Quando o príncipe saiu de dissolver a Sociedade Tenebrosa do Apostolado, onde penetrara com a mesma audácia de Cromwell no parlamento inglês, o Satanás foi acompanhá-lo, já precavido de respostas contra as naturais recriminações que devia receber, desejoso de não se desligar nunca daquele cuja queda vivia preparando.
D. Pedro, sombrio e taciturno, caminhando para o Paço, apressadamente, não lhe dizia sequer uma palavra. E os dous seguiam, como nas noitadas de sempre, um ao lado do outro, muito amigos para os raros transeuntes que os viam e que deles respeitosamente se afastavam.
E, chegados que foram a régia habitação, penetraram, como sempre, por uma porta escusa, situada por baixo do passadiço que ligava o palácio ao velho convento do Carmo.
Nada, enfim, parecia indicar qualquer alteração na vida de ambos. A mesma ceia, que os esperava todas as noites, estava servida num aposento contíguo, térreo e um pouco úmido, espaçoso e cheio de armários.
Sentaram-se.
Depois da primeira libação, d. Pedro encheu novamente os copos, e, erguendo o seu, disse, maliciosamente, com um sorriso triste de homem que assistiu ao despedaçamento das próprias ilusões:
- A tua amizade! Satanás.
- A nossa!
- Sim. À nossa. Eu acredito na reciprocidade de sentimentos entre nós. Liga-nos um mesmo destino. E já a velha feiticeira do Valongo tinha profetizado que algum dos dous devia morrer pela mão do outro.
E acrescentou:
- Mas, dize-me cá uma cousa! Por que me odeias tu?
- Senhor!
- Não. Não negues. Nem é próprio de ti, nem eu acreditaria nas tuas afirmações e nos teus protestos.
O Satanás fez um gesto vago e incerto de significação.
- O teu ódio! continuou o príncipe, eu o tenho sentido de certo tempo a esta parte, pertinaz e insistente sobre mim. Eu o reconheci até no teu andar e na tua voz, por essas longas noites que temos vivido juntos derradeiramente.
- Qual, senhor! Eu sou novamente vítima de intrigas. O príncipe bem sabe que foi sempre invejada a confiança que me dispensava. E agora, como das outras vezes, seja-me permitido esperar que eu saia desta aventura reabilitado, como sempre me tem acontecido, na sua estima.
- Bem vontade tinha eu que assim fosse. Tu não sabes como é triste e amargo o brusco despedaçar das amizades longamente cimentadas. Tu não sabes como faz sofrer o espetáculo da ingratidão humana.
- Mas nesse caso, basta-lhe querer, basta-lhe examinar os fatos, para reconhecer que a minha dedicação nem por um momento deixou de acompanhá-lo. Eu estava, é certo, lá no Apostolado, mas lá estava para bem servi-lo.
- Não, Satanás! Tu lá não estavas para me servir... Mas também não é essa a grande acusação que te faço, não é por isso que venho falar-te do teu ódio.
- Então! por quê?
- Por quê? Mas não basta, por acaso, esse teu olhar; olhar que espeta, quando o olhar do amigo tem veludo e maciez para o repouso da nossa individualidade toda inteira?
- Senhor!
- Não, fez o príncipe. - Não protestes. Escuta-me.
E d. Pedro, nervoso, agitado, começou a passear pelo quarto o seu grande vulto esbelto de homem bem feito.
Depois, voltando a mesa, ele parou, um pé sobre a cadeira e o queixo repousando sobre a mão longa e fina de fidalgo. E pôs-se a olhar demoradamente para o Satanás.
Este nem se movia, impassível e quieto. Refluíra-lhe para o cérebro, numa pertinaz concentração de idéias, toda a força vital do seu querer. E estava meditando, estava procurando o desenlace desta cena que vinha perturbar-lhe a serenidade vingadora dos planos longamente projetados. Sentia por vezes ímpetos de atirar para longe a máscara da comédia, que a força das circunstâncias o obrigava a representar; desejos de ser ele mesmo nobre e altivo, como sempre fora.
Mas a imagem de Branca perpassava-lhe pela imaginação, destacando-se da treva absoluta do mistério como um pedido solene de vingança. E ele retesava os músculos na rigidez suprema da calma, porque a hipocrisia era a única arma que podia manejar contra aquele príncipe, desde o momento em que lhe não bastava a morte de um homem para fazer o sossego e a paz da sua vida, sempre condenada para a dor.
D. Pedro, porém, continuou:
- Escuta-me, Satanás! Eu primeiro quero dizer-te todo o sofrimento que me vai na alma com esse fúnebre desenlace infalível da nossa velha amizade. Porque eu muito te amei. Foste tu quem me ensinou o manejo das armas, quem acordou em mim esse velho instinto belicoso e aventureiro que fez a glória dos meus avós remotos, mas que os Braganças de agora iam esquecendo no espólio da sagrada herança de família. A ti eu devo enfim ser o que sou - esse rei cavaleiro da raça de Francisco de França, que muitos Pavias podem derrear mas que sai sempre incólume, abroquelado na sua valentia para salvar a sua honra.
E o príncipe fez uma pausa longa e demorada.
- Devo-te isso tudo, acrescentou depois. - Mas tudo isso te tenho pago em confiança e amizade. E tu, entretanto, só porque um dia eu fui roubar-te a amante, tu te fizeste mesquinho e vil, indigno da minha companhia, porque não tens coragem de lutar frente a frente contra mim, porque te embuças no anonimato covarde das conspirações.
E mais violento:
- Eu posso ser amigo do meu adversário. Mas desprezo o hipócrita que maquina nas trevas.
- Pois bem, senhor! cartas na mesa, disse o Satanás levantando-se.
- E assim que eu gosto de jogar as partidas.
- Então, diga-me primeiro: onde está minha filha?
- Tua filha! Quem é tua filha?
- Quem é minha filha! gargalhou Satanás na sua gargalhada louca de velhas armaduras que rangiam. - Quem é minha filha!
E resfolegou longamente, para continuar depois:
- Miserável sedutor! hipócrita tu mesmo! mentiroso e covarde!
D. Pedro avançou para o escultor.
Este deteve-o, porém, com um gesto forte de comando.
E prosseguiu:
- Eu vi-te, sem desonra para ninguém, penetrar na câmara nupcial destes fidalgos. Queriam ouro e brasões heráldicos, e tu levavas-lhe uma cornucópia toda inteira para lhes satisfazer a ganância e as aspirações. Eu vi-te descer ao mais baixo dos bordéis, onde a moeda de prata chega muitas vezes para saciar os apetites de um homem. Somente houve um lugar onde eu nunca te conduzi, cuja porta eu defenderia contra os teus pedidos e contra as tuas ameaças. Era o asilo da inocência e da candura. E foi lá que tu foste buscar minha filha!
- Tua filha! Tua filha! Mas fala! Eu não te entendo.
- Covarde! Tu me dizias ainda há pouco que eu me escondia para conspirar! E que fazes agora? E que fizeste tu?
O príncipe recuou dous passos, subjugado pelo olhar do Satanás.
E este continuou ainda, imprecativamente:
- Sim, eu te odiava e te acompanhava, colava-me a ti como a tua sombra, porque quero saber onde ocultas a minha filha, a pálida e meiga filha dos meus amores, que todos deviam adorar de joelhos, e que tu profanas com o teu hálito envenenado de crápula.
- Mas eu não sei de tua filha, e nem sabia que ela era tua...
- Tanto te rebaixaste que chegas a mentir! Amar Branca deveria ser entretanto a purificação das almas perdidas. Aquela criança tem tanta inocência e tanta candura, que o seu amor deve chegar para o perdão de Deus caindo sobre os infernos como bálsamo caindo sobre feridas. Mas tu, miserável que és, e miserável que nasceste! tu não pudeste te redimir nas asas brancas daquele anjo, que sempre e sempre parece remontar-se para os céus. E te acovardas, e tremes perante a voz vingadora do pai que se ergue contra ti, como a verdade possante da justiça.
- Cala-te, bradou d. Pedro. - Por Deus! Cala-te, Satanás!
- Ah! tens medo de me ouvir! Tens medo que eu te escarre ao rosto toda a tua infâmia!
- Cala-te, repetiu o príncipe desembainhando a espada e investindo contra o outro, cala-te!
O Satanás precaveu-se a tempo e aparou o bote com a sua arma de boa lâmina florentina.
E a luta começou então hercúlea e titânica. Mestres ambos e conhecedores dos segredos da esgrima, eles digladiavam-se silenciosamente, muito calmos, na grande exuberância vital das suas paixões.
Ouvia-se apenas o estuar das respirações arquejantes.
Mas, de repente...