Dias depois do funesto acontecimento, a escuna Maria da Glória estava fundeada no seio que forma a praia junto às abas do Morro do Catete.

Era o mesmo lugar onde vinte anos antes se fazia a festa do batismo, no dia em que se dera o caso estranho do desaparecimento da imagem da Senhora da Glória, padroeira da escuna.

Na praia estava um ermitão vestido de esclavina, seguindo com o olhar o batel que largara do navio e singrava para terra.

Abicando à praia saltou dele Antônio de Caminha, e foi direito ao ermitão a quem entregou a imagem de Nossa Senhora da Glória.

Recebeu-a o ermitão de joelhos e erguendo-se disse para o mancebo:

— Ide com Deus, Antônio de Caminha, e perdoaime todo o mal que vos fiz. A escuna e quanto foi meu vos pertence: sede feliz.

— E vós, Senhor Aires de Lucena?

— Esse acabou; o que vedes não é mais que um ermitão, e não carece de nome, pois nada mais quer e nem espera dos homens.

Abraçou Aires ao mancebo, e afastou-se galgando a íngreme encosta do outeiro, com a imagem de Nossa Senhora da Glória cingida ao seio.

Na tarde daquele dia a escuna desfraldou as velas e deixou o porto do Rio de Janeiro onde nunca mais se ouviu falar dela, sendo crença geral que andava outra vez encantada pelo mar oceano, com seu Capitão Aires de Lucena e toda a maruja.

Poucos anos depois dos sucessos que aí ficam relatados, começou a correr pela cidade a nova de um ermitão que aparecera no Outeiro do Catete, e fazia ali vida de solitário, habitando uma gruta no meio das brenhas, e fugindo por todos os modos à comunicação com o mundo.

Contava-se que, alta noite, rompia do seio da mata um murmúrio soturno, como o do vento nos palmares; mas que aplicando-se bem o ouvido se conhecia ser o canto do terço ou da ladainha. Esse fato, referiam-no sobretudo os pescadores, que ao saírem ao mar, tinham muitas vezes, quando a brisa estava serena e de feição, ouvido aquela reza misteriosa.

Um dia, dous moços caçadores galgando a íngreme encosta do outeiro, a custo chegaram ao cimo, onde descobriram a gruta, que servia de refúgio ao ermitão. Este desaparecera mal os pressentiu; todavia puderam eles notar-lhe a nobre figura e aspecto venerável.

Trajava uma esclavina de burel pardo que lhe deixava ver os braços e artelhos. A longa barba grisalha lhe descia até o peito, misturada aos cabelos caídos sobre as espáduas e como ela hirtos, assanhados e cheios de maravalhas.

No momento em que o surpreenderam os dous caçadores, estava o ermitão de joelhos, diante de um nicho que ele próprio cavara na rocha viva, e no qual via-se a imagem de Nossa Senhora da Glória, alumiada por uma candeia de barro vermelho, grosseiramente fabricada.

Na gruta havia apenas uma bilha do mesmo barro e uma panela, na qual extraía o ermitão o azeite da mamona, que macerava entre dous seixos. A cama era o chão duro, e servia-lhe de travesseiro um toro de pau.

Estes contos feitos pelos dous moços caçadores excitaram ao último ponto a curiosidade de toda a gente de São Sebastião, e desde o dia seguinte muitos se botaram para o outeiro movidos pelo desejo de verificarem por si mesmos, com os próprios olhos, a verdade do que se dizia.

Frustrou-se-lhe porém o intento. Não lhes foi possível atinar com o caminho da gruta; e o que mais admirava, até os dous caçadores que o tinham achado na véspera, estavam de todo o ponto desnorteados.

Ao cabo de grande porfia, descobriram que havia o caminho desaparecido pelo desmoronamento de uma grande rocha, a qual formava uma como ponte suspensa sobre o despenhadeiro da íngreme escarpa.

Acreditou o povo que só Nossa Senhora da Glória podia ter operado aquele milagre, pois não havia homem capaz de tamanho esforço, no pequeno espaço de horas que decorrera depois da primeira entrada dos caçadores.

Na opinião dos mestres beatos, a Virgem Santíssima queria significar por aquele modo sua vontade de ser adorada em segredo e longe das vistas pelo ermitão; o que era, acrescentavam, um sinal de graça mui particular, que só obtinham raros e afortunados devotos.

Desde então ninguém mais se animou a subir ao píncaro do outeiro, onde estava o nicho de Nossa Senhora da Glória; porém vinham muitos fiéis até o lugar onde se fendera a rocha, para verem os sinais vivos do milagre.

Foi por esse tempo também que o povo começou a designar o Outeiro do Catete, pela invocação de Nossa Senhora da Glória; donde veio o nome que tem hoje esse bairro da cidade.