Logo que Itajiba mais vigoroso se achou em estado de encurvar um arco e ensaiar seus passos pelas sendas da floresta, Guaraciaba, para distraí-lo de sua inação e dos cuidados que pareciam atormentá-lo, convidou-o a um passeio e caçada de aves pelas selvas circunvizinhas. Itajiba teve logo ensejo de mostrar sua maravilhosa destreza em atirar a flecha, com grande prazer de Guaraciaba, que saltava de contente conduzindo para a sua taba uma chusma de avezinhas de variadas cores, derribadas pelas certeiras flechadas de Itajiba.
As roupas velhas e dilaceradas, que Gonçalo trouxera consigo, já não podiam servir a Itajiba; tendo de ser adotado na tribo dos Chavantes forçoso lhe era que se trajasse à maneira dos selvagens. Guaraciaba, auxiliada por suas companheiras, incumbiu-se de vesti-lo e armá-lo com todo o esplendor do luxo selvático. Uma túnica, que lhe descia até os joelhos, enfeitada de penas de brilhantes cores, lhe rodeava a cintura; um carcás formado de pele de uma monstruosa jibóia lhe pendia dos ombros recheado de mortíferas setas.
Em vez do chapéu de couro sombreava-lhe a fronte um diadema de plumas ondulantes de vistosas e brilhantes cores. Um rico tacape e um bem trabalhado arco, que Guaraciaba despendurou da sala de armas de seu pai, foram por ele empunhados. Em forma de manto a pele mosqueada de um enorme jaguar lhe caía pelas espáduas. A estes trajos selváticos Itajiba, pouco afeito a trazer os membros expostos aos rigores do tempo, ajuntou uns borzeguins ou polainas de pele de sucuri, impenetrável à umidade, agasalhou os ombros e o peito com uma espécie de gibão estreito feito de macias e finas peles, apertou o seu cinturão de couro de lontra, ao qual prendeu a sua larga faca, e com estes trajos pareceu aos olhos de todos garboso e belo como um verdadeiro príncipe das florestas.
Os passatempos e caçadas de Itajiba e Guaraciaba repetiam-se todos os dias, e o tempo assim lhes corria suave, como as ondas serenas do pátrio rio à sombra dos arvoredos seculares, e sua mútua afeição, alimentada por aqueles solitários entretenimentos, de dia em dia se aumentava, sem que eles se apercebessem, e se expandia como a flor ignorada e sem nome, que exala seus perfumes na solidão. À medida que cresciam as forças de Itajiba, esses passeios foram-se alargando a maiores distâncias, já deslizando vagarosamente em uma leve piroga ao longo das umbrosas ribanceiras, já pelas veredas escondidas da floresta; e pelo caminho Itajiba fazia cair aos certeiros tiros de seu arco a arara azul ou encarnada, a alva garça, rainha dos lagos, o róseo colhereiro, cujas penas são tão estimadas, o tucano de enorme bico, cujo peito rubro é procurado para enfeite da túnica das virgens, o jaó, o inhambu, a capoeira, cujas carnes são tão tenras e saborosas, e mil outras aves, de cujas lindas penas Guaraciaba com suas hábeis mãos compunha vistosos ornatos para as armas de seus guerreiros.
Guaraciaba tanto tinha de meiga e singela, como de alegre e trêfega; ela se aprazia por vezes em perturbar com encantadoras travessuras as graves e profundas cismas de seu amigo. Ora lesta e subtil como uma lebre sumia-se entre as moitas da floresta, sem que Itajiba o pressentisse; este dando por sua falta, olha inquieto para todos os lados , chama-a gritando seu nome uma e muitas vezes, aplica o ouvido aos ecos; mas Guaraciaba não responde, nem aparece em parte alguma. No auge da inquietação Itajiba perplexo não sabe nem o que pensar nem o que fazer, quando sente por detrás uma ligeiras mãozinhas a lhe tapar os olhos.
— Guaraciaba! lhe diz ele sorrindo, que susto me causaste! oh! não brinques mais por essa forma, que me fazes mal.
— Perdoa-me, Itajiba; quis distrair-te de teus cuidados. Estavas tão triste e pensativo! parece que tens muita saudade dos teus e do teu pai!
— Não; pura e formosa filha de Oriçanga, quando estou junto a teu lado, que me importa o resto do mundo?...
Outras vezes com pena das pobres avezinhas, em que Itajiba fazia a mira, ou lhe espantava a caça, ou lhe fazia perder o tiro tocando-lhe o braço no momento de despedir a seta.
Uma vez ambos atravessavam o rio em uma canoa, que Itajiba remava; estavam ainda longe da barranca oposta, quando Guaraciaba súbito dá um grito, salta na água e desaparece. Itajiba pálido de susto pensa que algum monstro do rio, algum jacaré ou sucuri, a arrebatou; sem perder um momento salta na água com a faca em punho, mergulha e surge de novo à tona da água, torna a mergulhar e a surgir, e nada vê senão a canoa rodando rio abaixo sem governo.
Em desesperada ansiedade estava resolvido a morrer naquelas águas antes do que sair delas sem Guaraciaba, quando uma gargalhada vibrante e harmoniosa como o canto da siriema retroa no barranco vizinho. Era Guaraciaba, que de propósito se lançara ao rio, e de um mergulho ganhara a margem. Itajiba ganha de novo a canoa, e dirige-se para o barranco.
— Ó querida e formosa Guaraciaba, diz ele ao chegar entre risonho e grave, por piedade, não brinques mais assim. Olha que um dia, assim como hoje tomei um gracejo teu pela realidade, poderei tomar a realidade por gracejo e faltar-te no perigo.
Um dia a alegria e contentamento, que sempre reinavam nas partidas de caça dos dois selváticos amantes, foram perturbados por um triste, posto que bem simples incidente. Itajiba avistara pousadas sobre um galho de uma alta canjerana duas lindas e grandes juritis de luzidia plumagem, que se beijavam e se afagavam com os encarnados biquinhos, arrulhando de prazer; imediatamente embebe a seta e curva o arco.
— Pobrezinhas! exclama Guaraciaba correndo a estorvá-lo, não as mate, não; deixa-as.
Mas o tiro tinha partido sibilando, e as duas amantes pombas caíram varadas no coração pela mesma seta.
Uma nuvem de tristeza cobriu o coração de Guaraciaba, que nesse dia não brincou nem sorriu mais, um funesto pressentimento a afligia, e aquele acontecimento parecia-lhe um presságio sinistro, mas não sabia de quê, Itajiba em vão procurava dissipar a triste preocupação de sua amiga, já zombando daquela pueril apreensão, já procurando desvanecê-la com razões sérias. Guaraciaba resolveu-se a consultar os pajés sobre a significação daquele nefasto acontecimento. O primeiro a quem se dirigiu respondeu-lhe abanando a cabeça:
— Ah! filha de Oriçanga, semelhante sucesso não pode ser de bom agouro. Resguarda bem teu coração das chamas do amor: teu coração e o daquele a quem amares não poderão ser unidos senão pela morte.
— Em que te pode afligir um fato tão simples, ó bela e mimosa filha do mais poderoso dos caciques? disse-lhe o venerando Andiara, a quem consultou depois. Essa seta traspassando ao mesmo tempo duas inocentes pombas é o amor unindo para sempre duas almas puras.
Esta engenhosa e consoladora explicação calou no espírito de Guaraciaba, e nesse mesmo dia se desvaneceram todos os seus sombrios pressentimentos.
Gonçalo, que no meio da sociedade civilizada só se tinha afeiçoado por capricho e passageiramente a uma ou outra mulher, agora no meio das selvas sentia brotar com energia em seu coração o gérmen de uma paixão ardente e profunda pela mimosa e encantadora virgem dos Chavantes. Posto que visse que esse sentimento era correspondido de um modo inequívoco pela filha de Oriçanga, nem por isso o futuro se lhe antolhava muito sereno e limpo de tormentas. Sabia que o velho cacique, cioso do lustre de sua descendência, a destinava desde a infância ao jovem e garboso guerreiro Inimá, que também de seu lado a adorava extremosamente, e somente morto renunciaria ao seu amor. E Oriçanga, os pajés, os veteranos da tribo, a nação inteira enfim poderiam ver impassíveis a quebra de tão solenes promessas, e consentiriam de bom grado que a ilustre e formosa noiva de Inimá passasse aos braços de um obscuro estrangeiro, foragido e sem nome? Em outros tempos Gonçalo sem deter-se um momento em nenhuma dessas considerações a teria arrebatado à força de armas e despeito de Oriçanga, de Inimá e dos Chavantes, e teria arrostado o furor da tribo inteira só para possuí-la. Mas os longos infortúnios e reveses por que passara tinham domado um pouco sua índole impaciente e fogosa, tornando-o mais prudente e cauteloso.
Guaraciaba por sua parte ouvia com indiferença desde a infância falar-se em sua futura união com Inimá, e nunca ao nome desse guerreiro sentira palpitar-lhe mais rápido o coração. Porém depois que conheceu o jovem estrangeiro, essa idéia tornou-se um peso para sua alma, e não concebia como poderia ser mulher de Inimá amando Itajiba. Mas seu coração, cheio da confiança que a inocência inspira, repousava no porvir e esperava que o céu aplainaria todas as dificuldades, e portanto abandonava-se sem reserva à paixão que a dominava.
Inimá, retraído na profundez das selvas com alguns dos Chavantes que lhe eram mais afeiçoados, continuava a viver afastado das tabas e quase sem comunicação alguma com o resto da tribo, e o desgraçado amante ignorava ainda que nesse mísero forasteiro, que deixara moribundo e crivado de golpes e somente digno de lástima e piedade, surgia contra ele um poderoso e formidável rival de glória e de amor.
Isolado no fundo das solidões procurava disfarçar o seu pesar e abreviar o tempo ansiosamente esperado de lavar sua afronta, cevando o seu furor nos fragueiros exercícios da caça, e perseguindo animais ferozes, como o touro batido e expelido da manada, que desabafa as iras entre rugidos furiosos escorchando troncos e rasgando a terra com as polidas pontas.
Um dia os dois amantes, enlevados em seus entretenimentos, transpondo arroios, descendo grutas e galgando colinas, não dando fé das distâncias que percorriam, nem das horas que se escoavam rapidamente, esquecidos das tabas, do tempo e do mundo, foram-se alargando mais que de costume em seu passeio pela floresta. Quando enfim já fatigados e percebendo-se do tempo, que fugia, lembraram-se de encaminhar seus passos de novo para as cabanas, acharam-se em considerável distância, e com o dia já quase a terminar sua carreira. O sol descambava rapidamente para o ocaso, e nuvens bronzeadas, que de espaço em espaço enchiam-se de fogo como estofos de algodão ardente, anunciavam iminente tempestade. Itajiba, que desconhecia aqueles lugares, onde pela primeira vez penetrava, e que se achava algum tanto confundido pelos giros e voltas que dera pela floresta, subiu a uma eminência a fim de procurar orientar-se; mas o negrume do ocidente, impelido por uma rija ventania, começava a apoderar-se de todo o horizonte; o sol se escondera completamente entre um montão de negras e carregadas nuvens, e Itajiba, cercado por todos os lados de horizontes nublados e morros cobertos de florestas, não podia atinar com o rumo das habitações dos Chavantes.
Por si só nada receava Itajiba, afeito a assoberbar todos os contratempos suscitados pelos homens ou pelos elementos; nem tão pouco sentia-se sem coragem para proteger contra quaisquer azares naquelas solidões a frágil e mimosa criatura que tão cheia de confiança o acompanhava. Ele bastaria para Guaraciaba, como Guaraciaba era todo o seu mundo ou antes o seu céu. Mas a sua longa ausência, o sol que baixava, a tempestade e a noite, que se avizinhava, as suspeitas e susto de Oriçanga e de todos os Chavantes crendo perdida sua Guaraciaba e talvez roubada por ele, em quem tão generosamente se fiara, e sobre quem iam recair ainda que por momentos suspeitas da mais negra deslealdade, tudo isto eram reflexões que o enchiam da mais cruel inquietação.
O vento rugia cada vez com mais violência; o céu se abria em cataratas de fogo, e a chuva começava a despejar-se em torrentes; açoitadas pela refega as árvores vergavam-se rangendo e uivando horrivelmente, e de tempos a tempos um tronco arrancado pelo temporal baqueava com temeroso estrondo desabando pelos grotões profundos. Itajiba naquela cruel conjuntura, já esquecido de todos os mais cuidados, só tratou de procurar uma guarida, em que pudesse pôr a salvo de tão tremendo temporal a sua amada Guaraciaba. Mas por toda a parte só via as selvas imensas, que rugiam e curvavam-se ameaçadoras como querendo desabar sobre suas cabeças, e as torrentes que estrugiam rolando troncos e rochedos pelas quebradas inacessíveis. Tomando Guaraciaba pela mão e amparando-a contra a fúria do vento, que parecia querer arrancá-la do solo e arrebatá-la pelos ares, Itajiba foi descendo para um grotão, no fundo do qual roncava um ribeirão encachoeirado entre rochedos. Não longe da ribanceira enorme lajedo servia de teto a uma vasta e profunda furna, cuja larga entrada se formava sobre uma esplanada, por baixo da qual a torrente turva e espumosa rolava em catadupas. Essa furna medonha à margem de um abismo, ninho talvez de panteras e serpentes, tornou-se nesse dia como a alcova misteriosa que acolheu em seu seio dois amantes felizes, que a tempestade surpreendeu desgarrados de seus lares, e os abrigou contra a fúria dos elementos desencadeados. Entretanto Guaraciaba, perdida no deserto com seu amante em meio daquela horrorosa borrasca, não mostrava pavor nem inquietação alguma, e sorria-se ao perigo, como a gaivota unindo seus alegres pios ao rugir do furacão dos mares. É que ela se fiava na sua inocência e na eficaz proteção de seu valente e dedicado amante. Ali no interior daquela furna os dois amantes se assentaram ao lado um do outro sobre um musgoso banco de pedra talhado pela natureza, esperando que a tormenta se amainasse. Itajiba enlaçava o braço em torno do colo de Guaraciaba, e lhe apertava as mãos entre as suas, enquanto esta fitava nele seus olhos negros cheios ao mesmo tempo de amor e de timidez.