Três vezes o mesmo grito reboara, ecoando longe nas grotas e fraguedos que cercam o sítio da vila de Piratinim.

As duas comadres, tomadas de susto no meio de sua palrice, não souberam de primeiro momento a que atribuir o estranho clamor, cujo sentido não compreendiam. A idéia vaga de toda a sorte de perigo, desde um simples canhambola, até o assalto por um demônio-legião, perpassou como um raio por seu espírito alvoroçado.

— Santa Bárbara!... murmurou a Fortunata e travou-se com o rosário.

Vidoca, apesar de grande medo, entrevira uma esperança; e com o ouvido atento aguardava a confirmação de uma suspeita. Foi quando pela terceira vez estrugiu o mesmo brado.

— É, é mesmo! Ora essa! exclamou erguendo-se.

— O quê, senhora? balbuciou a Fortunata.

— O Sr. Lucas! Aquele grito é dele!

Correndo para a frente, a Vidoca achou a filha à janela. Catita também reconhecera a voz de seu pai, e de novo abrira a rótula. Seu coração batia precipitadamente contra a soleira; porém não era de medo. Com os olhos alongados pela rua procurava devassar as trevas, para distinguir mais depressa as pessoas que sem dúvida para aí se dirigiam.

Pensava ela que Manuel vinha com Lucas?

Entretanto, aos brados do furriel, toda a vila pôs-se em alvoroço. A peonada, abandonando a gordurenta mesa de jogo saía das tabernas aos trambolhões; abriam-se as casas dos patriotas; o povo apinhava-se nas ruas, que a luz dos fachos começava a esclarecer.

Pouco depois, no meio de um grande clarão avermelhado, via-se o Lucas Fernandes esticado sobre os loros proclamando à multidão que o cercava, suspensa não de seus lábios, mas da barba hirsuta que lhe cobria o rosto como espessa floresta.

— tomamos Porto Alegre de assalto, camaradas! O presidente fugiu, dizem que para Rio Grande, outros que para a corte duma feita! Bento Gonçalves já pôs outro em seu lugar; com este pode-se contar; é homem seguro. Agora só falta o xumbregas do tal marechal de borra. Mas o coronel não tarda aí para ensiná-lo.

— Viva Bento Gonçalves!

Este grito prorrompeu da turba e foi saudado com uma aclamação frenética de entusiasmo.

— Aquilo é que é homem, prosseguiu o furriel. Éramos cento e cinqüenta quando marchamos para a capital; mas bastou ele, o Lucas e o Manuel Canho, nós três, para levarmos tudo raso!

A esse tempo notava-se um novo movimento na multidão. Um sujeito que passava deixou cair algumas palavras entre as quais se ouvira o nome de Neto. Depreendia-se que este acabava de receber notícias do auditório do furriel para o ajuntamento que se formava em frente à casa do chefe republicano.

A multidão foi-se escoando; os fachos desapareceram; e o furriel, completamente isolado, teve de ganhar a casa de Fortunata, só e às escuras. Durante o curto do trajeto, pôde ele meditar sobre a inconstância da popularidade e a ingratidão das turbas.

Achou na porta as mulheres que o esperavam com ansiedade; mas ele entrou carrancudo e sinistro como uma tempestade. Abraçou as três com uma voz de trovão.

— Então o que houve, Sr. Lucas?

— Pois é preciso que diga? Pensavam que eu não havia de voltar cá sem a rusga?

— Mas conte à gente!

— Não tem que contar! replicou o furriel com um tom desabrido.

Ninguém mais tugiu. As duas cunhadas trocaram um olhar, e cuidaram de apressar a ceia.

Catita conservou-se indiferente a toda essa cena: havia em seu belo rosto uma nuvem de tristeza. Quando seus olhos puderam de longe distinguir a figura do pai, no meio da multidão, procuraram ansiosamente ao lado o vulto de Manuel; não o encontrando vendaram-se.

— A ceia está pronta, Sr. Lucas, disse Vidoca.

O furriel ergueu-se:

— Manuel ainda não chegou?

— Aqui, não! responderam as duas comadres.

— Onde se meteria ele?

Os brilhantes olhos de Catita, fitos no semblante de Lucas, pareciam arrancar-lhe as palavras dos lábios. Ela estremecera ouvindo a primeira frase; mas não sabia que pensar. Tinha Manuel chegado à vila com seu pai, ou este o havia perdido de vista desde Porto Alegre?

Nisto bateram à porta; e o gaúcho apareceu.

— Tenham boa-noite, disse ele sem olhar para alguma das três mulheres.

Sentaram-se todos à mesa e cearam. À medida que o furriel calcava o estômago ia-lhe voltando o bom-humor, o entusiasmo revolucionário e a facúndia habitual. Então, sem que lhe pedissem, contou às mulheres as suas proezas na tomada de Porto Alegre; não esquecendo as façanhas do Canho, que em sua opinião se mostrara digno do pai.

Na situação em que tinham ficado os negócios políticos no dia 7 de setembro, era realmente para surpreender o desenlace, cuja notícia acabava de chegar a Piratinim.

Mas, depois daquele dia, alguns amigos de Bento Gonçalves o tinham convencido de que a revolução era inevitável. Nada a podia mais conjurar, no ponto a que haviam chegado as coisas. Se o coronel recusasse tomar a direção do movimento, ele se transviaria com toda a certeza e produziria as conseqüências que os espíritos moderados desejavam evitar. O meio mais seguro de prevenir a separação da província era sem dúvida a revolução; ela tirava o pretexto aos republicanos.

Persuadido por estas razões, Bento Gonçalves partira para Camacã, de onde a 20 de setembro marchara sobre a capital à frente de 150 gaúchos. Derrotada na ponte da Azenha uma pequena força de 40 praças da guarda nacional, nenhum obstáculo mais encontrou. O presidente, baldo de recursos para opor à rebelião, embarcou-se a bordo de uma escuna de guerra e retirou-se para a cidade do Rio Grande, tentando organizar aí a resistência.

Senhor da capital, onde assumira a presidência o cidadão Marciano José Ribeiro, Bento Gonçalves, investindo-se do comando das armas, despachou imediatamente Manuel Canho com uma carta para Neto, em Piratinim, comunicando-lhe os últimos acontecimentos e avisando-o da necessidade de bater quanto antes o tenente-coronel Silva Tavares, comandante de uma força estacionada no Erval.

O Lucas, apenas soube que Manuel partia, resolveu acompanhá-lo; convencido de que em Porto Alegre não havia mais inimigo a combater, o furriel queria aproximar-se do lugar onde acreditava que ia travar-se a luta.

Chegando à vila naquela noite, enquanto o miliciano proclamava às turbas, Manuel procurou Neto para entregar-lhe a carta; e ordenando-lhe este que fosse descansar e voltasse no dia seguinte, dirigiu-se então para a casa de Fortunata, onde acabava de entrar.

Enquanto o furriel se desfazia em bravatas, sentia o gaúcho o brilho dos olhos de Catita fitos em seu semblante; e às vezes passava as mãos arrebatadamente pela fronte como para espancar uma obsessão do espírito.

De novo bateram à porta. Desta vez era o Félix que vinha a pretexto de ver o mestre. Ao entrar, o rapaz sorriu com amargura, relanceando um olhar que passou por Catita e foi cravar-se em Manuel.

— Estás contente, hein, rapaz! disse-lhe o Lucas; e recomeçou pela décima vez a história de sua ilíada.

Félix porém não o escutava. Toda sua atenção estava empregada na rapariga e no gaúcho. A princípio, assustada com a presença do rapaz, Catita disfarçara as olhadelas apaixonadas que pouco antes deitava sobre Manuel; porém logo depois irritada daquela coação, arrostou as iras do ciumento, voltando-se completamente para o gaúcho e ficando como absorta no seu rosto.

Félix tiritava de raiva; e por longe perpassou-lhe a idéia de puxar a faca e cravá-la uma e muitas vezes no coração da rapariga. Ainda assim não se vingava, porque lhe parecia que a ponta de aço não cortaria como o gume daquele olhar com que ela lhe atravessava o coração.

O furriel, exausto das novidades e repleto de pirão, se debruçava sobre a mesa e começava a afinar o ronco.

— Vá se deitar duma vez, Sr. Lucas, disse a Vidoca.

— São mesmo horas de se recolher a gente.

Com esta despedida formal, ergueram-se, o Félix para sair, e o Canho para ganhar pelo quintal um puxado, feito à direita da casa, e onde o haviam arranchado.

— Tenho um particular com o senhor! disse Félix ao gaúcho com voz soturna e apontando para o corredor de saída.

Canho fez um gesto afirmativo:

— Boa-noite. Podem encostar a porta que eu fecharei; não vou longe.

Saíram os dois. Até dobrarem o canto não trocaram palavra. Manuel esperava um tanto surpreso, porque não lhe ocorria qualquer motivo para explicar aquela entrevista com ares de mistério.

Finalmente parou Félix e voltando-se para o companheiro, disse-lhe sacando fora o poncho:

— Esta noite um de nós deve matar o outro!

— Por quê? perguntou Manuel com sossego.

— Pois pergunta?

— Decerto, respondeu o Canho sem mudar de tom. O motivo por que você me quer matar, pouco me importa saber; eu nunca perguntei à jararaca por que morde a gente. Mas para que eu o mate, é preciso ter uma razão; não mato gente à toa.

— Você bem sabe a razão, tornou Félix rangendo-lhe os dentes. Eu gosto de Catita!

— E que tenho eu com isso?

— Você também gosta dela.

Respondeu-lhe um riso de escárnio.

— Logo vi que não estava no seu juízo. Aposto que veio da venda? redargüiu o Canho.

— Não tenho que lhe dar satisfações. Estou aqui para brigar e não para sofrer desaforos.

— Nem eu para ouvir mentiras.

— Nega que ela gosta de você?

— Vou dormir; adeus!

— Não disfarce, foi ela mesma que me contou esta noite, há bocadinho.

— Pois perde seu tempo!

— Mas enquanto você viver, ela não fará caso de mim.

— E por isso me quer matar? Pois olhe: não estou disposto a morrer por causa de mulheres. Procure outro motivo, que por este decerto não brigamos.

Ecoou perto um som abafado, semelhante a um soluço. Os dois voltaram-se para conhecer a causa, e viram apenas um vulto que dobrava a esquina fronteira; adiantando-se alguns passos, levados pela curiosidade, chegaram à rótula de uma casa cujo interior aparecia iluminado por entre a fresta da janela cerrada.

Exalava de dentro um ambiente espesso, carregado com a fumaça de graxa e de tabaco, bem como um surdo zumbir de muitas vozes, misturado com o tinir de moedas, com o sussurro da guitarra e o estalo das cartas batidas sobre a banca. Facilmente se percebia que estava na taberna a costumada roda de jogo.

— Quer apostar a briga? perguntou Félix de repente.

— Está feito. Assim é melhor.

Félix empurrou a porta, e os dois penetraram no corredor.

O vulto desaparecera.