Repetidas vezes Barreda, devorado pela febre, pediu água. A mulher aproximava-se de momento a momento, receando ser chegado o transe supremo; depois ia de novo atirar-se a um canto, onde ficava como desfalecida.
Vendo Manuel o desamparo em que estava o enfermo, pelo desespero da mulher e medo que inspirava a outros o contágio da moléstia, não teve ânimo de retirar-se naquele instante. Custava, porém, à sua natureza enérgica assistir impassível ao sofrimento de uma criatura, sem tentar um esforço qualquer para salvá-la.
Veio-lhe de repente à lembrança um caso que ouvira a seu pai. Saiu fora, montou a cavalo, e pouco depois voltou com um novilho, que laçara e prendeu ao lado da casa, na estaca do curral ou mangueira.
O enfermo passara do torpor à excessiva inquietação.
— Tire a roupa de seu marido, que eu já volto. Vou buscar um remédio que há de fazer-lhe bem.
Abatido o novilho com uma pancada na nuca, em um instante Manuel esfolou-o ainda meio vivo; e correndo à casa, envolveu o corpo do enfermo na pele tépida e sangrenta.
Feito o quê, esperou pelo resultado, assando na brasa um pedaço da carne do novilho para matar a fome.
Seu pai muitas vezes lhe contara que na campanha da Cisplatina, o capitão de uma companhia caíra doente com uma febre de cavalo. O cirurgião do regimento empregara em vão todos os meios para fazê-lo suar. Pela manhã quando se carneava uma rês, dissera ele a rir, vendo arregaçar o couro: "Que bom lençol! Se me tivesse lembrado, embrulharia em um desses o capitão. Não há febre que resista a semelhante cáustico".
O que o cirurgião não pudera fazer, acabava o gaúcho de pôr em prática.
Ou fosse pela energia do remédio, ou pelo vigor da organização, operou-se na enfermidade uma crise salutar, manifestando-se durante a noite reação franca, anunciada por abundantes suores; de madrugada remitiu a febre, e Barreda caiu num sono profundo.
Manuel passou a noite, como o dia, fazendo o ofício de enfermeiro. Apenas deixava o aposento do doente para ir ver seus amigos, a baia e os outros animais a quem havia acomodado no potreiro, tendo o cuidado de fazer com um molho de trevo seco uma cama bem macia para o poldrinho.
Durante dois dias o gaúcho velou sobre o doente, como faria por um amigo. A mulher já reanimada cobrara sua atividade; mas espavoria-se com a idéia de ficar só, e pediu ao Canho que não se fosse antes de ceder de todo a moléstia.
Ao terceiro dia já Barreda, apesar de muito fraco, dava acordo de si e atendia ao que se passava em torno. A primeira coisa em que reparou foi naquele sujeito, cujas feições não podia distinguir, pela obscuridade do aposento e debilidade de sua vista. Além disso o desconhecido calcara o chapéu desabado e erguera a gola do ponche.
— Quem é? perguntou o enfermo com voz extenuada.
Canho estremeceu.
— O senhor não me conhece. Vinha para tratar um negócio, mas encontrei-o de cama. Ficará para outra vez.
— É verdade. Estou aqui de molho, que não sei se arribarei desta.
— O pior já passou, agora é ter paciência
— Que remédio! Olhe, que foi uma boa peça que me pregou esta macacoa! Precisava ir à casa do Perez receber um dinheiro que me deve um chileno; se não, é capaz de abalar sem pagar-me.
— Já ele o fez! Encontrei-o ontem caminho de Corrientes.
— Diabo! Faz-me falta esse dinheiro, disse Barreda agitando-se na cama.
— Não se agonie; vou buscá-lo.
— Como?
— Alcançarei o homem. Dê-me o sinal.
O doente chamou a mulher, que tirou da mala um vale assinado por D. Romero e o entregou a Manuel. Este partiu, no encalço do mascate.
Quatro dias depois estava de volta com o dinheiro. O doente dormia; Manuel não quis vê-lo; falou à mulher. Pela primeira vez, depois de tantos dias, Manuel olhou de frente para essa criatura, que fora a causa involuntária da morte de seu pai. Ainda mostrava quanto devia ser bonita há dez anos passados.
O gaúcho desviou a vista com repugnância; e entregando as moedas que recebera do chileno, tratou de pôr-se novamente a caminho. Esse lugar, que já não era o da caridade e não podia ainda ser o da vingança, causava-lhe horror.
Quando se dirigia ao potreiro para montar, encontrou o menino com que falara no primeiro dia.
— Então vai embora?
— Vou; mas voltarei logo. É pena que você não tenha mais dez anos.
O menino estremeceu com o olhar que lhe deitou o gaúcho.
Em caminho, pela primeira vez, refletiu Manuel sobre os últimos acontecimentos, em que se achara envolvido, sem o esperar. Até então não se dera ao trabalho de pensar a este respeito; mas agora, na monotonia de uma jornada perdida, seu espírito era arrastado malgrado pelas recordações tão vivas ainda.
Era possível que ele, filho de João Canho, houvesse um momento sustido nos braços o assassino de seu pai; e não para matá-lo, mas para servi-lo?
Acreditaria alguém que ele, trazido àquele lugar pelo desejo da vingança, se tivesse desvelado durante alguns dias pela salvação do causador de sua desgraça?
Sua própria razão não concebia como isso acontecera. Às vezes vinham assomos de dúvida, que se desvaneciam logo ante a realidade tão recente. Manuel tinha a consciência de sua natureza ríspida e concentrada; a indiferença e frieza que mostrava em seu trato, não provinham de um hábito somente; eram a repercussão interior da pouca estima em que o gaúcho tinha geralmente a raça humana.
Entretanto, nos últimos dias ele fora tão outro, do que era realmente! Desvelos e solicitude que nunca tivera por pessoas de sua família, como os sentira por um estranho, pelo homem que maior mal lhe fizera neste mundo?
O espírito de Manuel agitou-se algum tempo nesse caos de seu coração; até que afinal, desprendeu-se uma centelha e os lábios murmuraram:
— Eu tenho de matá-lo!
Aí estava a razão. Aquele homem era sagrado para ele como a vítima já votada ao sacrifício. Aquela vida lhe pertencia; fazia parte de sua alma; pois era o objeto de uma vingança tanto tempo afagada.
A idéia de que ele havia de matar o Barreda, tornava Manuel compassivo não para o assassino de seu pai, mas para o enfermo que se revolvia no leito de dores.