Estava a findar o ano de 1659.
Ainda vivia Duarte de Morais, então com sessenta e cinco anos, mas viúvo da boa Úrsula que o deixara havia dez para ir esperá-lo no céu.
Era por tarde, tarde cálida, mas formosa, como são as do Rio de Janeiro durante o verão.
O velho estava sentado em um banco à porta de casa, tomando o fresco, e cismando nos tempos idos, quando se não distraía em ver os meninos que folgavam pela rua.
Um mendigo, coberto de andrajos e arrimado a uma muleta, aproximou-se e parando em frente ao velho esteve por muito tempo a olhá-lo, e à casa, que aliás não merecia tamanha atenção.
Notou afinal o velho Duarte aquela insistência, e remexendo no largo bolso da véstia, lá sacou um real, com que acenou ao mendigo.
Este com um riso pungente, que lhe contraiu as feições já decompostas, achegou-se para receber a esmola. Apertando convulso a mão do velho, beijou-a com expressão de humildade e respeito.
Não se demorou porém, arrancando-se à comoção e afastou-se rápido. Sentiu o velho Duarte ao recolher a mão que ela ficara úmida do pranto do mendigo. Seus olhos cansados da velhice acompanharam o vulto coberto de andrajos; e já este havia desaparecido, que ainda eles estendiam pelo espaço a sua muda interrogação.
Quem havia no mundo ainda para derramar aquele pranto de ternura ao encontrá-lo a ele, pobre peregrino da vida que chegava só ao termo da romagem?
— Antônio de Caminha! murmuraram os frouxos lábios do velho.
Não se enganara Duarte de Morais. Era de feito Antônio de Caminha, quem ele entrevira mais com o coração do que com a vista já turva, entre a barba esquálida e as rugas precoces do rosto macilento do mendigo.
Que desgraças tinham abatido o gentil cavalheiro nos anos decorridos?
Partido do porto do Rio de Janeiro, Antônio de Caminha aproou para Lisboa, onde contava gozar das riquezas, que lhe havia legado Aires de Lucena, quando morrera para o mundo.
Caminha era dessa têmpera de homens, que não possuindo em si bastante fortaleza de ânimo para resistir ao infortúnio, buscam atordoar-se.
O golpe que sofrera com a perda de Maria da Glória o lançou na vida de prazeres e dissipações, qual outrora a vivera Aires de Lucena, se não era ainda mais desregrada.
Chegado à Bahia, por onde fez escala, foi Antônio de Caminha arrastado pelo fausto que havia na então capital do Estado do Brasil, e de que nos deixou notícia o cronista Gabriel Soares.
A escuna, outrora consagrada à Virgem Puríssima, transformou-se em uma taverna de bródios e convívios. No tombadilho onde os rudes marinheiros ajoelhavam para invocar a proteção da sua Gloriosa Padroeira, não se via agora senão a mesa dos banquetes, nem se escutavam mais que falas de amor e bocejos de ébrios.
A dama, em tenção de quem se davam esses festins, era uma cortesã da cidade do Salvador, tão notável pela formosura, como pelos escândalos com que afrontava a moral e a igreja.
Um dia teve a pecadora a fantasia de trocar o nome de Maria da Glória que tinha a escuna, pelo de Maria dos Prazeres que ela trouxera da pia, e tão próprio lhe saíra.
Com o espírito anuviado pelos vapores do vinho, não teve Antônio de Caminha força, nem vontade de resistir ao requebro d'olhos que lançou-lhe a dama.
Bruno, o velho Bruno, indignou-se quando soube disso, que para ele era uma profanação. À sua voz severa, os marujos sentiram-se abalados; mas o capitão afogou-lhes os escrúpulos em novas libações. Essas almas rudes e viris, já o vício as tinha enervado.
Naquela mesma tarde consumou-se a profanação. A escuna recebeu o nome da cortesã; e o velho, da amurada onde assistira à cerimônia, arrojou-se ao mar, lançando ao navio esta praga:
— A Senhora da Glória te castigue, e àqueles que te fizeram alcouce de barregãs.