As paixões grandes gostam de expandir-se em ocasiões solenes em face dos espetáculos grandiosos da natureza, em meio das solidões. Itajiba, com o coração a transbordar de emoção e de amor, pensou que o céu lhe enviara aquela tremenda tempestade e lhe mostrara aquele recôndito e misterioso abrigo de propósito para que tivesse ensejo de revelar à formosa filha de Oriçanga toda a força e ardor imenso de sua paixão, e todos os cuidados e desassossegos que o acompanhavam. Enquanto pois em roda e por fora da caverna urravam os furacões, de instante a instante os raios estalavam, a torrente entumecida despenhava-se com fragor na profundeza do abismo, e a tormenta desabava furiosa dilacerando o manto verde-negro das florestas, uma paixão imensa como os desertos onde engendrou-se, pura como a casta e inocente virgem que dela era objeto, se desafogava em palavras repassadas de ternura no seio da selvática beleza que a tinha sabido inspirar.
— Ó minha mui formosa e querida Guaraciaba, murmurava Itajiba aos pés da filha de Oriçanga; se teu coração não adivinhou nem compreendeu o puro e ardente afeto que do fundo da alma te consagro, eu não sei por que maneira, nem com que palavras te possa explicá-lo, pois nem na nossa linguagem das florestas, nem naquela que os imboabas nossos perseguidores me ensinaram, não existem expressões que possam dar idéia dos suaves transportes desta paixão imensa e profunda, que tu, ó a mais formosa das filhas da floresta, só tu soubeste inspirar-me. Paixões como esta, que me devora, não as pode explicar a língua dos homens; só os anjos do céu poderiam exprimi-las em seus cantares de inefável harmonia. Ah! e como poderia eu não amar-te, a ti, manitó celeste enviado por Tupá para velar sobre meus dias, a ti, que com teus carinhosos desvelos, com teu divinal sorriso me restituíste à vida, quando eu era já cadáver, a ti enfim, que com teu amor tornando-me o mais feliz dos viventes, vens abrir-me de novo as portas do porvir e da esperança!...
A estas palavras Itajiba cobriu de ardentes beijos as mãos de Guaraciaba, que tinha entre as suas, levantouse e assentou-se de novo ao lado dela, continuou em tom mais grave:
— Mas ah! minha querida Guaraciaba, quantos embaraços e obstáculos invencíveis não vêm opor-se ao complemento de nossa felicidade! e quão incerta é a nossa sorte no futuro! Teu pai desde o berço destinou-te ao belo e valente Inimá, que também te adora com extremo; e teu pai jamais consentirá em quebrar tão sagrado compromisso. Os guerreiros de tua tribo de há muito te consideram e aclamam à futura esposa desse brilhante chefe, e sem dúvida se oporão resolutamente a que sejas entregue ao obscuro estrangeiro foragido. Bem sei que as florestas imensas estão à nossa disposição, e que em qualquer canto da terra, sem nada mais que o nosso amor, seríamos felizes, como o somos agora dentro desta lapa zombando das tormentas, que aí rugem pelo mundo. Mas tu bem sabes, jurei lealdade e prometi meus serviços a Oriçanga e à sua tribo, e a nossa fuga seria uma torpe traição, em que nem eu nem tu consentiríamos jamais. Entretanto eu te amo com amor inextinguível, e creio que nem na terra nem no céu há poder para apagar esta chama viva e pura que arde-me no coração, e nem de leve posso suportar a idéia desesperadora de perder-te um dia. Ó Guaraciaba, minha doce e pura Guaraciaba! Pudessem estes momentos, que aqui passamos sós nesta caverna ignorada, tendo aos pés essa torrente, amparados por este penedo e guardados pela tempestade, pudessem estes momentos prolongar-se por toda a eternidade!
Estas palavras coavam docemente pelos atentos ouvidos de Guaraciaba, e lhe ressoavam na alma como um hino celestial. Ela sentia-se ao mesmo tempo enternecida e ufana por ouvir aquele altivo e indômito guerreiro pronunciar a seus pés palavras do mais submisso e mavioso amor, e respondeu-lhe cheia de emoção:
— Itajiba, tuas falas são mais doces para a minha alma do que os favos da jataí, ou o suco delicioso do abacaxi. Elas fazem-me palpitar o coração como a flor que estremece ao bafejo perfumado das brisas da manhã. Tu me amas, bem o sei: e o amor que te consagro, também não é para ti nenhum segredo, embora meus lábios não o tenham revelado. A flor mesmo nas trevas se trai pelo seu perfume; a fonte do deserto escondida entre os rochedos se revela por seu murmúrio ao caminhante sequioso. Desde os primeiros momentos tu viste meu coração abrir-se para ti, como a flor do manacá aos primeiros raios do sol. Sinto que não poderei viver mais senão ao teu lado e à tua sombra; se eles quiserem separar-me de ti, ah! morrerei como a flor que da sombra orvalhada do bosque foi transplantada para os areais de fogo. Mas, Itajiba, confiemos na proteção do céu; Tupá é bom e ampara os amores puros. Inimá bem depressa se convencerá de que o não posso amar, procurará esquecer-se de mim, e desistirá de suas pretensões; e meu pai desligado de suas promessas abençoará nosso amor. Amemo-nos, Itajiba, amemo-nos cada vez mais, se é possível, e o céu encarregará de nosso futuro.
E dizendo estas palavras Guaraciaba lançava seus mimosos braços ao colo de Itajiba e o bafejava com seu amor, como a baunilha que enlaça seus tenros vimes ao robusto e altivo tronco do deserto, e lhe distila em torno seu delicioso perfume.
Itajiba, bebendo com avidez as suaves falas de Guaraciaba, foi-se deixando também enlevar pela ingênua e viva confiança que aquela alma inocente depositava na proteção do céu. A tempestade tinha sido tão violenta quanto passageira. O mesmo vento impetuoso que a trouxera a varria rapidamente do firmamento e impelia as nuvens dilaceradas para além das últimas montanhas do levante, como os esquadrões em debandada de um exército derrotado, que foge atropeladamente diante do inimigo vitorioso. O sol já quase tocando ao ocaso, desembaraçado das nuvens que o afrontavam, vibrou subitamente seus raios horizontais por entre os ramos orvalhados da floresta, e um brando clarão róseo insinuando-se pela entrada da caverna iluminou-a de suave crepúsculo e revestiu-a do aspecto fantástico de uma gruta de fadas.
— Olha, Itajiba, exclama sorrindo a filha de Oriçanga, Tupá mandou-nos a tempestade e encaminhou nossos passos para esta caverna ignorada pelos homens a fim de que as juras de nosso amor fossem proferidas longe de vistas curiosas, e não ecoassem em ouvidos estranhos. Vê como ele agora nos envia um raio de esperança e festeja nossa felicidade!...
Itajiba transportado de amor enlaçou ao peito a fronte radiante de Guaraciaba; já seus lábios se tocavam nas delícias do primeiro beijo de amor... súbito um rumor, que se avizinha, chega-lhes aos ouvidos; ouvem-se gritos selváticos, latir de cães, sons de borés e tropear de caçadores. Este estrugido se avizinhava de mais em mais; um instante depois um ligeiro rumor se fez sentir mesmo ao pé da entrada da furna; Itajiba e Guaraciaba sobressaltados olham para aquele lugar e levantam-se de súbito dando um grito de terror . Uma enorme canguçu negra se apresenta parada á porta da gruta com os olhos chamejantes, rosnando e mostrando as agudas presas como que pasmada e indignada de encontrar em seu covil aqueles estranhos hóspedes. Tão perto deles se achava a fera, que Itajiba não tendo espaço suficiente para enristar a flecha, brandiu contra ela o seu formidável tacape. O monstro surpreendido por aquele brusco ataque recuou dois saltos e de novo voltou a face ao seu agressor; este em pé à porta da gruta já de arco feito procurava segurar a mira no coração da onça, quando cheio de pasmo dá com os olhos em um guerreiro, que em pé sobre a esplanada exterior da furna a uns dez passos de distância por detrás da fera, igualmente de arco encurvado também a encarava com assombro, e parecia como que a sua sombra ou o reflexo de sua figura. Era Inimá, que seguido de alguns companheiros perseguia aquela onça e de flecha feita igualmente fazia a mira... contra ele ou contra a fera, que se interpunha entre os dois na mesma direção? Não o pôde saber Itajiba, que em seu assombro esqueceu a fera, que diante dele rugia apresentando as presas ameaçadoras e agitando a comprida cauda a estorcer-se e bater-lhe os flancos como uma jararaca enfurecida. Tendo em frente dois inimigos igualmente ferozes como que hesitava em qual dos dois empregaria o primeiro tiro e aguardava o que primeiro atacasse. Inimá porém, que entre as sombras da gruta entrevira Guaraciaba, espumava e batia os dentes de furor, e na sofreguidão de sua cólera com tal fúria esticou o arco, que este partiu em suas mãos, e a flecha caiu-lhe inerte aos pés. A este rumor a onça, cujos olhos até então estavam constantemente fixos em Itajiba, volta-se rapidamente, em dois pulos se precipita sobre Inimá, tomba-o de costas, calca-lhe o peito com as enormes patas, e apresenta aos cães, que começam a assaltá-la, a boca escancarada guarnecida de buídos dentes, à semelhança de um riso de feroz escárnio. Os companheiros de Inimá, não podendo acompanhar de perto seu infatigável e valente chefe, ainda não eram chegados; mais um instante só e Inimá teria terminado ingloriamente a existência às garras daquele feroz animal. Estava nas mãos de Itajiba o ver-se para sempre livre de seu poderoso rival, sem que sua morte pudesse por maneira alguma ser-lhe imputada. Mas tal pensamento nem por sombra lhe passou pelo espírito, que a isso se recusava absolutamente seu coração leal e generoso. Uma bem despedida seta partiu de seu arco e voou silvando ao coração do monstro, que expirou estrebuchando em seu sangue. Inimá levantou-se desfigurado e torvo, com o peito sangrento lacerado pelas unhas da terrível canguçu. O peito lhe arquejava com violência e seus olhos sanguíneos e desvairados procuravam Itajiba; apenas o avista, grita-lhe com voz convulsa:
— Bem lançada flecha, guerreiro!... cumpriste com destreza o teu dever. Quando o canguçu acossado encontra-se com o jaguar, este o mata, e oferece assim dobrada presa ao caçador. O jaguar se refugia na toca do canguçu, onde o caçador o veio surpreender. É pois forçoso agora que pelejemos. Miserável forasteiro, que vieste trazer a zizânia e a discórdia a nossas tabas, desta vez não me escaparás. Dize-me, insolente e traidor imboaba, como ousaste roubar à taba do cacique essa virgem que te acompanha? Contavas acaso conduzi-la a salvamento para o teu covil tenebroso?... Mas tu vês; Tupá é justiceiro; foi ele que em seus ocultos desígnios dirigiu para aqui meus passos, dando-me por guia essa fera, que acaba de morrer às tuas mãos, como tu morrerás às minhas em punição de teu infame atentado. E tu que fizeste, desgraçada Guaraciaba, incauta pomba, que te deixaste enlear nos laços da astuciosa serpente? como te animaste cobrir assim de vergonha e opróbrio as cãs veneráveis de teu pai?... tu que eras o manitó tutelar de nossa tribo, serás de hoje em diante a sua ignomínia, e verás teu nome pronunciado com horror!...
A raiva, o pasmo, o ciúme de Inimá, vendo a sua adorada Guaraciaba transviada e fugitiva por aqueles desertos em companhia de um estrangeiro, que ele detestava, tinham-lhe ofuscado completamente o espírito, e extinguido em seu coração todo o sentimento nobre, todo o instinto de generosidade. Arrebatando um arco a um dos companheiros, que por fim vinham chegando de tropel, embebe-lhe uma flecha e a dispara contra Itajiba, porém com tal fúria e cegueira, que a flecha passou sibilando aos ouvidos de Itajiba, roçou pelo cocar de plumas de Guaraciaba, que se achava por detrás dele, e sem tocar em ninguém foi-se perder zunindo lugubremente na profundez da furna. Itajiba, que até aquele momento ouvira tudo com impassível serenidade, e só tratava de guardar-se a si e a sua formosa companheira da furiosa agressão do exasperado cacique, rompe enfim o silêncio:
— Inimá, brada ele, és um vil e um cobarde tu, que à testa de tantos guerreiros não te pejas de insultar a um estrangeiro só e sem outra defesa mais que as suas armas, e destilas de teus lábios o veneno da calúnia contra a filha de teu chefe, contra uma virgem adorável digna do respeito e do culto dos homens. És um vil e um cobarde tu, que voltas tuas armas contra aquele que há poucos instantes salvou-te a vida podendo te deixar morrer vilmente entre as garras de uma fera...
Inimá espumando de raiva não o deixou prosseguir, lança-se de um salto sobre Itajiba e atira-lhe um furioso golpe de tacape. Itajiba destro como a onça desvia-se rapidamente dando um pulo para trás, e com a faca em uma das mãos e o tacape na outra está pronto e em atitude de pelejar.
Aquela caverna ia ser testemunha de uma luta tão feroz e sanguinolenta como essa que Itajiba já tivera a sustentar ao chegar entre os Chavantes; mas ah! desta vez ele não quereria morrer, pois o prendia com os mais suaves laços ao mundo e à vida o amor da linda e inocente criatura que ali se achava testemunhando todas aquelas cenas de horror. Entretanto o combate era dos mais arriscados e desiguais; embora matasse Inimá, Itajiba teria de travar-se depois com os cinco ou seis guerreiros da comitiva daquele. Mas o ânimo não lhe franqueia, encomenda-se com mais fervor que nunca à celestial protetora e resoluto aguarda novo ataque de Inimá. Guaraciaba, porém, lança-se no meio dos dois contendores, e voltando-se para Inimá com ar altivo e senhoril exclama:
— Detém-te, Inimá! que furor te cega? é com esse procedimento atroz e indigno que esperas merecer um dia ter a teu lado, em tua taba, a filha do nobre e valente Oriçanga? é assim que pretendes tornar-te digno de comandar a heróica e generosa nação dos Chavantes?... no furor insensato que te alucina, ousas lançar injúrias e baldões contra a filha de teu chefe, e atentar contra a vida daquele que a acompanha e protege por estas solidões! sabes acaso o motivo que nos obrigou a procurar este abrigo, onde nos vieste encontrar? quem te disse que fugimos oculta e traiçoeiramente da cabana de Oriçanga?... Mas não é para contigo, Inimá, que devo justificar-me desta singular ocorrência. Guerreiros, continua ela dirigindo-se aos companheiros de Inimá, guiai-me a mim e a este estrangeiro às nossas tabas e conduzi-nos à presença de meu pai; a ele e a mais ninguém devo dar satisfação do meu procedimento.
Falando assim o peito de Guaraciaba ofegava de indignação, seus olhos cintilavam como diamantes entre as sombras da caverna, e seu talhe e colo elevavamse garbosos como o da ema, rainha das campinas, quando irritada se ergue contra aquele que pretende roubar-lhe o ninho. Em seu orgulhoso porte, na altivez de sua nobre linguagem, revelava-se a descendente de heróicos caciques, a verdadeira princesa das florestas. A estas nobres e severas palavras de Guaraciaba Inimá sentiu gelar-se-lhe no coração toda a sua cólera, e esteve a ponto de cair de rojo a seus pés suplicando-lhe perdão; mas Itajiba ali estava, o orgulho o conteve e balbuciou apenas timidamente estas palavras:
— Perdoa-me, formosa filha de Oriçanga, se te ofendi com minhas rudes falas; a cólera, o amor, o ciúme me desvairam... Vai, gentil Guaraciaba , vai tranqüila recolher-te à sombra da taba, onde sem dúvida teu pai te espera na mais ansiosa inquietação. Mas esse vil forasteiro, que te acompanha, esse sedutor infame pertence-me; há entre mim e ele um pleito de vida e morte, o qual é forçoso que hoje mesmo fique decidido.
— Inimá, bradou ela com império, este estrangeiro acompanhou-me por vontade minha, e deve comigo voltar às tabas. Itajiba, acompanha-me; guerreiros, segui-me e guiai-nos à taba de meu pai.
Inimá, subjugado por aquelas imperiosas palavras, nada replicou; receava mais a indignação daquela delicada virgem do que todo o valor e destreza de seu audaz e intrépido rival. Comprimiu pois todo o seu orgulho bem no fundo da alma, e acompanhou silenciosamente aos outros sem nada compreender das intenções da filha de Oriçanga. Mas aquela submissão e deferência já vinham tarde e de nada já lhe podiam servir. A sentença do jovem cacique estava irrevogavelmente lavrada no espírito de Guaraciaba.