Afastando-se de Bento Gonçalves no dia de sua volta a Piratinim e depois da cena cruel que se passou no quarto de Catita, entre o pai e a filha, Manuel se dirigira à locanda onde tinha arranchado o chileno.

Examinando o chão em torno da casa, notou o rasto de um animal que ele reconheceu imediatamente, apesar de o ter visto poucas vezes. Uma coisa que o peão observa logo no cavalo é o andar; de duas vezes que encontrara o chileno a gauchar no castanho, lançou Manuel um rápido olhar ao animal. Não foi preciso mais.

O rasto seguia ao longo da rua; apesar de apagado pelo casco de outros animais e pelas pisadas da gente a pé, o gaúcho foi acompanhando aqueles vestígios, até o campo que servia de rocio à vila. Aí a pista, perfeitamente distinta e fazendo uma volta, dirigia-se ao mata-pasto por detrás da matriz, donde se afastava pela campanha fora.

Quando Canho se curvava para melhor examinar o rasto, Juca e a Morena o acompanhavam reparando nos seus movimentos e farejando o chão. Ao sair da vila, os dois animais conheciam a pista tão bem como o gaúcho, e podiam segui-la a galope.

Romero levava seis horas de avanço; porém Manuel tinha os dois melhores parelheiros de toda a campanha e a sua atividade infatigável.

Ao cair da tarde ele avistou longe no horizonte o fugitivo; e com pouco mais o teria alcançado, se não fosse a intervenção da peonada do coronel Albano. Tendo avistado a partida antes do chileno e suspeitando que fosse de legalistas, Manuel previu o que ia acontecer.

Encoberto pelo esteiro de mato que bordava as margens de um arroio, o gaúcho contornou a lomba de uma grande coxilha, ganhando a frente aos legalistas. Assim quando estes batiam a campanha na direção de Piratinim à caça do farroupilha, este, oculto em um pequeno cerro do lado da Encruzilhada, observava seus movimentos.

Desde então Manuel não perdeu mais de vista a Romero. Com a paciência de um caçador, espreitando a ocasião segura para desfechar o bote, o seguiu até Rio Pardo.

Defronte da casa do lojista, onde se aboletara o chileno, havia aquele pardieiro coberto de uma vegetação espessa e frondosa, que pelo fundo se unia com o mato da entrada da vila. Ali oculto, Manuel passava o tempo a espiar os movimentos de Romero.

O mascate pouco saía, e sempre acompanhado pelos seus capangas. Em casa era raro chegar à janela, isso mesmo com muita precaução. Embora se julgasse escapo da perseguição, tinha a prudência de não se expor.

Canho contava que essa incessante cautela se desvaneceria com o tempo, sobretudo em alma tão fútil e inconstante como a de Romero. Não se enganou: na quinta noite um recado da vizinha fez-lhe esquecer tudo o mais.

Quando Manuel, de pé sobre o muro, alcançava o tronco do pinheiro a fim de subir à copa, a moça o avistara, mas de relance apenas; tanto que Romero volvendo os olhos não viu mais do que o esguio tronco de árvore.

Oculto entre a rama dos galhos, esperou até o momento em que o chileno subiu à sacada para alcançar a janela vizinha. Então o braço projetou-se; o laço arremessado com força apanhara o namorado pela cintura, semelhante à garra fatal e invisível de um grifo que o arrebatasse pelos ares.

Ao mesmo tempo que atirara o laço, Manuel se arrojara ao chão; de modo que a trança de couro correndo na forqueta de um galho, à guisa de cabo, suspendeu Romero sobre o pardieiro, sem que o corpo arrastasse pela rua.

Atirar-se ao mascate, amordaçá-lo com o poncho, ligar-lhe pés e mãos, atá-lo ao costado do Ruão, e partir levando consigo o prisioneiro, não gastou ao Canho o momento que durou a surpresa do chileno. Quando este deu acordo de si, galopava pela campanha em posição horizontal.

Às oito horas da manhã parou Canho para dar repouso aos animais e almoçar.

O gaúcho encostou Romero, sempre atado de pés e mãos, ao tronco do ombu, que oferecia aos viajantes uma sombra refrigerante. Correndo o campo laçou uma vitela, e sem dar-se ao trabalho de matá-la, tirou-lhe da ilharga um pedaço de lombo. Instante depois a carne assava no tampo de couro, que o calor do fogo, encolhera, tornando-o covo como uma panela.

Manuel soltou os braços do chileno, atirou-lhe com sua ração de carne, e tratou de tomar a sua parte da refeição.

Desde que tinha caído nas mãos do gaúcho, Romero ainda não lhe ouvira uma só palavra. Manuel o tratava como ao novilho fujão que se laça no campo e se leva à soga para o curral. Não se dignava nem mesmo ameaçá-lo com um gesto. E para quê? Aquele torvo semblante era a fisionomia de uma tempestade; sentia-se a faísca do raio no olhar lívido que rutilava da pupila negra.

Quando Romero deu acordo de si, admirou-se de estar vivo ainda. Que pretendia dele então o Canho? Queria entregá-lo a Lucas ou matá-lo aos olhos de Catita?

Enquanto comiam os dois viajantes, um homem arrastando-se pelo chão por entre a macega, se aproximava sorrateiramente do ombu. Pelo emplastro de pano que trazia no rosto era fácil conhecer Félix.

Chegando a duas braças do tronco, parou indeciso. Ali estavam dois homens a quem ele votava ódio mortal: um lhe tinha mutilado o rosto, o outro lhe mutilara a alma; aquele o fizera hediondo, este o transformara em fera; ele tinha sede de sangue, mas como o tigre, de sangue quente, bebido no coração donde borbota.

Félix andara até aquele dia à pista do chileno, e voltava desesperado quando de longe avistou Juca e logo pressentiu que Manuel andava por perto. Descobrindo os dois viajantes, não se imagina a raiva que sentiu por ver o gaúcho senhor da vingança, tão cobiçada por ele.

Afinal decidiu-se o rapaz; apontando o trabuco para Manuel, armou a caçoleta; mas o rangir do ferro ainda soava, quando o gaúcho, a quem nada escapara, caiu sobre ele e arrancou-lhe a arma da mão.

Félix enfurecido precipitou-se sobre o chileno para cravar-lhe a faca no coração; mas achou-se em face de Manuel que ao cabo de breve luta o desarmou.

— Mata-me de uma vez, demônio! gritou o rapaz em um acesso de raiva; ou antes acaba logo de matar-me, pois já começaste. Olha, o que fizeste de mim.

Arrancando o pacho que lhe cobria o rosto, o desgraçado mostrou uma coisa horrível; um rosto fendido a meio, que parecia rir satanicamente com os lábios disformes daquela boca artificial.

Manuel sentiu um movimento de compaixão, que logo sopitou. Impassível e taciturno, passou do rosto mutilado do rapaz ao semblante de Romero um olhar frio que transia. O chileno estremeceu de horror ante aquela ameaça.

Entretanto o gaúcho atou-lhe de novo os braços e pondo-o no costado do Ruão partiu, apesar da sanha de Félix que, vendo sua vingança próxima a escapar-lhe, arrojou-se ainda uma vez contra o gaúcho, procurando ao menos insultá-lo para que ele o matasse. Baldado esforço; porque o braço ágil e robusto de seu adversário o conservava em distância.

Horas depois paravam dois cavaleiros à casa de Fortunata. Lucas chegando à porta reconheceu com surpresa Manuel e Romero a quem o gaúcho soltara os laços na entrada da vila.

A um volver d’olhos do Canhis que partira:

— A noiva.

Como se um raio de luz rompesse a crosta dessa alma, o pai compreendeu tudo e correu ao quarto da filha.