Um ano, de dia a dia, andou Aires no mar.
Desde que se partira do Rio de Janeiro, não pusera o pé em terra, nem a avistara senão o tempo necessário para enviar um batel em busca das provisões necessárias.
Na tarde da saída, deixara-se Aires ficar na popa do navio até que de todo sumiu-se a costa; e então derrubara a cabeça aos peitos e quedara-se até que a lua assomou no horizonte.
Era meia-noite.
Ergueu-se e vestindo uma esclavina, chamou a maruja, a quem dirigiu estas palavras:
— Amigos, vosso capitão tem de cumprir um voto e fazer uma penitência. O voto é não tornar a São Sebastião antes de um ano. A penitência é passar esse ano todo no mar sem pisar em terra, assim vestido, e em jejum rigoroso, mas combatendo sempre os inimigos da fé. Vós não tendes voto a cumprir nem pecado a remir, sois livres, tomai o batel, recebei o abraço de vosso capitão, e deixai que se cumpra a sua sina.
A maruja abaixou a cabeça e ouviu-se um som rouco; era o pranto a romper dos peitos duros e calosos da gente do mar:
— Não há de ser assim! clamaram todos. Juramos acompanhar o nosso capitão na vida e na morte; não o podemos desamparar, nem ele despedir-nos para negar à gente a sua parte nos trabalhos e perigos. Sua sina é a de todos nós, e a deste navio onde havemos de acabar, quando o Senhor for servido.
Abraçou-os o corsário; e ficou decidido que toda a tripulação acompanharia seu comandante no voto e na penitência.
No dia seguinte cortaram os marujos o pano de umas velas rotas que tiraram no porão e arranjaram esclavinas para vestirem, fazendo as cruzes com dous pedaços de corda atravessadas.
Ao pôr do sol cantavam o terço ajoelhados à imagem de Nossa Senhora da Glória, ao qual levantou-se um nicho com altar, junto do mastro grande, a fim de acudirem mais prontos à manobra do navio.
Ao entrar de cada quarto, também rezavam a ladainha, à imitação das horas canônicas dos conventos.
Se porém sucedia aparecer alguma vela no horizonte e o vigia da gávea assinalava um pichelingue, de momento despiam as esclavinas, empunhavam as machadinhas, e saltavam à abordagem.
Destroçado o inimigo, tornavam à penitência e prosseguiam tranquilamente na reza começada.
Quando completou um ano, que tinha a escuna deixado o porto de São Sebastião, à meia-noite, Aires de Lucena aproou para terra, e soprando fresca a brisa de leste, ao romper d'alva começou a desenhar-se no horizonte a costa do Rio de Janeiro.
Por tarde, a escuna corria ao longo da praia de Copacabana, e com as primeiras sombras da noite largava o ferro em uma abra deserta que ficava próxima da Praia Vermelha.
Saltou Aires em terra, deixando o comando a Bruno, com recomendação de entrar barra dentro ao romper do dia; e a pé seguiu para a cidade pelo caminho da praia, pois ainda se não tinha aberto na mata-virgem da Carioca a picada que mais tarde devia ser a rua aristocrática do Catete.
Ia sobressaltado o corsário com o que podia ter acontecido durante o ano de sua ausência.
Sabia ele o que o esperava ao chegar? Tornaria a ver Maria da Glória, ou lhe teria sido arrebatada, apesar da penitência que fizera?
Às vezes parecia-lhe que ia encontrar a mesma cena da vez passada, e achar a moça de novo prostrada no leito da dor, mas desta para não mais erguer-se; porque a Senhora da Glória para o punir não ouviria mais a sua prece.
Eram oito horas quando Aires de Lucena chegou à casa de Duarte de Morais.
A luz interior filtrava pelas frestas das rótulas; e ouvia-se rumor de vozes, que falavam dentro. Era ali a casa de jantar, e Aires espiando viu à mesa toda a família reunida, Duarte de Morais, Úrsula e Maria da Glória, os quais estavam no fim da ceia.
Passado o soçobro de rever a menina, Aires foi à porta e bateu.
Duarte e a mulher se entreolharam surpresos daquele bater fora de horas; Maria da Glória porém levou a mão ao seio, e disse com um modo brando e sereno:
— É ele, o Senhor Aires, que está de volta!
— Que lembrança de menina! exclamou Úrsula.
— Não queres acabar de crer, filha, que meu pobre Aires há muito que está com Deus! observou Duarte melancólico.
— Abra o pai! respondeu Maria da Glória mansamente.
Deu ele volta à chave, e Aires de Lucena apertou nos braços ao amigo atônito de o ver depois de por tanto tempo o haver por morto.
Grande foi a alegria de Duarte de Morais e a festa de Úrsula com a volta de Aires.
Maria da Glória porém, se alguma cousa sentiu, não deu a perceber; falou com o cavalheiro sem mostra de surpresa, nem de contentamento, como se ele a tivesse deixado na véspera.
Este acolhimento indiferente confrangeu o coração de Aires, que ainda mais se afligia notando a palidez da moça, a qual parecia estar-se definhando como a rosa, a quem a larva devora o seio.