... Branca apareceu à porta, com os olhos desmedidamente abertos, os cabelos soltos sobre o vestido malcuidado e roto. Muito pálida, de olheiras roxas, aparecendo de súbito na moldura da porta, a filha de Pallingrini parecia um fantasma.
Por detrás dela, percebia-se a fisionomia de d. Bias, com a pêra trêmula, oscilando no queixo, e os bigodes arrepiados por um calafrio de medo.
Assim que terminara, dissolvida pelo príncipe, a sessão do Apostolado, d. Bias fora um dos primeiros a sair. Pusera-se a caminho para o Carmo, onde Branca continuava prisioneira. E, ruas afora, d. Bias pensava nela, monologando:
- Amo-a! (levantava um braço), idolatro-a (e levantava o braço), idolatro-a! (e levantava uma perna), venero-a (e agachava-se todo).
De espaço a espaço, um lampião de azeite projetava na rua uma larga toalha de luz. E a sombra de d. Bias estendia-se fantástica, desconjuntada, sacudida de gestos frenéticos, numa pantomima macabra.
- O flor mimosa! pérola divina! (punha os dedos na boca, enviando através da noite um longe beijo apaixonado) o meu peito é uma frágua! (dava um murro no peito). Ah! como é que eu, que tenho vencido tantos homens (segurava a durindana), não te consigo vencer! (abria os braços desoladamente).
Um homem que passava gargalhou, vendo a gesticulação de d. Bias:
- O borracho! vai cozinhar a bebedeira!
O fidalgo espanhol tornou a si: estava diante da tasca do Trancoso. Por hábito, as suas pernas tinham-no trazido até ali, ao Piolho, quando o seu destino era o Carmo. D. Bias, porém, não quis perder a viagem. Parou de pernas abertas, passou três vezes a mão pela testa, suspirou:
No bay como una libación,
A un aflito corazon.
E entrou na bodega, onde ficou duas horas afogando os suspiros no pichel.
Quando saiu, fraqueavam-se-lhe as pernas. Andava tudo à roda.
- Caramba! que há um terremoto! Mas não tremas, terra, que não te faço nada!
E, ao luar, cai aqui, levanta acolá, caminhou para as bandas do Carmo, mandando ás estrelas a sua voz avinhada:
Si de tu hermosura quieres
Una copia con mil gracias,
Escucha, porque pretendo
Yo pintarla!
Amor labró de tus cejas
Dos arcos para su alaja,
Y debajo ba descubierto
Quien lo mata!
Eres dueña...
- Em guarda! berrou ele, interrompendo a cantiga, e recuando, ao ver um vulto negro postado na rua, à sua espera.
Sacou da bainha a durindana. Mas o vulto continuava imóvel. D. Bias tremeu:
- Nobre fidalgo! eu não faço mal a ninguém... deixe-me passar em paz!
Como o vulto não se mexesse, d. Bias animou-se a caminhar um pouco. O vulto era um poste de lampião. D. Bias gingou, destemido e bravo:
- Caramba! que se fuera un hombre...
E seguiu.
Eres duena del lugar,
Vandolera de las almas,
Iman de los alvedrios,
Linda albaja...
Abo! abo! abo!
Un rasgo de tu hemosura,
Quisiera yo retratarla,
Que es estrella, es cielo, es sol;
No, es sino el alva...
Abo! Abo! abo!
Ao chegar ao Carmo, d. Bias enveredou às cambalhotas pelos corredores. De repente, estacou. Uma voz triste cantava, no vasto silêncio do convento adormecido. Era a voz de Branca:
E nas asas de um suspiro,
Que te vai meu coração...
D. Bias ficou quieto, na treva, muito furioso consigo mesmo por estar se comovendo.
Mandei cercar de saudades...
Uma lágrima caiu no bigode de d. Bias.
Mandei cercar de saudades
As bordas do teu caixão...
Um soluço irrompeu do peito de d. Bias.
Fica em tua sepultura
Velando minha paixão...
E d. Bias, chorando como um cabrito desmamado, abriu a porta e entrou na prisão de Branca, murmurando:
- Pela senhora de Valladolid! nunca mais bebo, caramba! Que eu, quando bebo, é isto: fico um bolas!
Branca, assim que viu d. Bias entrar, correu para ele, de braços abertos:
- Paulo! Paulo! Paulo!
D. Bias abriu também os braços, com um grande derretimento amoroso na face. Ela abraçou-o: ele deixou-se abraçar. Ela beijou-o: ele deixou-se beijar.
- Amo-te! amo-te!... murmurou a louca.
D. Bias não pôde mais. Atirou-se de joelhos, mas embaraçou a espada nas pernas, e estirou-se no chão a fio comprido.
- Eu também te amo, donzela!
Levantou-se, agarrando-se às saias da moça, pôs-se de joelhos, e com a voz embargada pelos soluços:
- Donzela! vamos procurar teu pai! Que ou meu tetravô não foi lugar-tenente do Cid ou tu te hás de chamar d. Branca de Bias! Vamos, donzela, vamos procurar teu pai!
E, sem refletir, bêbado de amor e de Cartaxo, arrastou a moça para fora do quarto.
Sim! ele não era homem para essas bandalheiras. Ora, já se tinha visto? um fidalgo das Espanhas fazer sofrer uma donzela que amava! nada! ia ao pai! ia ao pai! O Satanás devia estar no Paço, com o príncipe. Chegava lá, entregava-lhe a filha, desmanchava toda aquela pouca vergonha, atirava-se aos pés do príncipe e bradava-lhe. - Perdão! O príncipe perdoava-lhe, ele pedia ao Satanás a mão da filha, o Satanás concedia-lha, casavam, seriam felizes, amar-se-iam, teriam muitos filhos... Oh! muitos filhos! muitos filhos! e a sua família não morreria com ele, e aquele nome de Bias, tão célebre na história da Espanha e nas bodegas dos Mansanares, continuaria a sua marcha triunfal, através dos séculos, boquiabrindo as gerações faturas!
Era este o sonho que bailava, entre os vapores do vinho, na cabeça de d. Bias, enquanto arrastava Branca pelos corredores do Carmo.
Na rua, quis dar-lhe o braço: ela desatou a correr pela rua do Carmo.
D. Bias voava:
- Oh! não me fujas, sonho de poeta!
Era uma cousa fantástica, pela rua deserta aquela corrida vertiginosa de uma mulher de cabelos soltos e de um fantasma negro, que berrava como um possesso:
- Donzela! virgem! menina!
Branca tropeçou e caiu. D. Bias tomou-a nos braços, e seguiu para o Paço. Agora, Branca continuava a abraçá-lo, a chamá-lo de Paulo.
D. Bias encontrou aberta a pequena porta lateral, muito sua conhecida, por onde o príncipe costumava entrar a desoras. Dessa porta partia um corredor que ia ter a uma sala do rés-do-chão. Havia luz nessa sala. E, mesmo de longe, d. Bias ouviu um retinir de armas.
À porta, pararam. Muito pálida, de olheiras roxas, com os olhos desmedidamente abertos e os cabelos soltos sobre o vestido malcuidado e roto, a filha de Pallingrini parecia um fantasma: e, por detrás dela, percebia-se e fisionomia apavorada de d. Bias, com a pêra trêmula, oscilando no queixo, e os bigodes arrepiados por calafrio.
D. Pedro e Satanás não tiveram tempo de suspender o combate. Branca atirara-se para eles. Mas, d. Bias muito cansado e muito excitado, atirara-se também, agarrando-a. E a espada de d. Pedro cravou-se no ombro direito do fidalgo espanhol, que se deixou cair, urrando:
- Estou morto!
O Satanás, reconhecendo a filha, tomou-a nos braços, de um salto, e fugiu com ela. E só ficaram na sala o príncipe de pé, imóvel, sem saber o que devia fazer, e d. Bias estendido no chão, sem dar acordo de si.
Não foi longa a hesitação do príncipe. Fez vibrar uma campainha. Um criado fiel apareceu.
- Vai já buscar curativos.
E, ficando só, d. Pedro abaixou-se, levantou d. Bias, estendeu-o no sofá.
O descendente do lugar-tenente de Cid voltou a si, jurando que tinha morrido. O criado curou-o. A ferida não era muito grave: a lâmina tinha encontrado a omoplata e não pudera penetrar muito. Mas d. Bias afirmava que tinha morrido, e enchia a sala de lamentações.
- Ouve, servidor fiel: ficas agora autorizado a dizer a todo o mundo que viste d. Bias às portas da morte e que não o viste tremer. Somos todos assim na família: morremos todos por amor e sem chorar. Meu tetravô, lugar-tenente de Cid, morreu na batalha de Bácaras. Viu-se cercado por quatro bárbaros, que lhe vibraram quatro estocadas, que se lhe meteram todas quatro no coração; pois o herói não caiu. Mandou chamar o tabelião, fez testamento, confessou-se, e só morreu quando achou que já podia morrer.
- Bem! mas durma, sossegue!
- Ouve! digo-te eu que me ouças!
- Foi esse o único meu avô que não morreu por causa do amor: minto - morreu por causa do amor da pátria. Meu pai, por exemplo, morreu mártir do amor: amava minha mãe, queria casar com ela, não pôde casar, e morreram os dois virgens um do outro!... Oh! o amor! o amor! o amor!
E, já quase adormecido, prostrado de fadiga, d. Bias tartamudeou ainda com uma voz chorosa:
- Homem não há nada por aí que se coma?