Era noite fechada.
Jazia a vila de Piratinim em profundo silêncio, submergida nas trevas. Apenas a trechos ouvia-se, entre os primeiros silvos do temporal iminente, o pio monótono da coruja na matriz, ou um murmúrio de vozes a escapar-se do coice de uma porta.
Era aí a taberna, onde os peões jogavam a primeira ao clarão de uma candeia de graxa cuja luz oscilante e mortiça, filtrando pelos interstícios da porta, cortava a treva espessa como o vôo de um pirilampo.
Também, quando passava a rajada, podia-se escutar o chiado sutil de uma guitarra, tocada à surdina. Partiam estes sons de uma casa próxima à igreja de Nossa Senhora da Conceição, que então servia de matriz à paróquia. Um vulto, embuçado em um poncho escuro de gola erguida, caminhava da esquina da rua onde ficava a casa até a torre da igreja, e aí chegando retrocedia. Na ida, como na volta, parava algum tempo à janela da casa, e encostava o ouvido na rótula; então, ouvia-se o tangido soturno da guitarra que ele trazia por baixo do poncho.
Na sala interior dessa casa estavam três pessoas.
As duas cunhadas e comadres, sentadas no vão da janela que abria para o quintal, continuavam a prática de todas as noites. Durante um mês que estavam juntas, não tinham desfiado ainda todo o rosário de histórias e novidades.
Vidoca não acabara de contar as festas e enredos de Jaguarão, nem as faladas dos castelhanos com as raparigas daquela fronteira. Quanto à Fortunata, esta não esvaziaria em um ano o saco dos mexericos de Piratinim, e a crônica de toda a vila, casa por casa.
Um tanto arredada, em um ângulo da sala, Catita cosia à luz da vela colocada em uma cantoneira. Às vezes a mão da rapariga, puxando a linha para cerrar o ponto, ficava um momento suspensa no ar; e notava-se na sua cabeça uma ligeira inflexão. Parecia, pelo ar absorto da fisionomia, que sua atenção era atraída para outro ponto. Mas logo voltava à costura, redobrando de rapidez no ponteado.
O que a distraía eram os sons da guitarra que pipilavam no silêncio da rua, e às vezes se destacavam entre as crepitações da lenha no fogo da cozinha.
— Lucas não vem mais hoje, que diz você? perguntou Fortunata à cunhada.
— Eu sei lá, comadre, quando ele vem? Há um par de dias já que se espera à toa. Com esta história de rusga, o homem anda mesmo que parece uma mosca tonta.
— Mas em parte quem lhe mete tanta caraminhola no casco é aquele malandrinho. Já viu que sujeito mal-encarado, senhora?
— Que quer? O Lucas engraçou com ele. Arrenego de semelhante bisca!
— E onde foi buscar aquele nome de... como é mesmo?
— Não te lembras, Catita?
— O quê, mamãe?
— Como se chama aquele sujeito que foi com teu pai?
— Manuel Canho.
— Ora veja!
— Se isto é nome de gente!
— Mas você não viu outra, comadre. Sabe que apelido ele deitou no cavalo? Juca!
— Tão bom é um como o outro!
— E tem uma égua que chama Moreninha!
— Desaforo! Aquilo é de propósito.
— Quando a mula em que vinha Catita ficou espiritada, pediu-se a ele a égua e não quis dar. Disse que ninguém, senão ele, monta nela! Já se viu que partes?
— Pois eu hei de montar! disse a rapariga batendo com o pé no chão.
— Não há de ser por meu gosto.
— E faz muito bem, comadre.
— Enquizilo com o tal sujeito, que ninguém faz uma idéia; e o Sr Lucas enquanto não lhe suceder alguma, não descansa.
Neste momento a guitarra chilrou com mais força na porta. Catita fez um gesto de impaciência; deitando arrebatadamente a costura sobre o banco onde estivera sentada, disfarçou dando algumas voltas pelo aposento e afinal dirigiu-se para a frente da casa.
Foi direita à janela; abriu sorrateiramente a rótula e espiou para a rua. O vulto parado à porta aproximou-se mal que a percebeu:
— Que faz você aí, Félix?
— Pois ainda pergunta?
— É escusado andar com estas coisas. Perde o seu tempo!
— Então, Catita, esta é a esperança que você me dá?
— Não tenho outra.
— Não foi o que você me disse em Jaguarão.
— Não me lembro disso.
— Você me disse, que chegando aqui havia de decidir.
— Pois está decidido. Não gosto de você, como hei de ser sua noiva?
— Catita!
— Não quero enganar a ninguém.
— Agora é que fala assim.
— Algum dia disse que lhe queria bem?
— Mas também por que não me desenganou logo?
— Por quê?... Porque você não me aborrecia como agora, que passa toda a noite rondando esta porta. Quem visse, havia de dizer que você é meu namorado.
Félix fez um movimento de cólera; e depois de uma pausa murmurou com voz surda:
— Bem sei a causa disso!
— Ah! Sabe? Está mais adiantado do que eu.
— Não disfarce, Catita. Cuida que eu não tenho olhos para ver?
— O quê?
— Você ficou assim desde que nos encontramos com Manuel Canho. Logo naquele dia você não tirou os olhos dele. Bem reparei.
— Só isso? perguntou a moça com uma risadinha de escárnio.
— Depois, pensa que eu não via como você se enfeitava por causa dele? A cada instante se requebrando, para ver ser o enfeitiçava; mas ele, nem caso?
— Félix, melhor é que você se ocupe com sua vida. Me deixe descansada.
— É para ver se é bom querer bem a quem lhe paga com desprezo.
— Pois se assim é, não tem você de que se queixar. Faça como eu que sofro calada.
— Então confessa? Gosta dele? exclamou Félix furioso. Catita caiu em si.
— Não disse isto!
— É escusado negar. Já sei o que queria; pode ficar descansada que não hei de aborrecê-la mais. Meu negócio agora é com ele.
— Que pretende você fazer, Félix?
— O mesmo que me fizeram; traspassar-lhe o coração, mas com este ferro.
A faca do rapaz luzia nas trevas.
Recobrando-se do soçobro que sentira, a moça proferiu estas palavras com a voz fria e pausada, embora ferida ainda por um imperceptível tremor:
— Vinga-se bem, Félix. É o modo de matar-me mais depressa.
Fechou-se a rótula.
Nesse momento, reboou no princípio da rua um tropel de animais, e um grito estrondoso farpou o silêncio da noite.
— Alvíssaras, patriotas! Viva a revolução!