Ouvindo, ou antes suspeitando o convite que Félix dirigira ao Canho no momento de sair, Catita foi à janela.
Para quê? Nem ela o sabia; talvez para ver a direção que os rapazes tomavam, ou para escutar as primeiras palavras que entre si trocariam. Com o rosto colado nas frestas da rótula esperou que os dois saíssem.
O silêncio profundo que ambos guardavam assustou a rapariga. Presa de uma ansiedade cruel correu à porta, ganhou a rua e protegida pela escuridão pôde, esgueirando-se ao longo das paredes, acompanhar Manuel e Félix, sem que eles a percebessem.
Assim, a poucos passos deles, oculta no vão que havia entre duas casas, pôde ouvir toda a conversa. Quando, porém, Manuel recusou brigar com Félix por sua causa, a alma da rapariga, confrangida pelas palavras de desprezo, estalou em um soluço. Receosa de trair-se resvalou para dobrar a próxima esquina e de todo afastar-se; foi nessa ocasião que os dois viram seu vulto e quiseram segui-lo. Mas ela se tinha encoberto no oitão da casa.
Depois que Manuel e o companheiro entraram na taberna, Catita arrastada pela ardente curiosidade foi, transida e perplexa, encostar o rosto à rótula. A noite ameaçava chuva; de vez em quando vinha uma rajada que traspassava; e contudo sentia a moça brasar-lhe a fronte. Repeliu sobre as espáduas a mantilha que trouxera, apertando a mão contra o peito para sopitar as rijas palpitações do coração, que faziam tremer a gelosia.
Pela fresta que deixavam as abas da janela cerrada, Catita viu através do xadrez da rótula um aposento esclarecido por três ou quatro candeias de latão. No centro havia uma pequena mesa oblonga sobre a qual estavam apinhadas umas quinze pessoas, gaúchos e peões, atentas ao jogo. No fundo, a Missé tocava na guitarra um lundu, ao som do qual sapateavam alguns rapazes.
Manuel tomou lugar a um canto da mesa, defronte de Félix. Enquanto os outros continuavam o jogo da primeira, armaram eles um pacau para decidir a aposta. Da primeira cartada o Canho bateu nove e ganhou a partida.
— Bem lhe disse eu que não havíamos de brigar.
— Veremos! disse o rapaz a voz surda.
Manuel encolheu os ombros.
— Não há mais quem queira?
— Topo eu! exclamou o Chico Baeta, atirando um patacão sobre a mesa.
Correram as cartas, e Manuel ganhou não só esta como as partidas seguintes. As moedas de prata passaram da bolsa do peão para as mãos de seu feliz parceiro.
— Quer ir tudo contra o Pombo? Olhe que é um pingo de mão cheia.
— Vá! respondeu Manuel cortando o baralho.
A sorte ainda o favoreceu. Chico levantou-se desesperado.
— Que veia! exclamaram os outros.
— Ninguém resiste.
— Não dá mais desforra? perguntou Chico desesperado.
— Enquanto quiser.
— Pois eu paro a Missé.
— A Missé? replicou Manuel com um sorriso interrogador.
— Não conhece? Pois veja que bonita rapariga. Vem cá, Missé!
— Que é isto? perguntou a rapariga aproximando-se da mesa.
— O Chico parou você no jogo, disseram algumas vozes.
— Hein?
— É para me desforrar, Missé! Mas se não queres!
— Desde que você empenhou sua palavra!... respondeu a rapariga com a voz repassada de mágoa.
Uma lágrima lhe desfiou lentamente pela face:
— Não te desconsoles, meu bem. Olha, se eu te perder, amanhã arremato para mim as primeiras balas dos caramurus, a troco das relhadas e laçaços que hei de arrumar-lhes. E se isto tem de suceder, não é melhor que fiques amparada?
— Deixa-te dessas idéias, Chico. Havemos de ganhar: eu tenho boa mão; quero cortar o baralho.
Um riso jovial espancara de repente a melancolia do lindo rosto da rapariga e espargira nele o brilho da esperança.
— Então valeu? perguntou o Chico a Manuel.
— Eu topo tudo! respondeu este.
Desde o princípio da cena que cessara o jogo da primeira; todos os parceiros, agora atentos ao pacau, aguardavam a decisão da partida de empenho.
A Missé talhou as cartas. Cada um dos dois parceiros tirou três alternadamente do baralho colocado no centro. Cabia a mão ao Chico. Este no meio a ansiedade geral, começou a filar o ponto na palma. A primeira carta voltada sobre a mesa era um quatro, as duas restantes emborcadas uma sobre a outra, escorregavam lentamente ao atrito dos dedos do jogador.
— Figura! disseram em torno, vendo aparecer a pluma do valete de espadas.
O Chico não falava; todo ele estava nos olhos. Ajeitando as duas cartas e voltando-as em sentido contrário, começou a filar a terceira; era esta a que devia determinar o ponto, e portanto as probabilidades do ganho.
— Queremos isto bem chuleado! disse um peão.
— Vê logo, Chico! atalhou a Missé impaciente.
— Qual! Pois aí é que está a graça!
Manuel, deitando no meio da mesa, sob uma pilha de moedas, suas três cartas cobertas, se derreara contra o banco e olhava a sorrir o rosto do parceiro agitado pelas várias comoções do jogo.
— Quadrejou!
Esta exclamação partiu dos lábios de alguns que distinguiram primeiro no alto da carta as quinas de dois losangos de ouro; quando estes levantavam a cabeça para resfolgar daquela atenção imóvel, os outros por sua vez gritaram, vendo as duas marcas no lado da carta:
— Ainda quadreja!
A emoção e curiosidade tocavam agora o auge; com um cinco, o Chico bateria pacau. Todos os olhos estavam presos no branco da carta, que subia lentamente espremida pelos dedos convulsos do jogador. Ninguém respirava; quanto à Missé e o amante, pareciam assombrados.
— Envido! acudiu Manuel rindo.
O Chico abaixou as cartas, e esperou um momento. Não havendo quem aceitasse o envite, continuou a filar o ponto com a mesma lentidão. De vez em quando parava, tolhido pela emoção; até que afinal levantou-se dum ímpeto, como impelido por súbita explosão; entanto o peito arquejante respirava estrepitosamente soltando, ou antes, aspirando uma palavra, que soltara-se de todos os lábios.
— Pintou!
Com efeito aí estavam espalhadas na mesa as três cartas, o valete, o quatro e o cinco de ouros que faziam nove. O Chico tinha batido pacau, e tiritava de prazer. Abraçado com a Missé começaram ambos a sapatear um passo de tatu, chorando como duas crianças, tanta era a alegria. Os outros companheiros contemplavam enternecidos aquela cena.
— Pois eu ainda envido! disse Manuel com a maior calma.
Houve geral surpresa. Já todos supunham a partida ganha, quando se levanta aquela voz para lembrar que ainda faltava alguma coisa; pois não se conhecia o ponto do contrário.
— Ah! quer empatar? disse Chico com um riso amarelo.
— Empatar?... Quero ganhar!
— Mas olhe que foi pacau batido!
— Há outro mais valente do que esse.
— O de ás.
— E o de coringa.
— Então envida mesmo?
— Já disse.
— Pois topo.
Fizeram-se várias paradas, casando moeda com moeda; e todos ansiosos esperaram pelo desfecho da partida, cujo interesse cada vez subia de ponto.
— Olhem; o ás aí está, disse Manuel voltando com a ponta da unha a primeira das três cartas, e o coringa também.
O Chico e os parceiros do envite empalideceram, vendo quase realizado o dito do Canho.
— E a outra? disse um, apontando para a última carta.
— Esta, não tem que ver, é figura, e não passa de uma dama para fazer cortesia à moça.
Acabando de proferir estas palavras, que ele endereçou com um sorriso à Missé, o gaúcho voltou rapidamente a carta. Foi profundo o assombro; era com efeito uma dama; o Chico tinha perdido. O dinheiro, o cavalo e a amante pertenciam ao Canho.
Quando passou a confusão que seguira ao primeiro espanto, viu-se o Chico apertando pela última vez a Missé em seus braços.
— Não chores, meu bem. Faz de conta que eu morri! Amanhã vou te esperar lá no outro mundo!
Manuel segurou-o pelo braço no momento de passar a porta.
— Faz-me um favor?
— Qual?
— Aceite o Pombo, como lembrança da primeira vez que nos vimos, há cerca de três anos. Não se dirá que Manuel Canho separou um gaúcho de seu melhor amigo. O mais, o dinheiro e a mulher, acha-se a cada canto; porém o cavalo, que nos entende, e se liga ao nosso destino no trabalho e na guerra, na vida e na morte, este, uma vez perdido, custa a achar outro, quando se acha. Senhores, boa-noite!
Dirigindo esta saudação às pessoas presentes, o Canho ganhou a rua; tinha dado alguns passos, quando um vulto deslizou na sombra e conchegou-se a ele. Que sorriso de desprezo perpassou nos lábios do gaúcho!
— É mulher!... murmurou ele.
O temporal, que ameaçava desde o princípio da noite, estava prestes a desabar; as serras de nuvens negras, amontoadas no horizonte, começavam a inflamar-se. À luz crebra e lívida dos relâmpagos, a vila adormecida assomava como o espectro de uma ruína no foco de um incêndio.
Voltando-se nesse momento, viu a mulher de longe um vulto que os seguia; com a mão convulsa travou do braço do gaúcho e levou-o por diante até sumirem-se no fim da rua.
Tinham os dois chegado a uma das extremas da vila, em lugar ermo, onde a escarpa íngreme do terreno formava um barranco profundo.
Manuel passou o braço pela cintura da mulher, e sentiu um corpo trêmulo e agitado que se apoiava nele. Mas nesse momento aquele seio arquejou, estalando num soluço.
Afastou-se o gaúcho rapidamente, arredando com um movimento brusco o talhe da moça. Com esse movimento abriu-se a mantilha, que deslizando sobre os ombros, deixou descoberta a cabeça da desconhecida. Rasgava-se nesse momento um relâmpago, que iluminou o belo rosto de Catita.
Manuel ficou imóvel em face da aparição incompreensível. Entretanto os relâmpagos sucediam-se e no meio dessa auréola deslumbrante ele via aquele mesmo olhar que três anos antes o fascinara e desde então cintilava nas sombras da sua alma.
Dominando afinal aquele encanto, o gaúcho quis afastar-se, porém a moça tomou-lhe o passo, cruzando as mãos para suplicar-lhe que não a deixasse. Catita assistira a toda a cena da taberna, e fora com o coração ralado de ciúmes que ela acompanhara Manuel para impedir o seu encontro com a Missé.
— Manuel! balbuciou a moça.
As palavras expiraram no lábio trêmulo, mas desfolhando-se num sorriso que enlevava.
O gaúcho lançou um olhar para o barranco; era um precipício; mas não estava ali em face, outro mais perigoso? Não se abria diante dele no sorriso fascinador daquela mulher, numa voragem para sua alma?
Travando do galho de uma árvore, Manuel arremessou-se, e desapareceu na espessura da folhagem.
Catita caiu de joelhos.
Ao grito que rompeu-lhe do seio, acudiu uma pessoa; era a Missé, que a tinha seguido de longe.