Já tinha desfilado a procissão e ficara a rua deserta, que ainda lá estava no mesmo lugar Aires de Lucena quedo como uma estátua.

Seus espíritos se tinham afundado em um pensamento que os submergiam como em um abismo. Lembrara-se que também fizera um voto e ainda não o havia cumprido, dentro do ano que estava quase devolvido.

Horrorizava-o a ideia do castigo, que talvez já estava iminente. Tremia não por sua pessoa, mas por Maria da Glória, que a Virgem Santíssima ia levar, como São Miguel secara a mão que antes havia sarado.

Quando o corsário deu acordo de si e viu onde se achava, correu à praia, saltou na primeira canoa de pescador, e remou direito para a escuna, cujo garboso perfil se desenhava no horizonte iluminado pelos arrebóis da tarde.

— Prepara para largar! Leva âncora!... gritou ele apenas pisou no tombadilho.

Acudiu a maruja à manobra com a presteza do costume e aquele fervor que sentia sempre que o comandante a conduzia ao combate.

No dia seguinte ao amanhecer tinha a escuna desaparecido do porto, sem que houvesse notícia dela, ou do destino que levara.

Quando em casa de Duarte de Morais soube-se da nova, perderam-se todos em conjeturas acerca dessa partida súbita, que nada explicava; pois não havia indícios de andarem pichelingues na costa, e nem se falava de qualquer expedição contra aventureiros que porventura se tivessem estabelecido em terras da colônia.

Maria da Glória não quis acreditar na partida de Aires, e tomou por gracejo a notícia.

Afinal rendeu-se à evidência, mas convencida de que ausentara-se o corsário por alguns dias, senão horas, no ímpeto de combater algum pirata, e não tardaria voltar.

Sucederam-se porém os dias, sem que houvesse novas da escuna e de seu comandante. A esperança foi murchando no coração da menina, como a flor crestada pelo frio, e afinal desfolhou-se.

Apagara-se-lhe o sorriso dos lábios, e o brilho dos lindos olhos empanou-se com o soro das lágrimas choradas em segredo.

Assim foi se finando de saudades pelo ingrato que a tinha desamparado levando-lhe o coração.

Desde muito que a gentil menina estremecia o cavalheiro; e daí nascera o soçobro que sentia em sua presença. Quando a cruel enfermidade assaltou-a, e que ela prostrada no leito, teve consciência de seu estado, o primeiro pensamento foi pedir a Nossa Senhora da Glória que não a deixasse morrer, sem dizer adeus àquele por quem somente quisera viver.

Não só ouvira seu rogo a Virgem Santíssima, como a restituíra à vida e ternura do querido de sua alma. Este era o segredo da novena que se tinha feito logo depois do seu restabelecimento.

A aflição de Aires durante a moléstia da menina, os desvelos que mostrava por ela, ajudando Úrsula na administração dos remédios e nos incessantes cuidados que exigia a convalescença, mas principalmente a ingênua expansão d'alma, que em crises como aquela, se desprende das misérias da terra, e paira em uma esfera superior: tudo isso rompera o enleio que havia entre os dous corações, e estabelecera uma doce correspondência e intimidade entre eles.

Nesse enlevo de querer e ser querida, vivera Maria da Glória todo o tempo depois da moléstia. Qual não foi pois o seu desencanto quando Aires se partiu sem ao menos dizer-lhe adeus, e quem sabe se para não mais voltar.

Cada dia que volveu foi para ela o suplício de uma esperança a renascer a cada instante para morrer logo após no mais cruel desengano.

Cerca de um ano era passado, em São Sebastião não havia novas da escuna Maria da Glória.

Para muita gente passava como certa a perda do navio com toda a tripulação; e em casa de Duarte de Morais já se trazia luto pelo amigo e protetor da família.

Maria da Glória porém tinha no coração um pressentimento de que Aires ainda vivia, embora longe dela, e tão longe que nunca mais o pudesse ver neste mundo.

Na crença do povo miúdo o navio do corsário andava no oceano encantado por algum gênio do mar; mas havia de aparecer quando quebrasse o encanto: o que tinha de suceder pela intrepidez e arrojo do destemido Lucena.

Essa versão popular ganhou mais força com os contos da maruja de um navio da carreira das Índias, que fazia escala em São Sebastião, vindo de Goa.

Referiam os marinheiros que um dia, sol claro, passara perto deles um navio aparelhado em escuna, cuja tripulação compunha-se toda de homens vestidos de compridas esclavinas brancas e marcadas com uma cruz negra no peito.

Como lhes observassem que talvez seriam penitentes, que iam de passagem, afirmavam seu dito, assegurando que os viram executar a manobra mandada pelo comandante, também vestido da mesma maneira.

Acrescentavam os marinheiros que muitos dias depois, em uma noite escura e de calmaria, tinham avistado ao largo o mesmo navio a boiar sem governo; mas todo resplandecente das luminárias dos círios acesos em capelas, e à volta de uma imagem.

A tripulação, vestida de esclavina, rezava o terço; e as ondas banzeiras gemendo na proa, acompanhavam o canto religioso, que se derramava pela imensidade dos mares.

Para o povo, eram estas as provas evidentes de estar o navio encantado; e se misturava assim o paganismo com a devoção cristã, tinha aprendido este disparate com bom mestre, o grande Camões.