Fatos de suma gravidade se passavam por aquele tempo.

O partido republicano, de quem Neto era a alma, senão a cabeça, tinha visto com intenso desgosto a hesitação de Bento Gonçalves em proclamar a revolução. Acreditando que justamente irritado com a demissão, o coronel romperia abertamente contra a presidência, esperavam os radicais se apoderarem do movimento para mais tarde em ocasião oportuna o dirigirem a seus fins; o que realizou-se com efeito em 1836, depois da prisão de Bento Gonçalves, vencido no combate do Fanfa.

Conhecendo, porém, que da próxima regência de Feijó confiava o coronel obter reparação dos agravos que sofrera e garantias para o seu partido, os republicanos temeram perder a disposição favorável dos espíritos, criada pela demissão do homem de mais influência da campanha, e resolveram precipitar o acontecimento.

O dia 7 de setembro, aniversário da independência, foi marcado para a revolução, que devia romper ao mesmo tempo na capital e outros pontos da província. Não podendo, nem lhes convindo, dispensar um chefe tão prestigioso como Bento Gonçalves, era sob a invocação de seu nome, que tudo se fazia.

Neto estava em Piratinim, onde procurava reunir ocultamente alguma força com que marchasse sobre a capital e Rio Grande, sendo preciso. Sita em uma eminência, cercada por bibocas e serras cobertas de mato, essa vila oferecia condições favoráveis à defesa no caso de ataque. Por essa razão, e também por sua posição topográfica, foi ela escolhida para centro do movimento.

Para aí pois tinham convergido os mais ardentes partidistas da revolução, aqueles que desejavam tomar nela uma parte ativa, e ter a glória de pelejar os primeiros combates em pró da libertação da província. Entre estes, um dos mais prontos fora o Lucas Fernandes, que, a pretexto de visitar a irmã, se transportara com a família para o foco da revolução.

Chegando à vila na noite do dia em que os deixamos descansando para concluir a jornada, o Lucas não consentiu que Manuel procurasse outro rancho, senão a casa de sua irmã. Não só devia ele essa atenção ao filho de seu velho amigo, como sorria-lhe a idéia de ter por companheiro das novas lutas, o herdeiro do nome e da coragem de seu antigo camarada João Canho.

Aceitou Manuel pousada por aquela noite, contando partir pela madrugada. Embora o coronel lhe permitisse descansar na estância de Bento Manuel, o que não fizera, podendo portanto demorar-se em Piratinim; contudo desejava o mais depressa possível tranqüilizar o espírito de seu padrinho a respeito do desempenho da comissão.

O Lucas, porém, não o deixou partir só; sabia que o gaúcho ia a Camacã, e aproveitou o ensejo para ver e aproximar-se do coronel. O antigo miliciano acudira ao apelo de Neto; mas combater sob as ordens imediatas de Bento Gonçalves era uma honra, que ele compraria a custo dos maiores sacrifícios.

Lá se foram portanto os dois à estância de São João, onde acharam o coronel ocupado em trabalhos rurais. Teve Lucas uma primeira surpresa; pensava ele ver ali já pronto um pequeno exército, e Bento Gonçalves à sua frente, disciplinando-o para a guerra. Lembrou-se porém que talvez fosse necessário não originar suspeitas nos legalistas para apanhá-los desprevenidos.

Esperou que o coronel lhe falasse a respeito da revolução; mas correndo os dias sem que isto sucedesse, e aproximando-se o 7 de setembro, animou-se ele a tocar no assunto.

— Qual, revolução! Deixe-se disso; vá para casa e fique sossegado.

Desta vez azoou completamente o furriel; e por muitas horas não esteve em si. Foi pedir explicações a Manuel, que não podia dá-las. Este nada sabia, nem indagava. Em Bento Gonçalves precisando de seu braço estava pronto sempre; cumpriria suas ordens, sem inquirir da razão e fim.

Até que raiou o dia 7 de setembro, tão ansiosamente esperado.

Lucas Fernandes largou-se para a Capela, como chamava então o povo a freguesia do Viamão, por causa da ermida de Nossa Senhora da Conceição, edificada em 1751. É um sítio aprazível, a quatro léguas da capital, de que forma um arrebalde muito concorrido em dias de festa.

Havia ali grande animação no dia 7 de setembro de 1835. Desde muito cedo viam-se pelas ruas bandos de gente do povo, e especialmente peonada, percorrendo as ruas em trajes domingueiros, e com uma faixa verde e amarela. As mulheres traziam o emblema das cores nacionais a tiracolo, os homens na cinta ou no chapéu.

Entrando em uma venda, onde estava de bródio uma grande porção de gaúchos a galhofar e beber, o furriel criou alma nova.

— Hoje é hoje! dizia um da roda piscando o olho para os outros.

— Dia grande, dia de mata galego, acrescentou outro.

— Vão pagar o novo e o velho.

— Eu cá prometi à Nicota que lhe havia de levar de presente um rebenque de guasca feito do couro dum!

Risadas e interjeições pitorescas recheavam o bródio popular. O taberneiro, amarelo e esgazeado, não sabia como se ater. Às vezes enxergava nas fisionomias desabridas dos gaúchos visos de ameaça, que emprestava às suas palavras uma significação horrível. Outras vezes porém o riso gostoso e franco dos homens o tranqüilizava até certo ponto, fazendo-lhe pensar que não passavam aqueles ditos de simples chalaça e brincadeira.

— Ah sô galego! gritou a voz taurina do Lucas Fernandes, dando no balcão um murro formidável.

Com a estremeção que sofrera, o taberneiro saltou três vezes sobre os pés, como um dançador de corda.

— Genebra a fartar para esta rapaziada sacudida. E não me respingue! continuou o miliciano atirando uma meia dobla sobre o balcão.

Com este rasgo o furriel ganhou logo as boas graças da súcia; seu tom decidido, as proezas que referiu, e o galão da velha fardeta, elevaram-no enfim por unânime e espontânea eleição ao posto de capitão, que ele aceitou por bem da pátria. Foi o primeiro ato da revolução rio-grandense, essa promoção democrática.

A história talvez não consigne tão importante circunstância; por isso a registramos aqui.

Momentos depois o capitão Lucas percorria triunfante as ruas de Viamão à frente da troça de peões, que ele se propunha disciplinar, afagando a idéia de transformá-la em companhia, e mais tarde elevá-la a batalhão, o que o obrigaria a tomar o posto de coronel. Afinal, quem sabe?... Os generais se faziam daquela massa.

Ansioso esperava o seleiro o sinal para soltar o grito da revolução, quando um cavaleiro a toda a brida esbarrou na praça e meteu-se pelo povo falando ao ouvido de um e de outro. Os gaúchos de orelha murcha iam-se esgueirando, e breve achava-se o futuro batalhão de Lucas reduzido a uma dúzia de farroupilhas, que o acompanhavam ainda ao cheiro da genebra, soltando berros descompassados.

— À capital, camaradas! bradou o furriel. Mostremos a estes poltrões como se briga.

— Viva o capitão! Morram os galegos! respondeu a súcia.

Instantes depois corriam à desfilada pela estrada de Porto Alegre; vários bandos de rapazes e parelheiros que tinham vindo à festa em Viamão foram por patuscada reunindo-se à troça; e assim investiu a caterva pelas ruas da capital fazendo um alarido infernal.

Seriam oito horas da noite.

No estado dos ânimos, esperando-se a cada momento o rompimento da revolução, pode-se imaginar o efeito que produziria aquela cavalgada à disparada pelas ruas da cidade. Acresce que o marechal Barreto avisara da fronteira que estava designado o dia 7 de setembro para o rompimento.

Supuseram todos que a cidade era assaltada.

A guarnição correu a postos. Reboou um tiro de canhão na casa do Trem; tocou a rebate nos quartéis; a guarda de permanentes marchou para o palácio e um piquete de cavalaria saiu a fazer um reconhecimento sobre o inimigo. Por toda a parte não se ouvia senão estrépito d’armas e tropel de animais.

Os festeiros, apenas sentiram o cheiro da pólvora, muscaram-se; houve muito cavalo estropiado e muito parelheiro descadeirado; mas a troça desapareceu como por encanto. Só o nosso intrépido Lucas Fernandes, fantasiando ter ainda atrás de si o batalhão evaporado, fazia floreios de esgrima com a catana, preparando-se para dar uma carga sobre o piquete.

No meio desse entusiasmo foi agarrado por dois permanentes que tiveram ordem de o recolher ao xadrez. Lá ia ele seu destino pela Rua do Ouvidor meditando filosoficamente sobre a sorte das revoluções qual outro Mário, quando um dos soldados pôs-lhe a mão no braço por segurança.

— Largue-me! Por força ninguém me leva.

Era o momento em que passavam dois cavaleiros. Um deles ouvindo aquela voz, esbarrou o animal:

— O que é isto, Sr. Lucas?

— Manuel!... Traído, amigo, traído!

O gaúcho reservou a explicação para mais tarde.

— Deixem o homem, disse ele para os dois guardas.

— E quem é você?

— Eu já lhes digo! replicou Manuel passando a mão ao punho da faca.

O outro cavaleiro adiantou-se:

— Espera lá, rapaz.

Firmando-se nos estribos e tomando o tom do comando disse para os guardas:

— Permanentes, este homem está solto.

— O coronel! murmuraram os guardas.

Era com efeito Bento Gonçalves que chegava da sua estância.

Os guardas se retiraram cabisbaixos.

— Não lhe disse, homem, que se deixasse de rusgas? Iam-no filando! exclamou o coronel a rir.

O furriel guardou nessa ocasião um silêncio eloqüente. Mais tarde porém revelou ele a Manuel em confidência um pensamento que levara a ruminar durante muitos dias.

— Ninguém me tira desta. Quem desmanchou a rusga foi o coronel! Que pena! Uma coisa tão bem arranjada.

Manuel sorriu lembrando-se das cartas que por ele enviara Bento Gonçalves a toda pressa, mas não disse palavra.

Desde que entrou no espírito do furriel aquela convicção, Bento Gonçalves desceu três furos em sua admiração e respeito.

— Um homem que desmancha rusgas!... Não tem que ver! O coronel voltou lá da corte com o miolo transtornado.