (a CRISTINA) - Como ele se engana! Cuida que eu espero a felicidade desse casamento!

RODRIGO - Consente nele livre e espontaneamente.

CRISTINA - Que importa?... Nós somos fracas.

RODRIGO - A mulher só é fraca quando não tem um sentimento bastante forte que a proteja.

JULIETA - Ou quando a dúvida lhe faz perder a coragem. (A CRISTINA) Tu não sabes por que não tenho forças para desfazer este casamento, Cristina?... tu não sabes?... É porque me disseram um dia que nós devemos guardar com o nosso primeiro amor, a virgindade de nossa alma! E eu, que supus ser amor esse primeiro desejo de menina de preocupar o pensamento de um homem, quando o senti no coração, quando amei, conheci que tinha sacrificado a minha felicidade. Não podia dar a minha primeira afeição; a outra ele não aceitaria, embora essa fosse a verdadeira, embora essa fosse, eu te juro, Cristina, o meu único, o meu primeiro amor! (Esconde o rosto no seio de CRISTINA.)

RODRIGO - Desculpe-me, D. Julieta. Eu não podia saber o que se passava em sua alma, e repito, não tinha o direito de interrogá-la. Se adivinhasse a luta silenciosa de uma dúvida que eu próprio havia lançado em seu espírito, não deixaria que o acaso e uma indiscrição de Cristina revelassem o que eu ocultava de mim mesmo; porém não acreditava, e temia roubar-lhe uma felicidade que talvez não pudesse dar-lhe.

CRISTINA - E agora?

RODRIGO (tomando a mão de JULIETA) - Acredito!

CRISTINA - Esperem! Esperem! (Corre ao piano.)

JULIETA - Que vais fazer?

CRISTINA - Tocar o dueto de Julieta e Romeu.

JULIETA - Travessa! Sempre brincando!

RODRIGO - E sempre boa! (CRISTINA toca. Entra OLÍMPIA.)

CENA VII

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Os mesmos e OLÍMPIA

OLÍMPIA (a RODRIGO) - Não sabia que estava aqui!

RODRIGO (apertando-lhe a mão) - Quando veio de S. Domingos?

OLÍMPIA - Cheguei há pouco. Cristina estava com saudades de Julieta, e tanto me pediu que me obrigou a sair do meu retiro.

CRISTINA (ao piano) - E ele deve agradecer-lhe, mamãe.

OÚMPIA - Por quê?

CRISTINA - Pergunte a Julieta.

JULIETA - Cristina!... (Chega-se para o piano.)

CRISTINA - O caso é, mamãe, que depois que cheguei já fiz duas pessoas felizes.

JULIETA - Pois eu hei de vingar-me do mesmo modo. (OLÍMPIA tira a costura da caixa e senta-se no sofá.)

CRISTINA (séria) - Lembra-te do que me prometeste.

RODRIGO - E lembre-se também que eu estou desobrigado de minha palavra.

CRISTINA - É verdade! Eu fui a culpada: mas seja meu amigo, e não use de represália.

RODRIGO - Não; um sacrifício de dois meses para um coração do dezessete anos, é bastante!

JULIETA - Um sacrifício?...

RODRIGO - Ela me entende. (Vai sentar-se junto de OLÍMPIA. CRISTINA e JULIETA conversam no piano; às vezes folheando as músicas; outras, roçando os dedos pelo teclado, ligeiramente, de modo que não abafa o diálogo.)

OLÍMPIA (com vivacidade) - Não é Cristina que o senhor ama?

RODRIGO - Não, D. Olímpia.

OLÍMPIA - Mas não me disse?...

RODRIGO - Perdoe-me; fui talvez mais severo do que devia. A sua desconfiança inspirou-me essa idéia. Quis fazer-lhe sentir pelo coração que uma esposa não deve esquecer os seus deveres, porque seu amante pode um dia vingar seu marido. Quis mostrar-lhe que tormento é o da mãe que vê em sua filha uma rival feliz; e uma rival que ela não pode odiar. Confesso que fui severo demais.

OLÍMPIA - Não faz idéia do que sofri! Às vezes era preciso um esforço para não lançar-me aos pés de minha filha e pedir-lhe perdão de joelhos!...

RODRIGO - Com efeito, era tempo de acabar com esse martírio.

OLÍMPIA - Para começar novo.

RODRIGO - Por quê?

OLÍMPIA - Não ama a outra... a Julieta?

RODRIGO - É verdade, amo-a desde o primeiro dia que a vi. Achei nela o que eu procurava neste mundo; uma alma pura onde eu pudesse repousar a inteligência nos momentos de desânimo, um coração onde visse refletirem-se sorrindo os meus pensamentos. Calei este amor por muito tempo; falou hoje pela primeira vez.

OLÍMPIA (com uma tristeza profunda) - E é feliz?

RODRIGO - Sou; confesso.

OLÍMPIA - É o que eu desejo.

RODRIGO - Sou feliz, e quero que aqueles que estimo também o sejam.

OLÍMPIA - E é possível?

RODRIGO - A felicidade não é prazer; é a tranqüilidade da consciência, e as afeições calmas e doces que sentimos em torno de nos. Há de ser feliz, D. Olímpia.

OLÍMPIA - Da felicidade dos outros.

RODRIGO - E que mais bela felicidade? Sentir o orgulho de ter feito a ventura de sua filha, de ter salvado a honra de seu marido, de merecer a estima de seus amigos. Diga-me: essa lembrança não a consola?

OLÍMPIA - Às vezes; mas não é o que me deu forças para transformar a minha vida da maneira por que o fiz. Não sabe em que ocupo os meus dias?

RODRIGO - Não tenho visto quando a vou visitar em S. Domingos? Não vejo agora mesmo em que parece não querer esperdiçar nem um momento que conversa com um amigo?

OLÍMPIA (largando a costura) - Não repare; é o hábito. Há dias pensei que enquanto meu marido trabalhava para pagar as suas dívidas, eu não devia ficar ociosa. É tão fácil achar costuras!... E não julgo que seja feio uma senhora trabalhar para ganhar a decência de sua família. Que diz?... (PACHECO e BORGES aparecem na porta do gabinete conversando baixo.)

RODRIGO - Fez muito bem; eu não me animava a pedir-lhe tanto porque conheço o prejuízo da nossa sociedade, mas já que teve a coragem de arrostá-lo, continue! Seus amigos a aprovarão; eu admiro-a. (Entra D. ANTÔNIA.)

OLÍMPIA - Por uma coisa tão insignificante?

CENA VIII

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Os mesmos, PACHECO, BORGES e D. ANTÔNIA


RODRIGO - Não é tão insignificante como pensa! (Erguendo-se) Que diz, Sr. Pacheco?

PACHECO - A que respeito?

RODRIGO - O senhor não admira uma senhora que estando habituada a viver na melhor sociedade, que tendo seu marido empregado público, não se envergonha de trabalhar para sustentar sua família, e pagar as dívidas que pesam sobre o nome que ela aceitou?

PACHECO - Decerto! E essa senhora merece para mim tanto respeito e tanta consideração como as primeiras da sociedade.

RODRIGO - Ela tem a única nobreza que eu reconheço: a nobreza da virtude e do trabalho.

D. ANTÔNIA - Entretanto, há muita gente que não pensa assim, e julga que uma senhora que trabalha desmerece...

RODRIGO - É verdade. No Brasil há esse prejuízo e por isso a primeira impressão que sofre o estrangeiro observando os nossos costumes, é essa ociosidade completa em que vive a mulher. Nem uma sociedade da Europa apresenta este fenômeno porque ali a civilização já fez compreender que a mulher não é nem uma senhora, nem uma escrava, nem um traste; que o seu mais belo título é o de companheira do homem; companheira no trabalho, na honra, no amor, na vida enfim. No Brasil, ao contrário...

PACHECO - Sim; cá em nossa terra a mulher tem o privilégio da preguiça; mas isto não se entende com a Sra. D. Antônia.

RODRIGO - No Brasil há um princípio falso, todos querem parecer iguais na fortuna, o que é absurdo. A mulher de um empregado público, que apenas ganha cem mil-réis de ordenado, a filha de um homem, que nada possui, vive da mesma maneira, tem os mesmos hábitos que a senhora de alta classe; porque passa os dias na janela, ou a ler romances; vai ao baile que freqüenta a marquesa e a mulher do ministro; quer camarote no teatro lírico e vestido de alto preço. É nessa confusão que está o mal. Quem é rico, divirta-se, quem é pobre, trabalhe. Que quer dizer quando se entra em uma das nossas casas, mesmo de mesquinha aparência, ver-se três ou quatro moças que não fazem senão pentear-se, vestir-se, cantar modinhas, e falar em casamento; e isto quando o pai se mata para ganhar um mesquinho ordenado?

JULIETA - Estamos livres que digam isto de nós, Cristina.

RODRIGO Sim, porque a senhora que é rica e não precisa, D. Julieta, dá o exemplo, trabalhando para os pobres; e Cristina compreende que uma filha deve a seu pai ú vida que recebeu dele, que suas mãos depois de terem trabalhado não são nem menos belas, nem menos delicadas!

OLÍMPIA - Obrigada, meu amigo. Se ainda me restasse alguma dúvida, as suas palavras me dariam o orgulho de uma lembrança tão simples.

BORGES - És tu, Olímpia!... de quem ele falava?... E não me disseste nada!

RODRIGO - O marido é sempre o último a quem se dizem estas coisas. (Vai sentar-se no sofá.)

(Entra GUIMARÁES apressadamente, com uma pena atrás da orelha, vestido como um guarda-livros nas horas de trabalho.)

CENA IX

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Os mesmos e GUIMARÃES

(GUIMARÃES faz um cumprimento geral.)

PACHECO - O que é isto? Temos alguma novidade, Sr. Guimarães?

GUIMARÁES - E muito grande. Vim a toda pressa participar a V.S.a, tal qual estava no escritório, por isso desculpe...

PACHECO (caminhando para o sofá à direita) - Vê-se logo que o senhor nem tempo teve de fechar a carteira; ainda está com a pena na orelha.

GUIMARÃES - É verdade! (Confuso tira a pena e guarda no bolso.)

PACHECO - Mas vamos! O que houve?

GUIMARÃES - Agora mesmo apareceu-me lá um cobrador de uma casa inglesa, do Plowes & C., que desejava falar com V.S.a.

PACHECO - Sobre quê?

GUIMARÁES - O gerente da casa, sabendo que o Sr. Oliveira deve brevemente pertencer à família de V.S.a, por consideração mandou apresentar duas letras vencidas, no valor de trinta contos, que vai mandar protestar.

PACHECO - Duas letras vencidas? Do Oliveira?

GUIMARÃES - Sim, senhor. Parece que ele se acha em más circunstâncias: talvez hoje mesmo se declare a quebra!

PACHECO - Não é possível!

GUIMARÃES - Em todo caso vim avisar a V.S.a, porque deve se lembrar que endossou (tirando a carteira do bolso) em 10 de outubro sete letras de dez contos cada uma; e sem dúvida teremos de pagá-las.

PACHECO Mas ele tem fortuna! O Macedo afirmou... GUIMARÁES - Nunca a teve; tinha crédito, mas não soube aproveitá-lo.

PACHECO - É preciso que eu saiba como é isto! Terá me iludido?... Vou já à cidade! Mas espere... Quero escrever ao Oliveira para que vá ter comigo ao escritório. (Entra no gabinete.)

CENA X

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D. ANTÔNIA, OLÍMPIA, RODRIGO, GUIMARÃES, JULIETA e CRISTINA

JULIETA - Então, minha mãe! Os meus pressentimentos!

D. ANTÔNIA - Não julgues sem conhecer! Tu sabes as causas?

JULIETA - Não; mas adivinho: queria ser rico sem se importar dos meios.

GUIMARÃES (a RODRIGO) - Não o tinha visto, Sr. Rodrigo!

RODRIGO - Como vai no seu emprego?

GUIMARÁES - Muito bem! É ao senhor que o devo, e a única maneira que tenho de agradecer-lhe, é fazendo que não se arrependa da recomendação que me deu.

RODRIGO - Está enganado; devo a si unicamente. A minha carta foi apenas uma ocasião: todo o homem que deseja seriamente ocupar-se, acha um emprego.

GUIMARÃES - E o Oliveira? Ouviu...

RODRIGO - Sabia há dias.

JULIETA - E não me disse?

RODRIGO - E devia dizê-lo? Eu?...

JULIETA - Não; não devia.

(MACEDO entra com uma fruta na mão, cumprimenta D. ANTÔNIA alegremente e OLÍMPIA com desdém.)

CENA XI

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Os mesmos e MACEDO

MACEDO - Então, já sabem?... O Oliveira...

D. ANTÔNIA - O Sr. Guimarães agora mesmo acabou de dizer-nos; mas é certo?

MACEDO - Posso afiançar-lhe; está falido. Eu suspeitei que ele não ia bem, desde que começou a afastar-se de mim, e a ocultar-me os seus negócios.

D. ANTÔNIA - Pobre moço! E não há remédio?...

MACEDO - Quer agora valer-se de mim e do Pacheco; não sei o que seu marido pretende fazer: foi isso o que me trouxe cá.

D. ANTÔNIA - Vá falar-lhe; está escrevendo.

MACEDO - Sim. (Chega-se a JULIETA) Aqui tem uma manga que lhe trouxe, D. Julieta.

HIPÓLITO - Rodrigo!

JULIETA - Obrigada.

RODRIGO - Comprou esta fruta ou deram-lha, Sr. Macedo?

MACEDO - Comprei, meu senhor; e paguei; é o meu costume. (Dirige-se ao gabinete.)

RODRIGO (a JULIETA) - Alguém chora então o dinheiro que ela custou.

MACEDO - O senhor está sempre gracejando! (Entra no gabinete; JULIETA deita a fruta sobre um aparador.)

CENA XII

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Os mesmos e HIPÓLITO

(HIPÓLITO entra enquanto se trocam as últimas palavras, cumprimenta CRISTINA e OLÍMPIA e dirige-se a RODRIGO.)

HIPÓLITO - Rodrigo!

RODRIGO - Adeus, Hipólito!

JULIETA (a HIPÓLITO) - Ah! sinto que não estivesses aqui há pouco para ouvir o que ele dizia.

HIPÓLITO - A que respeito?

JULIETA - A respeito de Cristina.

RODRIGO - Para ele basta uma palavra.

HIPÓLITO - Então dize-a.

CRISTINA (suplicante e do lugar onde está) - Julieta, eu te pedi!...

JULIETA - Não sou eu.

RODRIGO (sorrindo a CRISTINA) - É a nossa vingança.

JULIETA - É verdade.

HIPÓLITO (a RODRIGO) - Fala!

CRISTINA (aproximando-se suplicante de JULIETA) - Olha, mamãe! (Entra OLIVEIRA pálido e fora de si.)

CENA XIII

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Os mesmos, OLIVEIRA, PACHECO e MACEDO

D. ANTÔNIA - Que é isto, Sr. Oliveira?

OLIVEIRA - Uma desgraça, D. Antônia!

PACHECO (aparecendo no gabinete com uma carta na mão) - Não é uma desgraça, Sr. Oliveira, é a desonra!...

OLIVEIRA - Sr. Pacheco!

PACHECO - Quem abusa da boa fé e da estima de um homem, não tem o direito de ofender-se quando ele o acusa. O senhor comprometeu uma parte da minha fortuna, e o que mais é, abusou da confiança...

D. ANTÔNIA - Meu marido!

OLIVEIRA - Pode dizer tudo! É justo!

PACHECO - Iludiu os seus credores inculcando uma fortuna que não tinha!

MACEDO - Se tivesse seguido os meus conselhos!...

OLIVEIRA - Os seus conselhos, Sr. Macedo?

MACEDO - Mais ainda há um meio de restabelecer a sua fortuna.

OLIVEIRA - Qual?

MACEDO - O crédito.

PACHECO - O crédito?... O crédito?... Eis os seus efeitos!... (Aponta para OLIVEIRA.)

RODRIGO - Sim, Sr. Pacheco, eis os seus efeitos! Eis os efeitos do abuso que se faz de uma idéia que não se compreende, de um elemento que não se conhece. Também a pólvora, o vapor, o gás e a eletricidade, todos esses elementos que produzem resultados maravilhosos, desde que não são dominados pela inteligência, e pela razão, revoltam-se contra o homem e o fulminam. São os ignorantes e os loucos que hão sabem usar do poder que Deus colocou em suas mãos, os que brincam com ele e acabam por ser vítimas.

MACEDO - Como o Sr. Oliveira.

RODRIGO (com ironia) - E outros. (A PACHECO) Não condene, pois, uma idéia que já aceitou, Sr. Pacheco, e se quer ver os verdadeiros efeitos do crédito não precisa ir muito longe. Aqui tem um homem que lhe deve a sua honra, que o senhor salvou; aqui tem uma esposa e mãe que lhe deve a felicidade de sua família, e uma filha que o respeita e o ama como uma providência de sua casa. Todos lhe agradecem sem corar, porque o senhor não lhes deu uma esmola; mas prestou-lhes um serviço. Eu mesmo que lhe falo, cheguei pobre ao meu país, sem outro bem além da minha profissão, sem outro recurso além do meu trabalho; hoje, se não tenho uma grande fortuna, não invejo a de ninguém.

MACEDO - E eu não sou um exemplo vivo? Pacheco sabe que comecei sem um real.

OLIVEIRA - O senhor?... Oh! é muito!... Sr. Pacheco, eu mereço o que o senhor acaba de dizer, procedi mal, cometi um ato desonroso, mas fui arrastado!

MACEDO - É sempre a desculpa.

OLIVEIRA - Este homem, o Sr. Macedo, foi quem me seduziu! Fez-me sonhar lucros fabulosos, envolveu-me em especulações que eu mesmo não compreendia! A princípio a ambição da riqueza me cegou; mas depois pareceu-me que seguia um mau caminho...

MACEDO - Ora, meu caro; não se trata agora disso: o que nos convém saber é o que decide seu sogro.

PACHECO - Seu sogro!... Essa palavra me faz lembrar que antes de tudo está a reputação de minha filha. Que diriam aqueles que vivem de assassinar a honra alheia?...

MACEDO - Sobretudo quando este casamento já está espalhado por toda a parte; e muitos até o julgam já realizado.

PACHECO E bem triste receber no seio de sua família um homem que perdeu a nossa estima; não é verdade, Sr. Rodrigo? Aconselhe-me; diga-me como amigo o que devo fazer.

RODRIGO - É uma questão delicada, Sr. Pacheco; e que só pode ser resolvida por aquela que faz o sacrifício. Se ela tem bastante afeição ao homem que decaiu, e bastante força para querer salvá-lo, eu, seu pai, lhe diria: "Cumpre o teu destino, minha filha!"

JULIETA - Diz bem, Sr. Rodrigo; é a mim que cabe decidir; trata-se de minha felicidade! (A OLIVEIRA) Se o dote que o senhor ambicionava me pertencesse, eu o daria de bom grado para salvar o nome que podia ter sido o meu. Quanto à minha mão, eu a conservo livre para apertar a mão de um homem de honra, que eu respeito, e estimo... (Estende a mão a RODRIGO.)

HIPÓLITO (a meia voz) - E que tu amas!

JULIETA (corando) - Hipólito!...

RODRIGO - Julieta!...

PACHECO - Muito bem, minha filha.

OLÍMPIA - Ah!...

CRISTINA - O que tem, mamãe?

OLÍMPIA - Nada, Cristina!

(Quando JULIETA acaba de falar, MACEDO senta-se no sofá, tira uma carteira de couro da Rússia, lápis e papel e começa a fazer uma conta; o diálogo continua vivo e sem ser interrompido.)

D. ANTÔNIA (a OLIVEIRA) - Não soube conservar a afeição que lhe tinham.

OLIVEIRA - Tornei-me indigno dela, D. Antônia.

CRISTINA (a OLÍMPIA) - Como ela é feliz!

JULIETA - E tu também o serás, não é verdade, Hipólito?

RODRIGO - Ela te ama.

HIPÓLITO - E me foge?

JULIETA - Não compreendes a razão?

RODRIGO - Não vês que foi Julieta que estendeu a mão?

HIPÓLITO - Oh! Compreendo! Cristina!

CRISTINA (confusa) - Era o meu segredo!

HIPÓLITO - Será o nosso.

MACEDO - Quatro... vezes cinco... vinte... (fazendo a conta.)

BORGES - Que faz ele?

GUIMARÃES - Pensa naturalmente que está na Praça.

HIPÓLITO (chamando) - Sr. Borges!... (chegando-se) Eu amo sua filha!

OLÍMPIA (chegando-se) - E ela o ama, Hipólito; mas não deve aceitar sua mão senão quando seu pai tiver pago a dívida do Sr. Pacheco.

BORGES - Achas bom assim?

HIPÓLITO - Mas, D. Olímpia...

OLÍMPIA - Que lhe custa esperar?

MACEDO (a OLIVEIRA) - Então decididamente o seu casamento está desfeito?

OLIVEIRA - Sim, senhor; eu mesmo seria o primeiro a desfazê-lo se não devesse sujeitar-me àquilo que o Sr. Pacheco e sua filha resolvessem.

MACEDO - Neste caso aqui tem a minha conta.

OLIVEIRA - A sua conta?...

MACEDO - Previno-lhe também, Sr. Pacheco, que as letras sacadas pelo Sr. Oliveira, e endossadas por V.S.a, no valor de setenta contos, estão em meu poder.

OLIVEIRA - Como é possível?

MACEDO (sorrindo) - Descontei-as na Praça, no mesmo dia em que o senhor as negociou; tinham uma boa firma.

OLIVEIRA - E essa conta?

MACEDO (sorrindo) - Ah!... Vinte contos quatrocentos e trinta e dois mil e quinhentos; resto daqueles dividendos... É um dinheiro perdido, mas enfim, dos males o menor.

OLIVEIRA - Esses dividendos!... Não foi o senhor que me fez vendê-los por conta da nossa sociedade?

MACEDO - Da nossa sociedade!... O código não reconhece sociedade sem título e registro no Tribunal.

OLIVEIRA - E a sua palavra?

PACHECO (a MACEDO) - Que quer dizer isto?

MACEDO - Ignoro.

RODRIGO - Quer dizer que o Sr. Macedo jogava com o Sr. Oliveira na Praça do Comércio, uma partida de écarté, vendo as cartas do parceiro.

PACHECO - Não entendo!

RODRIGO - O Sr. Macedo sabia que o dividendo de um banco era de dez mil-réis, suponhamos; fazia seu parceiro vendê-los a doze, e os comprava ele mesmo por intermédio de um agente.

MACEDO - Se um não perdesse para o outro ganhar, Sr. Rodrigo, não haveria negócio.

PACHECO (alto) - Sr. Guimarães!

GUIMARÂES - Pronto!

PACHECO - Corra ao escritório, e diga ao caixa que hoje mesmo vá resgatar as minhas letras; não quero a minha firma nas mãos desse homem. É um prejuízo de setenta contos. (GUIMARÃES sai.)

OLIVEIRA - Que eu pagarei, Sr. Pacheco, apesar de estar pobre e miserável.

RODRIGO - Quando se tem a mocidade, a inteligência e a saúde, não se é pobre; Sr. Oliveira. Trabalhe!

PACHECO - Sim, trabalhe; nós lhe acharemos um emprego. (Sai OLIVEIRA.)

PACHECO (a MACEDO) - Quanto ao senhor, não o conheço. Um homem que pratica semelhante imoralidade não deve entrar em minha casa.

MACEDO - Como quiser!... Nunca estudei moral, Sr. Pacheco, e por isso não entendo essas distinções filosóficas. Sou um homem prático, um homem de negócios; trato da minha vida sem me ocupar com a dos outros. Podem dizer que sou agiota, especulador, que vivo de jogar na Praça. Pouco me importa! Estou convencido que só há na sociedade dois poderes reais: a lei e o dinheiro. Respeito uma, e ganho o outro. Tudo que dá a riqueza é bom; tudo que a lei pune, para mim é justo e honesto. Eis os meus princípios. Estou os cumprimentando, meus senhores!

RODRIGO A lei não pune, é verdade, essa especulação imoral; mas não sabe a razão?

MACEDO - Saberei.

RODRIGO É porque a lei despreza o agiota; e deixa que a sua punição lhe seja dada pelo próprio dinheiro que o desmoralizou. O seu castigo é o suplício de Tântalo dessa riqueza mal adquirida. Com o ouro ele compra tudo, menos aquilo que mais deseja, aquilo que ambiciona; que inveja do pobre; e que todos os seus milhões não lhe poderão dar...

MACEDO - O quê?

RODRIGO - A honra e a estima dos homens de bem.

MACEDO (cumprimentando) - Poesia!... Meus senhores!... (Sai.)

PACHECO (sentando-se) É incorrigível!

RODRIGO (idem) - Assim deve ser para servir de exemplo.

(Logo que MACEDO sai, as pessoas que se acham presentes começam a sentar-se. CRISTINA e JULIETA ao piano, HIPÓLITO junto de RODRIGO, D. ANTÔNIA junto de OLÍMPIA. CRISTINA, às vezes, tira uns prelúdios.)

JULIETA - D. Olímpia, a senhora deixa Cristina passar estes oito dias comigo?

OLÍMPIA - Se ela quiser!

HIPÓLITO (a BORGES) - O que está lendo, Sr. Borges?

BORGES - Uma correspondência sobre o aumento dos ordenados.

HIPÓLITO - Veja nos anúncios se há alguma casa a alugar por aqui perto.

BORGES Para o senhor?...

HIPÓLITO - Para mim e minha mulher!

D. ANTÔNIA - Não vais mais à cidade, Pacheco?

PACHECO - Não, já é tarde!

FIM DE "O CREDITO"